Opinião

Conceito processual de sentença no novo Código de Processo Civil

Autores

  • Marcos de Araújo Cavalcanti

    é procurador do Distrito Federal sócio do escritório Peixoto e Cavalcanti Advogado professor de Direito Processual Civil do IDP e membro e procurador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). É mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP.

  • Natália Peppi Cavalcanti

    é sócia do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP e mestranda em Direito Constitucional pelo IDP.

22 de outubro de 2017, 6h01

O conceito processual de sentença tornou-se um dos temas mais discutidos nos últimos anos, muito em razão da alteração legislativa promovida pela Lei 11.232/2005, que modificou a redação do parágrafo 1° do artigo 162 do CPC/1973. De acordo com a redação original desse dispositivo, a “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”. Isto é, nos termos da redação originária do CPC/1973, consideravam-se as consequências e os efeitos do pronunciamento do juízo para sua definição de sentença. Destarte, para um pronunciamento do juízo ser uma sentença, deveria extinguir o processo com ou sem resolução do mérito.

Parte da doutrina[1] criticava o critério estabelecido na redação original do parágrafo 1° do artigo 162 do CPC/1973, o que levou o legislador a alterar o dispositivo, especialmente para compatibilizá-lo com a reforma da execução de título judicial, que passou a ser feita através de cumprimento de sentença como mera fase do processo. Após a reforma feita pela Lei 11.232/2005, o processo passou a ser sincrético, sem a ruptura legal que existia entre o processo de conhecimento e o processo de execução.

Por essa razão, a Lei 11.232/2005 alterou a redação do artigo 162, parágrafo 1º, dispondo que “sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos art. 267 e 269 desta Lei”.

A interpretação literal do artigo 162, parágrafo 1°, do CPC/1973 dava a entender que a consequência do ato judicial (encerramento do processo) teria deixado de ser critério essencial para sua definição como sentença. O critério legal seria apenas o conteúdo da decisão, de modo que, se o juízo decidisse com fundamento nas situações previstas nos artigos 267 e 269 do CPC/1973, estava decidindo por sentença.

No entanto, o CPC/1973 estabelecia de forma rígida que a sentença seria recorrível por apelação, as decisões interlocutórias por agravo de instrumento ou retido e os despachos seriam irrecorríveis. Diante da nova redação, surgiram ideias no sentido de que seria cabível “apelação por instrumento” quando o juízo decidisse com fundamento nos artigos 267 ou 269 do CPC/1973, mas não ocorresse a extinção do processo. Seria a situação, por exemplo, de o juízo reconhecer a ilegitimidade passiva de apenas um dos litisconsortes, sem, contudo, determinar a extinção da demanda.

No entendimento minoritário da doutrina[2], como a decisão abrangia o conteúdo do inciso VI do artigo 267 do CPC/1973 (ilegitimidade passiva), o pronunciamento teria natureza jurídica de sentença e, portanto, seria cabível recurso de apelação, devendo ser interposto “por instrumento”, já que não havia como ser determinada a subida dos autos ao tribunal, pois o processo ainda precisaria prosseguir com o seu rito normal em relação aos demais litisconsortes não excluídos dos autos[3].

Importante destacar que, apesar de a Lei 11.232/2005 ter alterado a redação do parágrafo 1° do artigo 162 do CPC/1973, não houve modificação dos parágrafos 2° e 3° do mesmo artigo. Tais dispositivos estabeleciam, no diploma revogado, os conceitos legais de decisão interlocutória e de despacho. Nos termos do parágrafo 2° do artigo 162: “Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente”. Portanto, não houve alteração da definição legal relativa à decisão interlocutória, que não era definida por seu conteúdo e exigia que a decisão fosse proferida no curso do processo, antes de sua extinção. Destaque-se, ainda, que a mesma lei não excluiu a expressão “extingue-se o processo” presente no artigo 267 do CPC/1973, assim como também não retirou o termo “extinção do processo” do Título III, Capítulo VI, Livro I (processo de conhecimento).

Assim, mesmo com a alteração legislativa da Lei 11.232/2005, o CPC/1973 continuou a levar em consideração a finalidade do ato para fins de definição dos pronunciamentos jurisdicionais. Por essa razão, Nelson Nery Junior afirmou que o critério de conteúdo não foi o único estabelecido pela Lei 11.232/2005. A finalidade do pronunciamento, como o seu conteúdo, continuava necessário para sua definição, pois se manteve a ideia de extinção do processo[4]. Nessa perspectiva, mesmo com as alterações legislativas promovidas, a sentença continuou a ser compreendida como o pronunciamento jurisdicional que indicava situações previstas nos artigos 267 e 269 do CPC/1973 e que determinasse a extinção do processo.

Acontece que nem sempre uma decisão com conteúdo dos artigos 267 e 269 do CPC/1973 acarretava a extinção do processo. Daí porque a doutrina passou a identificar a existência de decisões interlocutórias com conteúdo de sentença. Isto é, embora o conteúdo da decisão fosse de sentença, o pronunciamento jurisdicional era proferido no curso do processo, não o extinguindo por inteiro[5]. Por exemplo, a decisão que excluía um litisconsorte facultativo do processo (artigo 267, VI, do CPC/1973); ou que indeferia o processamento da reconvenção, prosseguindo a causa originária (artigo 267, I, CPC/1973); são pronunciamentos que, embora possuíssem conteúdo de sentença, eram tidos como decisões interlocutórias, especialmente para fins de recorribilidade. Portanto, a doutrina majoritária entendia cabível o agravo de instrumento[6].

O CPC/2015, atento às discussões doutrinárias e jurisprudenciais relativas ao tema, estabeleceu uma melhor e mais clara definição para os pronunciamentos jurisdicionais (sentença, decisão interlocutória e despacho). De acordo com o parágrafo 1° do artigo 203 do CPC/2015, “sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. O CPC/2015 estabelece, portanto, que a sentença será definida por seu conteúdo (situações arroladas nos artigos 485 e 487) e também por sua finalidade (encerrar a fase do processo de conhecimento ou extinguir a execução). O CPC/2015 não exige mais a extinção do processo para que o pronunciamento jurisdicional seja definido como sentença. Tanto isso é verdade que o artigo 485 do CPC/2015 não faz referência à expressão “extingue-se o processo” como fazia o antigo artigo 267 do CPC/1973.

A sentença, portanto, encerra apenas uma fase (a do processo de conhecimento). Em seguida, outra fase será iniciada, a fase de cumprimento de sentença. Na execução, de outro modo, a sentença é o próprio pronunciamento que encerra o processo de execução. Portanto, nos termos do parágrafo 1° do artigo 203 do CPC/2015, são dois os critérios para definição de um pronunciamento jurisdicional como sentença: (a) a decisão deve ter por conteúdo uma das situações previstas nos artigos 485 ou 489 do CPC/2015; e (b) deve determinar o encerramento da fase do processo de conhecimento ou do processo de execução.

Na verdade, tecnicamente, a sentença nem sempre extingue a fase de conhecimento ou a execução definitivamente, pois os legitimados podem ainda interpor recursos ao tribunal, havendo um prolongamento dessas fases[7]. A sentença somente irá extinguir a fase de conhecimento ou a execução se não houver recurso para o tribunal[8], pois, caso contrário, o acórdão proferido pelo tribunal que julgar o último recurso é que irá encerrá-las. Desse modo, sentença é o pronunciamento jurisdicional que tem por conteúdo umas das situações previstas no artigo 485 ou 487 do CPC/2015 e que determine o encerramento da fase do processo de conhecimento ou a extinção da execução na primeira instância.

Por outro lado, decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre como sentença, nos termos definidos no parágrafo 1° do artigo 203 do CPC/2015. Ou seja, ainda que a decisão tenha por conteúdo as matérias dos artigos 485 e 487 do CPC/2015, se não houver o encerramento da fase do processo de conhecimento ou a extinção da execução, o pronunciamento jurisdicional será decisão interlocutória. Para fins de recorribilidade, é cabível agravo de instrumento. Aliás, o inciso II do artigo 1.105 do CPC/2015 deixa claro que o recurso de agravo de instrumento pode ser interposto para atacar decisões de mérito.

Destaque-se que o CPC/2015 admite a possibilidade de julgamento antecipado parcial do mérito. Assim, obedecidos os requisitos legais, o juízo pode proferir decisão parcial de mérito antes mesmo do pronunciamento final (sentença).

De acordo com o artigo 356 do CPC/2015, o juiz decidirá parcialmente o mérito[9]: (a) quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso; (b) quando não houver necessidade de produção de outras provas; ou (c) quando o réu for revel, tiver ocorrido o efeito material da revelia e não houver requerimento de prova. Nessas situações, o juízo profere decisão parcial de mérito, prosseguindo o processo em relação aos demais pedidos que ainda não estão maduros suficientemente para julgamento. Apesar de serem decisões de mérito, o recurso cabível é o agravo de instrumento, nos termos dos artigos 356, parágrafo 5°, e 1.015, II, do CPC/2015, exatamente porque as decisões são parciais, não tendo ocorrido o encerramento da fase de conhecimento no juízo de primeiro grau[10].

Por fim, vale dizer que o parágrafo 3° do artigo 203 do CPC/2015 define despachos como todos os demais pronunciamentos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte. Trata-se de um conceito residual. Se o pronunciamento jurisdicional não for sentença nem decisão interlocutória, será despacho[11].


[1] Como exemplo, Teresa Arruda Alvim afirma: “Sempre sustentamos que se dizer que a sentença é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição, afirmação a que se é levado pela redação do art. 162, em vigor até junho de 2006, envolve uma tautologia. Pergunta-se: qual é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição? Responde-se: a sentença. Por outro lado, ao se perguntar o que é uma sentença, tem de responder-se que é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição. E assim subsequentemente, sem que se esclareça, afinal, o que é uma sentença. […] Essa é a impressão que se pode ter à primeira vista, se não se leva em conta uma circunstância: o legislador especificou quais são os conteúdos que fazem com que se possa identificar um pronunciamento judicial como sentença. Os possíveis conteúdos materiais das sentenças vêm expressamente previstos nos arts. 267 e 269 do CPC. Cremos, portanto, ser esta a nota marcante das sentenças, ou seja, é o seu conteúdo, preestabelecido por lei de forma expressa e taxativa” (ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. O conceito de sentença no CPC reformado. In: Revista Magister de direito civil e processual civil, v. 4, n. 20, set./out. 2007, p. 60-61).
[2] Acolhendo a tese da “apelação por instrumento”, ver WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme da Costa. O novo conceito de sentença e os reflexos na escolha dos meios de impugnação cabíveis diante dos pronunciamentos judiciais: aplicação do princípio da fungibilidade. In: Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2007. v. 11, p. 245.
[3] Concorda-se com Nelson Nery Junior que afasta o cabimento da “apelação por instrumento” nos seguintes termos: “inventar-se apelação por instrumento, inexistente no direito brasileiro e absolutamente alheia à tradição do processo civil luso-brasileiro; burla-se o regime jurídico da apelação, dado pelo CPC 514, que não prevê a possibilidade de sua interposição por instrumento, sendo, portanto, contra legem; (Conceito sistemático de sentença: considerações sobre a modificação do CPC 162, § 1º, que não alterou o conceito de sentença. In: Processo civil: novas tendências: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 529).
[4] NERY JUNIOR, Nelson. Op. cit., p. 522-523.
[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Código de Processo Civil Anotado. Rio de Janeiro: Forense, 11. ed., 2007, p. 125.
[6] ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Os agravos no CPC Brasileiro. São Paulo: RT, 4. ed., 2006, p. 186; ARRUDA ALVIM WAMBIER. O agravo e o conceito de sentença. In: Revista de Processo. São Paulo: RT, v.32, n. 144, fev. 2007, p. 253-254.
[7] Nesse sentido, ver ÁVILA, Henrique. O STJ e o conceito de sentença : análise sob os aspectos do cabimento da ação rescisória e embargos infringentes, In: O papel da jurisprudência no STJ. São Paulo: RT, 2014, p. 459.
[8] ARRUDA ALVIM WAMBIER. O agravo e o conceito… Op. cit., p. 253.
[9] “Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I – mostrar-se incontroverso; II – estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355”.
[10] “art. 356 § 5o A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento”.
[11] Marcelo Abelha Rodrigues e Thiago Ferreira Siqueira defendem que: “Em resumo, o Novo CPC continua a adotar a aptidão do pronunciamento em encerrar o procedimento cognitivo como característica fundamental da sentença. Faltando tal predicado, o que teremos é uma decisão interlocutória. Desde que, é claro, o ato tenha “natureza decisória” como exige o § 2º; caso contrário, continuamos a ter, nos termos do § 3º, um despacho” (RODRIGUES, Marcelo Abelha. SIQUEIRA, Thiago Ferreira. O conceito de sentença no processo civil brasileiro: passado, presente e futuro. In: Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, v. 4, n. 39, abr. 2015, p. 69).

Autores

  • é procurador do Distrito Federal, sócio do escritório Peixoto e Cavalcanti Advogado, professor de Direito Processual Civil do IDP e membro e procurador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). É mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP.

  • é sócia do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP e mestranda em Direito Constitucional pelo IDP.

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