Opinião

União Europeia acertou ao não definir constituição supranacional

Autor

  • Luiz Felipe Panelli

    é doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudo sobre Direito Estado e Sociedade da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

21 de outubro de 2017, 8h00

Os anos de 2016 e 2017 reservaram algumas surpresas desagradáveis para os que defendem a existência da União Europeia. Além da decisão do Reino Unido de sair do bloco, movimentos nacionalistas emergiram em vários países-membros, causando dúvidas sobre o futuro político da União. Analistas mais céticos já condenaram a UE à morte e a classificaram como um projeto falido.

Antes de proferir tal sentença, convém nos perguntar o que é, afinal, a União Europeia. A sua origem remota é a Comunidade do Carvão e do Aço, de 1951, feita entre Holanda, Luxemburgo, França, Bélgica, Alemanha e Itália. A ideia da comunidade era criar um mercado comum para o desenvolvimento de carvão e aço – insumos vitais para a reconstrução da infraestrutura e do parque industrial arrasado pela guerra.

Este mercado comum teria uma autoridade reguladora única e métodos próprios para resolução de conflito. A última coisa que estes países precisavam à época era uma nova rivalidade industrial e empecilhos comerciais na circulação de insumos e mão de obra. A comunidade garantiria uma reconstrução homogênea e justa.

O que parecia ser um mero acordo comercial, porém, trazia o embrião de uma comunidade política. O acordo previa livre circulação de trabalhadores destas indústrias, um corpo legislativo próprio para tratar dos assuntos relacionados ao tratado e um Tribunal de Justiça. Tamanha estrutura é atípica para acordos comerciais comuns, que no mais das vezes se limitam a eleger um órgão arbitral para a resolução de conflitos.

Ainda, o tratado tinha dispositivos de direito social, instituídos para proteger os trabalhadores das intempéries econômicas durante a reconstrução europeia e mecanismos de concessão de crédito para atividades industriais.

Independentemente da análise do mérito econômico do tratado (que deve considerar outros fatores, como as injeções de dólares que vinham dos Estados Unidos através do Plano Marshall), o objetivo final do tratado foi cumprido à risca: a possibilidade de uma nova guerra tornou-se nula.

Além do contexto da Guerra Fria entre Estados Unidos e URSS (que trouxeram ao cenário mundial a OTAN e o pacto de Varsóvia) e do desenvolvimento de armas atômicas que tornaram qualquer nova guerra um suicídio, a integração econômica fez com que os motivos para uma guerra europeia cessassem. Os países membros deixaram de ser rivais e tornaram-se parceiros. A Comunidade do Carvão e do Aço fez mais pela paz do que lhe é dado crédito.

Empolgados pelo sucesso, os líderes europeus decidiram aprofundar os esforços de união. Foi criada uma autoridade atômica europeia independente e, simultaneamente, uma comunidade econômica, que tratou de fazer a integração econômica definitiva entre os países membros. Aos poucos, esta comunidade econômica foi sendo expandida, até abranger praticamente todos os países da Europa ocidental e passou a gerir de forma unificada diversos setores da economia.

A agricultura, por exemplo, passou a ser gerida de forma a ter uma política comum e vários entraves aduaneiros foram removidos. Os órgãos políticos da Comunidade Econômica Europeia foram unificados com os das demais comunidades (Comunidade do Aço e Carvão e Agência Atômica Europeia) e cada vez mais tais órgãos passaram a fazer atividades políticas que extrapolavam o âmbito econômico; a influência e poder do parlamento europeu e da Corte de Justiça foram paulatinamente crescendo.

O próximo passo de integração foi dado no começo da década de 90, com o tratado de Maastricht, que marca o início da União Europeia. Os países membros resolveram criar uma moeda comum e uma organização internacional que teria poderes amplos para tratar de finanças, comércio, regulamentação e outras áreas vitais da economia. O livre mercado abrangeria produtos, serviços, capital e pessoas, o que significa que haveria livre imigração dentro do bloco.

O tratado de Maastricht, porém, causou uma reflexão entre os juristas e cientistas políticos, que passaram a se perguntar o que era a nova União Europeia. Desde a Idade Moderna o modelo de organização política consagrado era o Estado-nação, marcado pelo tripé “povo-território-soberania”. Com o tratado de Maastricht, o mundo estava diante de um novo paradigma de ordem política, em que a soberania seria exercida de forma dúplice pelos Estados-membros e pelo novo ente.

O ineditismo do modelo tornava incoerente a comparação com os já testados modelos nacionais de federação e confederação e clamava por classificações doutrinárias ainda inéditas. Os países-membros ainda teriam território e povo, mas este povo poderia migrar livremente e, com restrições, participar da vida política de um outro país, sem ter necessariamente o vínculo da nacionalidade.

Além desta dissociação entre povo e território, elementos da soberania, como capacidade de organizar o próprio sistema financeiro e econômico, regulamentar os serviços públicos e controlar fronteiras foram divididos entre a nova União e os países-membros.

É justamente neste momento, em que o processo de integração parece irreversível, que começam a surgir os primeiros problemas. Além das dificuldades relacionadas à implementação do euro e da dificuldade que países retardatários como Espanha, Portugal e Grécia tinham em acompanhar economias plenamente desenvolvidas, surgiu um novo problema no processo de integração: o otimismo exagerado de parte dos líderes políticos, que julgavam que a União Europeia estava pronta para ser uma confederação nacional propriamente dita – isto é, um grande país – e, de forma açodada, resolveram dar o próximo passo na integração através do início de um processo constituinte.

Desta ideia exageradamente otimista nasce o projeto de Constituição europeia, cujo preâmbulo era uma declaração dos chefes de Estado europeus a respeito da necessidade de criar uma nova unidade política. Na dogmática do direito constitucional, uma Constituição não é feita por chefe de Estado, mas pelo povo; o preâmbulo das Constituições geralmente fala diretamente em nome de um povo que institui um novo pacto político. O projeto de Constituição também dispunha que as leis feitas pelo parlamento europeu seriam superiores em relação às leis nacionais.

Estranhamente, a fórmula usada pelo projeto de Constituição para tratar das leis do parlamento europeu era similar à fórmula usada pela Constituição dos Estados Unidos para tratar das leis federais em relação às estaduais, o que evidencia a ideia de tornar a União Europeia uma confederação nacional.

O projeto foi visto como uma afronta aos países-membros e, submetido a plebiscitos, foi rejeitado pelo povo da França e da Holanda. Ironicamente, os dois países que o rejeitaram são países que formam o “núcleo duro” da União Europeia, estando presentes desde a fundação da Comunidade do Carvão e do Aço, na década de 50. Com a rejeição popular, a Constituição nunca entrou em vigor, o que deixou os líderes europeus à procura dos erros cometidos.

Aparentemente, os líderes políticos europeus tiveram sucesso em identificar as falhas que levaram à rejeição popular do projeto constitucional. Após um período de arrefecimento, as principais lideranças europeias voltaram a empreender esforços de integração, mas desta vez através de um novo tratado internacional, ou seja, sem a medida drástica de imposição de uma nova ordem constitucional. Estes esforços resultaram no tratado de Lisboa, de 2009, que deu azo à União Europeia tal e qual a conhecemos.

O Tratado é bem mais sensível à identidade dos países-membros do que o malfadado projeto de Constituição. Dentre outras disposições, o Tratado determina que o processo de integração europeia será contínuo e que as decisões do bloco serão transparentes e populares. Com isso, afasta-se o conceito da fundação de uma confederação nacional (presente no projeto de Constituição) e a ideia de que as lideranças europeias podiam falar em nome do povo, sem consultá-lo.

O Tratado de Lisboa não é um documento constitucional. Toda sua redação parece deixar isto claro. Entretanto, assim como os outros tratados da integração europeia, ele também não é um simples tratado internacional. A União Europeia, nos moldes do Tratado de Lisboa, tem personalidade jurídica própria, órgãos administrativos, legislativos e judiciais e impõe aos Estados-membros compromissos bastante sérios com relação aos esforços de integração.

A União Europeia passa a controlar setores vitais da soberania dos Estados-membros, como as instituições responsáveis pela política financeira, administrativa e, em certa medida, econômica. Ainda, a previsão de livre circulação de pessoas dentro do bloco — um dos pilares da integração europeia — continua presente, sendo alvo fácil de ataque de movimentos nacionalistas.

A rejeição do modelo imposto pela Constituição em prol do modelo do Tratado de Lisboa foi um grande acerto, mas o futuro do bloco continuou incerto após a sua adoção. Crises econômicas periódicas impulsionaram o ressurgimento de movimentos nacionalistas, que crescem ao insuflar uma política de medo e de xenofobia. A política de livre imigração interna da União Europeia tornou-se o principal ponto de discordância trazido por tais partidos nos debates nacionais.

A livre imigração é vista como ruim para os interesses nacionais por descaracterizar a cultura local, forçar o Estado-membro a prover caros serviços sociais a estrangeiros e criar um clima de insegurança. Movimentos nacionalistas surgiram em todos os países, com especial destaque para França, Holanda, Alemanha e Áustria. Na França, os resultados eleitorais obtidos pelo partido denominado “Frente Nacional” foram se tornando cada vez mais expressivos, tirando a legenda da posição de um pequeno partido ideológico e alçando-a à posição de um expressivo agente político no Poder Legislativo.

Ainda, a ascensão de partidos com agenda nacionalista ao Poder Legislativo, através da superação de patamares mínimos de cláusula de barreira, faz com que muitas vezes os governos tenham que incluí-los em sua coalizão, o que significa que eles passam a ter voz (mesmo que minoritária) dentro da Administração.

No meio deste cenário conflituoso, o Reino Unido decide se retirar da União Europeia, contrariando expectativas e causando incertezas sobre o futuro. Ainda é cedo para entender profundamente os motivos que levaram o eleitorado britânico a optar pela saída do bloco e as consequências que isto trará, mas, em uma análise preliminar, podemos perceber que o mero ressurgimento de ondas nacionalistas não é o bastante para explicar o fenômeno. Boa parte da população estava incomodada com o status quo da União Europeia, e os motivos deste incômodo devem ser devidamente considerados.

Primeiramente, percebemos que locais que outrora eram classificados como bastante progressistas (e costumavam votar no Partido Trabalhista britânico, favorável à permanência no bloco), como a região industrializada de Manchester, não deram o retorno eleitoral esperado a favor da permanência. Esta apatia eleitoral pode ser traduzida pelo mau desempenho econômico das áreas de industrialização tradicional, que sofreram bastante com o desmantelamento de parte da rede de proteção social desde a década de 80 e com a mudança nos paradigmas industriais e transferência dos centros manufatureiros para a Ásia.

As consequências negativas da perda de poder econômico, como decadência urbana, também se fizeram sentir, aumentando a insatisfação popular. Um eleitorado insatisfeito se torna ou mais apático ou mais propenso a apoiar mudanças — quaisquer que sejam elas — e, portanto, a União Europeia passou a ser vista como um emblema de um novo mundo que os eleitores rejeitavam. Todo o projeto de integração europeu precisa de sacrifícios e só ocorre quando movido por otimismo político.

Uma população que se sente economicamente estagnada e ignorada pelas lideranças políticas não está disposta a fazer mais sacrifícios ou agir de forma otimista. Ainda, a parcela mais velha do eleitorado compareceu em massa às urnas e favoreceu a saída do bloco. Por quê? Por que os eleitores mais velhos se mobilizaram tanto para promover a separação britânica?

Parece que boa parte da insatisfação estava relacionada à mudança acentuada nas condições de vida das últimas décadas, em que, além da fragilidade econômica, os eleitores mais velhos se viam às voltas com mudanças culturais trazidas por um influxo maior de imigrantes que, em sua visão, consumiam mais serviços públicos do que os financiavam e demandavam mudanças culturais das instituições, sem respeitar uma suposta identidade nacional britânica. Trata-se, portanto, de um voto ressentido.

Tais explicações ainda são bastante simplistas e o tempo fará com que os estudiosos cheguem a conclusões mais seguras. Por ora, uma coisa é certa: os esforços de integração europeus devem continuar com redobrada cautela para não criar alienação econômica de parte da população e para que não haja sensação de perda de identidade nacional, em especial por conta do aumento de imigração. Estes dois fatores fazem com que parte do eleitorado entenda que está sendo alijado das decisões nacionais e preterido em prol de interesses maiores, o que fomenta a xenofobia e o ressentimento, com resultados contrários à integração europeia.

Possíveis soluções incluem aumentar o nível de participação popular nas decisões referentes à integração (o que já está previsto no Tratado de Lisboa), criar mecanismos mais eficazes para readequar setores da economia especialmente impactados pelas mudanças nos paradigmas industriais (ou seja, os antigos centros industriais europeus), permitir um debate franco a respeito de imigração, inclusive com a criação de reservas (mesmo que temporárias) ao influxo imigratório e implementar a ideia de que a integração europeia se dá em velocidades diferentes para diferentes países.

Não se pode esperar que um país de economia atrasada e história tumultuada como a Albânia se integre a rapidamente a um bloco com países como Alemanha e Holanda; é preciso que o processo seja feito de forma gradual e que países de diferentes características tenham tempo de integração diferenciado.

Em uma última nota, a União Europeia não deve poupar qualquer esforço no combate ao terrorismo e ao extremismo ideológico, devendo, se for o caso, promover uma integração plena das agências de inteligência e de certos setores policiais. O aumento de atentados terroristas, muitas vezes feitos por cidadãos com ideologia extremada, faz com que as populações tradicionais se sintam vulneráveis, inseguras e traídas.

Neste contexto, estes setores tradicionais passam a ver a União Europeia e seu projeto multicultural como um facilitador do radicalismo e do terrorismo, o que traz resultados bastante negativos. Se a União Europeia quer controlar fronteiras, fluxo imigratório e outros setores vitais da vida nacional, deve prover segurança às pessoas e dar uma resposta dura e efetiva aos que flertam com o terrorismo.

Nesta aurora do Século XXI, a União Europeia é um ente político-jurídico único, que desafia os paradigmas do constitucionalismo e do modelo de Estado-nação. É também motivo de orgulho para tantas pessoas que cresceram em uma Europa marcada pelos horrores da guerra, do totalitarismo, da divisão rígida de fronteiras, da privação econômica, etc.

A União Europeia conseguiu, através do Direito, unificar um continente que sempre se recusou a ser unido pela força. A sua existência deve ser comemorada e sua expansão deve ser estimulada. Para que esta organização internacional continue existindo e seus louváveis objetivos de integração sejam bem-sucedidos, é preciso que se ouça os críticos e se entenda o porquê do descontentamento de parte do povo. Há muito a comemorar e muito a aprimorar.

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