Opinião

Alcance da reforma trabalhista se mostrará com sua aplicação prática

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20 de outubro de 2017, 6h01

Depois de muita polêmica e protestos de parlamentares de partidos de oposição ao governo, de entidades de representação de trabalhadores e de algumas associações de magistrados de Justiça do Trabalho, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Michel Temer a Lei 13.467, de 13/7/2017, que entrará em vigor no próximo dia 11 de novembro, introduzindo profundas alterações na velha Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e, por consequência, criando aquilo que se poderia denominar de “um novo Direito do Trabalho brasileiro”.

Necessário assim tecer algumas considerações a respeito das bases jurídicas da nova lei para que se possa compreender o que a seguir se defenderá.

Nesse passo, vale lembrar que a chamada reforma trabalhista se encontra fundada essencialmente em duas grandes pilastras:

a) o reconhecimento e a valorização da autonomia individual visando permitir que trabalhadores e empregadores ou contratantes possam, em certas condições, negociar diretamente sem necessidade da tutela, às vezes excessiva do Estado e, para alguns, paternalista, que regerão o contrato de emprego ou de trabalho;

b) a valorização, o prestígio e a preferência da autonomia coletiva da vontade das categorias, que terão, a partir da entrada em vigor da nova lei, maior liberdade de negociar as condições a que se submeterão, na pressuposição de que ninguém mais do que quem trabalha e se apropria dos frutos do labor, os verdadeiros atores do processo produtivo, têm mais e melhores condições de conhecer suas próprias necessidades e realidades.

E para se constatar esse fato, basta se analisar os vários dispositivos da nova lei valorizando a autonomia da vontade individual do trabalhador e do empregador para convencionar diretamente por meio do diálogo e da negociação vários direitos, inclusive fora do padrão posto pelo Estado, desde, é claro, que não se achem marcados pelo caráter da indisponibilidade absoluta, como aqueles ligados à jornada, salários e outras condições de trabalho, dando-se prevalência àquilo que se tem denominado de “convencionado sobre o legislado” (artigo 611-A da CLT acrescido pela nova lei).

Como se vê, o legislador partiu do pressuposto de que aos atores da relação de emprego ou de trabalho e às categorias a que integram deve ser garantido o direito de negociar, especialmente por meio da autonomia coletiva, aquilo que entendam ser mais conveniente e aproximado de suas próprias realidades e necessidades, como, aliás, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 590.415-SC, ao deixar assentado no voto do ministro Luis Roberto Barroso:

A negociação coletiva é uma forma de superação de conflito que desempenha função política e social de grande relevância. De fato, ao incentivar o diálogo, ela tem uma atuação terapêutica sobre o conflito entre capital e trabalho e possibilita que as próprias categorias econômicas e profissionais disponham sobre as regras às quais se submeterão, garantindo aos empregados um sentimento de valor e de participação. É importante como experiência de autogoverno, como processo de autocompreensão e como exercício da habilidade e do poder de influenciar a vida no trabalho e fora do trabalho. É, portanto, um mecanismo de consolidação da democracia e de consecução autônoma da paz social. O reverso também parece ser procedente. A concepção paternalista que recusa à categoria dos trabalhadores a possibilidade de tomar as suas próprias decisões, de aprender com seus próprios erros[1].

Entendimento, aliás, que também foi acolhido pela corte no julgamento do RE 590.415-SC, a respeito da validade da negociação coletiva limitando, para efeitos de pagamento de horas in itinere, numa clara demonstração de que antes mesmo da edição da Lei 13.467/2017 se prestigiava a autonomia coletiva das categorias, para, por meio do mecanismo da negociação coletiva, superar o conflito com estabelecimento de normas que atendam a realidade dos trabalhadores e empregadores.

E essa autonomia para negociação foi também reconhecida e prestigiada no campo individual à medida que a nova lei permite que trabalhador e empregador possam, dentro de certos limites, negociar e convencionar fora do padrão legal vários direitos, como banco de horas (artigo 59, parágrafos 5º e 6º), intervalo intrajornada, inclusive com a redução do tempo e para amamentação da mulher lactante (artigo 396, parágrafo 2º), fracionamento de férias, alteração do trabalho presencial para teletrabalho (artigo 75-C, parágrafo 2º) e até mesmo tacitamente outros direitos, estimulando um louvável processo de diálogo direto sem intervenção estatal e até mesmo da entidade sindical. Tanto assim que criou a representação do trabalhador na empresa, como um espaço para esse diálogo direto (510-A acrescido à CLT pela citada lei), regulamentando o que se encontra previsto no artigo 11 da Carta da República e na Convenção 135 da OIT, tornando realidade aquilo que o constituinte de 1988, fundado no pluralismo democrático, pretendeu, não constituindo qualquer ameaça ao relevante papel social e político do sindicato, que em verdade deve agir em cooperação com a representação dos trabalhadores na empresa (artigo 5º da aludida convenção internacional).

É evidente, todavia, que a autonomia coletiva exige a presença de sindicatos fortes e representativos com capacidade de negociar com as empresas ou empregadores dentro de certos parâmetros e com equilíbrio de forças, o que infelizmente no Brasil, salvo algumas exceções, não ocorre. Ainda temos o sindicato organizado com base na categoria, fundado no princípio da unicidade, exigindo-se para que possa adquirir a capacidade de representação o registro no órgão competente do Estado, em absoluta falta de sintonia com os princípios e normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), especialmente com o disposto na Convenção 87, que até o momento foi não ratificada, o que torna o sindicato uma entidade de certa forma dependente do Estado para poder atuar.

Mesmo assim, e em que pese o previsto na nova lei, tanto a autonomia individual como a coletiva não são absolutas, como, aliás, nenhum direito ou liberdade o é. Ao contrário, embora reconhecida pelo texto maior (artigos 7º, inciso XXVI e 8º), encontram limites na proteção daquilo que doutrinariamente se convencionou denominar de padrão mínimo civilizatório, constituído pelo conjunto de direitos garantidos pela Carta da República, especialmente aqueles elencados nos artigos 7º e seguintes, quase todos marcados pelo caráter da indisponibilidade e que, em obséquio ao princípio vedatório do retrocesso social[2], previsto nos artigos 7º do texto supremo e 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica[3]), não podem ser retirados, ainda que mediante negociação coletiva. Todavia, isso não implica afirmar que não possam ser “flexibilizados” em homenagem ao princípio da adequação setorial negociada, mas sempre respeitado o núcleo essencial[4] do próprio direito.

Assim, tanto a autonomia individual da vontade como a coletiva têm balizas que precisam ser respeitadas, sob pena de se poder anular o que é negociado. É com essa visão que, pensamos, deverão ser interpretadas as disposições contidas na Lei 13.467/2017, que, como toda obra humana, não é perfeita, necessitando de aperfeiçoamentos pelo labor do intérprete, o que certamente a jurisprudência saberá fazer de forma equilibrada, como sempre o fez.

De fato, e como tivemos oportunidade de afirmar em dado momento, a negociação coletiva “não é apenas uma das faculdades inerentes ao exercício da liberdade sindical, é, além disso, a fonte ou o método que esses entes coletivos adotam para regular suas recíprocas relações, encontrando-se presente na própria sociedade e cujos titulares são os sujeitos representativos de interesses contrapostos que são transladados para o plano do Direito por meio do mecanismo da juridificação. Portanto, é uma fonte que, desse modo, resulta estabelecida no mesmo nível ou plano dos poderes do Estado para ditar outras normas, também as que disciplinam alguns aspectos das relações de trabalho, o que significa que a contratação coletiva não deve balizar-se em certas ocasiões aos parâmetros legais”[5]. Por conseguinte, não pode ser erigida em um cheque em branco para se negociar o que bem se entender, contrariamente o que alguns desavisados têm entendido.

É nessa perspectiva que se deve analisar e interpretar a Lei 13.467/2017, e não como apressadamente andaram defendendo alguns sem uma maior reflexão a respeito do alcance e dos limites que o texto maior e a própria lei impõe, mas também sem maniqueísmos ou posições corporativas ou ideológicas exacerbadas, que quase sempre veem na lei apenas o lado negativo.

Na verdade, o alcance da nova lei apenas será revelado com sua aplicação prática, que não pode jamais ser no sentido de achar que ela é perfeita, mas também sem nela ver apenas os aspectos negativos. E isso não implica afirmar que se tenha de aplicá-la tal qual como pretendeu o legislador; antes, deve ser interpretada e aplicada à luz dos valores e princípios previstos na Constituição da República e nos tratados e normas internacionais, especialmente aqueles de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

É isso que com certeza acontecerá.


[1] Como pondera Maurício Godinho Delgado, “não há Democracia sem que o segmento mais numeroso da população geste uma sólida e experimentada noção de autotutela e concomitantemente, uma experimentada e sólida noção de responsabilidade própria. No primeiro caso, para se defender dos tiranos antipopulares; no segundo caso, para não se sentir atraído pelas propostas tirânicas populistas”. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2011, p. 117.
[2] Lembra Gomes Canotilho que “os direitos sociais e econômicos (direitos dos trabalhadores, à assistência, à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. A proibição do retrocesso social nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fática), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos”. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p.336-337. 337.
[3] Ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.
[4] Lembra Humberto Virgilio Afonso da Silva, fundado em Konrad Hesse, que proteger o núcleo essencial de um direito fundamental implica proibir restrições à eficácia desse direito que o tornem sem significado para todos os indivíduos para boa parte deles. SILVA, Virgilio Afonso da. Direito Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 185.
[5] LIMA FILHO, Francisco das C. Negociação coletiva e boa-fé. O princípio no ordenamento jurídico brasileiro e espanhol. Curitiba: Editora DT, 2008, p. 28-30 e 89-90.

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  • Brave

    é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (MS) e professor de Direito do Trabalho na UCDB (Campo Grande). Tem mestrado e doutorado em Direito Social pela Universidad Castilla-la Mancha (Espanha).

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