Opinião

Confisco por bancos federais de precatórios e RPVs não sacados é inconstitucional

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17 de outubro de 2017, 14h54

Em julho de 2017 foi publicada a Lei 13.463/2017 que determinou o cancelamento de precatórios e RPVs federais que não tivessem sido levantados pelo credor no prazo de até dois anos.

Em setembro de 2017 os jurisdicionados que diligenciaram aos bancos depositários de precatórios federais – Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – receberam a notícia de que absolutamente todos os valores dos precatórios depositados há mais de dois anos haviam sido devolvidos ao Tesouro Nacional, independentemente da situação processual da execução e de prévia consulta e autorização do respectivo Juízo da Execução ou Presidente do Tribunal.

A situação revela verdadeiro confisco e merece reflexões.

Primeiro, porque a Lei 13.463/2017 padece de graves vícios de inconstitucionalidade. Segundo, porque, ainda que a lei fosse considerada válida, seria temerário admitir que os bancos pudessem, unilateralmente (sem consultar os juízes das execuções), realizar o juízo de subsunção entre o existente em cada caso concreto e o disposto na norma, sob pena de afrontar a inafastabilidade da jurisdição e o devido processo legal.

Sobre as inconstitucionalidades da norma, é preciso relembrar que o Supremo Tribunal Federal já estabeleceu que apenas a Constituição Federal pode impor restrições à expedição e ao pagamento de precatórios, de modo que “A matéria relativa a precatórios não chama a atuação do legislador infraconstitucional, menos ainda para impor restrições que não se coadunam com o direito à efetividade da jurisdição e o respeito à coisa julgada” (STF, ADI 3453, Rel. Min. Cármen Lúcia). No caso, o art. 2º da Lei 13.463/17 impôs verdadeiro “prazo de validade” aos precatórios expedidos, limitação essa que não existe na Constituição Federal e que, por isso, não poderia ter sido estabelecida pelo legislador ordinário, sob pena de ofensa ao art. 100, caput e parágrafo 5º, da CF.

Ademais, a Constituição estabelece a independência harmônica entre os Poderes da União, cabendo ao Judiciário a gestão dos precatórios. Ao dispor sobre o tema dos precatórios em matéria não prevista na Constituição Federal (“validade do precatório”) e determinar o repasse de valores sob a gestão do Judiciário para o Executivo-Devedor, o Legislativo invadiu a competência atribuída ao Judiciário para regular o tema e realizar a gestão de seus precatórios, violando a separação dos Poderes (Arts. 2º e 100, caput, e parágrafos 6º e 7º da CF).

A lei também desconsiderou que os recursos públicos atinentes a precatórios expedidos e depositados não são mais de titularidade da União, de modo que a determinação de estorno desses valores após o prazo de dois anos viola o direito de propriedade, tratando-se de verdadeiro confisco. Tanto é assim que o STF já decidiu que “uma vez afetados à sistemática da moratória prevista no art. 97 do ADCT, os recursos públicos não mais se encontram sob a administração do Poder Executivo, os quais são geridos pelo Tribunal de Justiça estadual.”, razão por que “…compete ao Poder Judiciário dispor sobre eventuais lacunas normativas acerca da usabilidade de verbas públicas finalisticamente direcionadas para o pagamento de débitos judiciais da Fazenda Pública, à luz do quadro constitucional vigente” (STF, MS 33761, Rel. Min. Edson Fachin). Assim, a transferência ao devedor dos valores já disponibilizados ao credor configura afronta ao direito de propriedade (Art. 5º, caput e XXII da CF).

Sob outro prisma, ao interferir com o direito de propriedade, a lei também embaraçou a satisfação da coisa julgada material, cuja efetividade depende exatamente da obtenção do bem da vida em sede de execução, indo de encontro à razoável duração do processo (Art. 5º, XXXVI e LXXVIII da CF). Isso porque o credor-exequente só terá acesso novamente a esses valores depois da prolação de nova decisão para a expedição de outro precatório, o qual, por determinação constitucional, só poderá ser pago no exercício financeiro seguinte. Exemplificativamente: se o credor fosse levantar determinado valor em setembro de 2017, mas verifica que esse recurso foi devolvido ao Tribunal, precisará pedir ao Juízo da execução a expedição de novo precatório. Este novo precatório, ainda que seja expedido até 1º/07/2018, só será pago no exercício de 2019 (provavelmente no segundo semestre, segundo a praxis demonstra). Como se vê, em razão do confisco dos valores depositados o credor ficará por quase dois anos privado do valor que, segundo decisão judicial transitada em julgado, lhe pertence. Além disso, a decisão que determinar a expedição de novo precatório seguramente poderá ser objeto de novos recursos pela Fazenda Pública.

Ou seja, permitir o cancelamento de precatórios não levantados no prazo de dois anos constitui incentivo para o devedor apresentar todo e qualquer tipo de recurso ou incidente protelatório com vistas a atrasar o trâmite da execução e impedir a expedição dos alvarás de levantamento pelos Juízes. Atrasando a ordem de levantamento por mais de dois anos o devedor será premiado com a transferência dos valores para os seus cofres em contrariedade ao brocardo latino non venire contra factum proprium.

Ainda sob o prisma da proteção à confiança, verifica-se que a lei 13.463 de 2017 cria insegurança jurídica ao retroagir e atingir depósitos realizados antes de sua edição, ofendendo o disposto no art. 5º, caput, XXXVI, da CF. De fato, os jurisdicionados não esperavam por essa alteração da “regra do jogo” no “meio do jogo”. Muitos credores da União provavelmente fizeram ou faziam planos com os valores depositados que em breve seriam por eles sacados (aguardando-se, por exemplo, a finalização de algum incidente ou a expedição do competente alvará de levantamento). Seguramente há casos em que os beneficiários dos precatórios chegaram a contabilizar esses valores em suas demonstrações fiscais e recolher os impostos devidos, em obediência à jurisprudência que assim determina. Agora, com o confisco desses valores, esses jurisdicionados poderão ter sérios problemas de caixa para adimplir os tributos devidos nos exercícios programados ou problemas operacionais/fiscais decorrentes da necessidade de refazimento de sua contabilidade. Provavelmente também há casos em que cessionários adquiriram determinados precatórios líquidos, certos e depositados – cuja certeza seguramente diminuiu muito o “deságio” do preço pago ao cedente-credor original – e que agora precisarão lutar pela expedição de novo requisitório com impacto significativo sobre a projeção econômica feita para a realização do negócio. Afinal, ninguém esperava que o legislador ordinário viesse a impor prazo de validade aos precatórios e, ainda por cima, determinar a retroação dessa regra para os precatórios expedidos e depositados antes da vigência da nova norma.

Em suma, não há dúvida de que andou mal o legislador ao aprovar a lei 13.463 de 2017, o que se espera seja reconhecido pelo STF quando da apreciação da ADI 5755, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, que está sob a relatoria da Exma. Ministra Rosa Weber.

Mas a questão vai além das inconstitucionalidades supracitadas.

A transferência ao Tesouro de precatórios depositados há mais de dois anos, realizada unilateralmente pelos bancos depositários (Caixa Econômica e Banco do Brasil) em setembro deste ano, afrontou o devido processo legal e a competência dos juízos das respectivas execuções, já que pressupôs a inércia dos credores em absolutamente todos os casos de depósitos não levantados no prazo de dois anos.

A situação é preocupante diante da informação de que os bancos continuarão realizando essas operações mensalmente independentemente de ordem (ou comunicação) do (ao) Juízo da execução.

Ocorre que a exposição de motivos da lei 13463/2017 revela que o legislador se preocupou em cancelar apenas os precatórios que não houvessem sido levantados, no prazo de dois anos, em decorrência de inércia, isto é, da omissão dos respectivos credores:

2. O Projeto de Lei em pauta propõe o cancelamento dos precatórios e RPVs em consonância com o Parecer 04/2016/ASSE/CGU/AGU, aprovado pelo Advogado Geral da União, em que restou assentado que a inércia dos credores de precatórios e requisições judiciais em levantar o numerário depositado estabiliza a situação jurídica da União como proprietária das quantias, e permite a restituição aos cofres públicos.

3. Além disso, o próprio Poder Judiciário, por meio da Resolução CJF nº 405, de 9 de junho de 2016 (arts. 45 a 47) reconhece a possibilidade de cancelamento de requisitórios após a constatação de que os credores permaneceram inertes após o prazo de dois anos contados da realização dos depósitos.” (Exposição de motivos – PL 7226)

E não haveria como ser diferente, pois, tivesse a lei presumido a inércia/omissão dos credores em todo e qualquer precatório depositado há mais de dois anos, haveria indubitável afronta ao devido processo legal. Isso porque muitas vezes o valor não é levantado pelo credor no prazo de dois anos em razão de (i) expressa determinação do juízo da execução; (ii) pendência de recurso/incidente oposto pela própria Fazenda Pública no processo de execução ou em processo correlato (por exemplo: ação cautelar/ação rescisória); (iii) necessidade de definição na execução sobre a titularidade do crédito em decorrência de cessão do precatório ou sucessão em caso de morte do beneficiário originário; (iv) morte do advogado do credor; (v) mora do Juízo da execução na expedição do alvará de levantamento, mesmo na hipótese de o credor-exequente ter requerido formalmente o levantamento do valor nos autos, dentre outras.

Assim, considerando que a lei em testilha objetivou cancelar apenas os precatórios não levantados no prazo estabelecido em função de flagrante inércia do credor, não poderiam os bancos depositários realizar, unilateralmente, o juízo de subsunção do disposto nos casos concretos à norma decorrente da lei 13.463/2017 sem a prévia oitiva dos Juízes da execução. Proceder dessa forma é temerário, pois possibilita a transferência para o Tesouro de valores que estão sendo perseguidos diuturnamente pelos credores e seus advogados nos autos dos processos de execução, ou seja, em situações nas quais não há inércia alguma. A gravidade dos efeitos também revela que a ausência de prévia comunicação aos juízos das respectivas execuções contraria o due process of law, desrespeita a competência desses mesmos juízos e ignora a inafastabilidade da jurisdição (art 5º, XXXV, LIV e LV da CF c/c art. 3º do CPC/15).

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