Opinião

Não há previsão legal para afastar parlamentar cautelarmente

Autor

  • Hugo Souto Kalil

    é advogado do Senado Federal e mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Frequentou o XX Curso de Especialização em Direito Penal Econômico Internacional e Europeu na Universidade de Coimbra.

14 de outubro de 2017, 9h12

O presente artigo busca abordar questão tormentosa nos últimos dias da vida e da experiência jurídica nacionais, referente à controvérsia instaurada acerca da possibilidade de aplicação de medidas cautelares pessoais, de natureza penal, aos parlamentares, especialmente em vista da recente decisão que envolve o Senador Aécio Neves.

A matéria que constitui o cerne deste trabalho nasce com a comunicação feita pelo ministro Marco Aurélio Mello ao presidente do Senado Federal, que a 1ª Turma daquela Corte havia determinado, por maioria, nos termos do voto do ministro Luís Roberto Barroso, medidas cautelares pessoais, de caráter penal, ao senador investigado.

O contexto da ação cautelar diz respeito a delitos de corrupção e de obstrução de investigação em virtude da alegada prática, por Senador da República, de atos parlamentares stricto sensu que pretenderiam o enfraquecimento da operação “lava jato”, consistentes, supostamente, em:

a) aprovação de anistia ao “caixa dois” eleitoral e

b) aprovação de projeto de lei de abuso de autoridade.

A aplicabilidade de medidas cautelares diversas da prisão a Senadores da República e a Deputados Federais é tormentosa.

Os defensores da incidência dessas cautelares argumentam no sentido de que tais providências judiciais não se confundem com a prisão e, portanto, não têm regramento constitucional específico em relação aos Congressistas.

O argumento, no entanto, é uma simplificação um tanto excessiva do problema e, por isso, deve ser visto com reservas.

Em nossa ordem jurídica, ressalvada a prisão temporária, as medidas cautelares pessoais, todas, estão ligadas à prisão preventiva por uma ordem sistemática e lógico-jurídica. Ora são dadas em substituição (sucedâneo) a esta modalidade de prisão (como a prisão domiciliar substitutiva), ora perdem a eficácia se não estiverem ancoradas em seus requisitos (caso da prisão em flagrante), ora haurem a sua condição de possibilidade a partir de potencial aplicação (caso das demais medidas cautelares). As medidas cautelares, assim, orbitam a prisão preventiva.

As medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal constituem limitação da esfera de liberdade de um investigado ou acusado determinada pelo juiz competente. A exequibilidade da medida cautelar é assegurada somente pela existência da sanção prevista expressamente no artigo 282, §4º, do Código de Processo Penal, consistente na conversão da medida cautelar em prisão preventiva.

Para os investigados em geral, o descumprimento de medida cautelar é uma das causas de decretação de prisão preventiva – uma hipótese outra, além daquelas previstas no art. 312 do Código. É a partir desta premissa exegética que se devem situar as medidas cautelares do art. 319 do CPP – o que importa em reconhecer o seu caráter acessório em relação à prisão preventiva, como homenagem do legislador ao princípio da vedação de excesso em matéria penal.

Os parlamentares, contudo, não podem sofrer prisão preventiva, e isso por força de determinação constitucional expressa. A medida cautelar diversa da prisão se revela, assim, como acessório, ao qual se estende a proibição quanto à medida principal. Conforme o comezinho brocardo, accessorium sequitur principale.

Em outras palavras, não haveria sentido em atribuir validade a medidas cautelares cujo fundamento mesmo de exequibilidade, em caso de descumprimento, não pode ser manejado em face de seu destinatário. Não pode o direito retirar com uma mão aquilo que deu com a outra.

Cuida-se de uma incongruência lógica e jurídica grave. Há muito a doutrina do direito reconhece que a norma jurídica sem a cominação de efeito em seu preceito primário (sanção) não pode existir. Em reforço, note-se que o disposto no §6º do artigo 282 do Código de Processo Penal estabelece que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”.

Ora, só se substitui aquilo que de que se tem posse. Se a própria preventiva está fora do alcance do Poder Judiciário, no caso dos membros do Congresso Nacional, é evidente que descabe falar em sua substituição por medida cautelar.

Desse modo, a melhor interpretação da imunidade parlamentar contra a prisão (freedom from arrest), em leitura estritamente legal e em vista da unidade lógica da matéria, é a de que aos parlamentares não se pode aplicar medida cautelar pessoal penal, porque: i) impossível a substituição da prisão preventiva por tais medidas (art. 282, §6º); ii) não permitida ulterior conversão das cautelares, em caso de descumprimento, em prisão preventiva (art. 282, §4º).

Há, ainda, uma razão de ordem histórico-teleológica a dar suporte a essa conclusão. Toda a literatura que trata do Estatuto do Congressista assevera que as imunidades parlamentares, tanto a formal quanto a material, se prestam a assegurar o exercício livre e desimpedido do mandato parlamentar outorgado pelo povo.

Quando da elaboração do texto constitucional, não havia ainda nenhuma medida cautelar pessoal diversa da prisão estabelecida no caderno processual penal brasileiro. Essas medidas, na verdade, vieram a ser estabelecidas em reforma processual de 2011. Assim, uma exegese que venha a pretender a limitação da interpretação da cláusula de vedação de prisão acaba por estar em desajuste com a finalidade do instituto e com o contexto da Constituição de 1988.

Deve-se reconhecer, entretanto, que essas medidas cautelares têm o efetivo condão de interferir no livre exercício do mandato parlamentar – na medida em que retiram, ainda que temporariamente, do patrimônio jurídico do investigado ou acusado uma parcela de sua liberdade pessoal (seja na modalidade de locomoção, de comunicação ou, ainda mais grave, no próprio exercício da função pública).

A opção do Constituinte, vê-se bem, foi a de preservar a plena liberdade do parlamentar, mesmo quando viesse a ser investigado ou acusado por crime (independentemente da gravidade de sua conduta, salvo o caso de flagrante delito por crimes inafiançáveis).

Em síntese: a garantia do art. 53, §2º, da Constituição da República se impõe contra a aplicação de prisão ou de qualquer outra medida de caráter pessoal que venha a impor limitações à esfera de liberdade do parlamentar, porque a finalidade da disposição constitucional é a preservação do mandato e da plena liberdade de seu exercício.

A proteção ao pleno exercício do mandato é corroborada pelas normas constitucionais que permitem à respectiva Casa Legislativa sustar o andamento de eventual ação penal em razão de recebimento de denúncia contra Senador ou Deputado (art. 53, §3º) e deliberar sobre a perda do mandato, caso o parlamentar sofra condenação criminal em sentença transitada em julgado (art. 55, VI e §2º).

Por mais essa razão, é descabida a aplicação de medidas cautelares penais aos membros do Congresso Nacional no curso do mandato, salvo a hipótese constitucional de flagrante delito por crime inafiançável — quando, então, o STF decidirá, em vista do caso concreto, sobre a necessidade de preventiva ou sobre a fixação de cautelares outras.

O Estatuto do Congressista tem assento constitucional e, por essa razão, sempre prevalece sobre disposição infraconstitucional eventualmente em confronto.

A preocupação constitucional em assegurar o livre exercício do mandato outorgado pelo voto popular guarda estreita relação com o princípio democrático e com a preservação das instituições públicas.

A previsão constitucional da imunidade processual parlamentar é garantia indispensável ao livre e pleno desempenho da atividade parlamentar, vinculada ao cargo ocupado e não à pessoa do parlamentar. Trata-se de instituto jurídico de natureza intuitu funcionae — e não intuitu personae, produzindo efeitos desde a expedição do diploma, nos termos do disposto no art. 53, § 1º, da Constituição Federal.

As hipóteses de cassação ou perda de mandato parlamentar devem ser arrimadas na Constituição da República — ainda que a Constituição possa autorizar alguma atividade supletiva dos Regimentos Internos, neste particular.[1] Não há, por seu turno, previsão constitucional de suspensão de mandato.[2]

Como afirmou o relator na Ação Cautelar 4.327, além da ausência de autorização constitucional, não há sequer previsão de afastamento de mandato para parlamentares no Código de Processo Penal. A cautelar de suspensão de função pública evidentemente não poderia ser aplicada aos membros do Congresso Nacional, cujo regime jurídico é específico e de estatura constitucional.

A conclusão ganha ainda mais força quando se recorda que a Constituição não autoriza a perda automática de mandato em caso algum. Mesmo quando há condenação judicial transitada em julgado, é preciso uma declaração da Casa Parlamentar, observados a ampla defesa e o contraditório, para que o membro do Congresso Nacional perca o mandato.

Note-se a situação paradoxal. De um lado, na Câmara dos Deputados, um membro da Casa Parlamentar cumpre pena definitiva em estabelecimento prisional e, por força de expressa disposição constitucional, permanece no exercício do mandato parlamentar, pela vontade de seus pares. Do outro lado, no Senado Federal, um senador da República no exercício de suas funções vem a ser afastado “temporariamente”, sine die, do mandato parlamentar por ato do Poder Judiciário, sem que sequer tenha sido oferecida denúncia contra si, unicamente em função de investigação em curso.

Sequer se afigura válido, nesta seara ora palmilhada, a argumentação que, virtualmente, se lastreie na inafastabilidade da jurisdição e no poder geral de cautela da magistratura. O fato é que o manejo de princípios constitucionais jamais deve ensejar o afastamento, na interpretação jurídica, de regra constitucional originária (e, portanto, de mesma estatura), sob pena de se declarar, por via oblíqua, a inconstitucionalidade de norma constitucional originária, o que há muito já se sabe impossível em nosso ordenamento constitucional.[3]

Além disso, não pode haver poder geral de cautela em matéria de fixação de medidas cautelares pessoais – justamente em homenagem aos princípios da taxatividade e da legalidade penal, tão frequentemente desprezados nesta quadra histórica.[4]

O presente quadro de instabilidade política e jurídica do país está a exigir das instituições brasileiras o estrito cumprimento do texto constitucional e dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Como diria Rui Barbosa, “fora da lei não há salvação”.

Quanto à imunidade material, importa ressaltar que a atividade legislativa constitui o próprio núcleo essencial da imunidade material parlamentar. São competências do Congresso Nacional dispor sobre anistia (art. 48, inc. VIII, da Constituição da República) e sobre direito penal (donde se inclui a repressão ao abuso de autoridade).

Mais uma vez, recorre-se à legalidade penal, porque esta é a única pauta hermenêutica admissível vis-à-vis os direitos e garantias fundamentais dos investigados: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Como afirma Zaffaroni, “a Constituição da República não admite que a doutrina, a jurisprudência ou o costume sejam capazes de habilitar o poder punitivo”. Ora, o que ontem e sempre se considerou protegido debaixo da imunidade parlamentar não pode hoje — com efeitos retroativos aos atos praticados até a presente data — passar a ser interpretado como conduta criminalmente relevante.[5]

A pretensão de enquadramento de atos legislativos e parlamentares stricto sensu no delito de obstrução de investigação de infração penal de organização criminosa, resulta em violação à liberdade da atividade legislativa.

Pelas razões expostas, entende-se que:

— Não tem cabimento a aplicação de medidas cautelares penais de natureza pessoal em face de membros do Congresso Nacional, salvo na hipótese de serem fixadas como substituição à prisão em flagrante delito por crime inafiançável, nos termos do art. 53, §2º, da Constituição da República.

— A imposição de medida cautelar a membro do Congresso Nacional constitui ato inconstitucional, na medida em que agride ao disposto no art. 53 da Constituição da República, em especial quanto à cláusula de vedação de prisão – cuja escorreita interpretação abarca a vedação de medidas cautelares no escopo da proteção constitucional à plena liberdade do exercício do mandato parlamentar.

— Ademais, a imposição de medida cautelar a pessoa que não pode ser sujeita à prisão preventiva constitui clara violação da unidade sistemática do Código de Processo Penal, especialmente em virtude do disposto no art. 282, §§4º e 6º da Lei Processual Penal.

— Não há previsão legal específica de medida cautelar de afastamento ou suspensão de mandato parlamentar. O mandato parlamentar jamais pode ser suspenso por ato do Poder Judiciário. É o que se extrai, por analogia, do disposto no art. 55 da Constituição da República.


[1] Assim, é precisa e valiosa a lição do eminente Ministro Marco Aurélio:

A liminar de afastamento é, de regra, incabível, sobretudo se considerado o fato de o desempenho parlamentar estar vinculado a mandato que se exaure no tempo. (…) O afastamento precoce – e não ocorre o fenômeno sequer ante título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, porquanto a Constituição Federal pressupõe declaração da Mesa da Casa Legislativa (artigo 53, § 3°) – não é compatível com os parâmetros constitucionais que a todos, indistintamente, submetem, inclusive os integrantes do Supremo, guarda maior da Constituição Federal. Implica o empréstimo de pouca importância ao Senado da República, como se os integrantes não fossem agentes políticos de estatura ímpar, que têm incolumidade resguardada por preceitos maiores.

(…)

A suspensão do mandato eletivo, verdadeira cassação temporária branca, sequer está prevista, como cautelar substitutiva da prisão, no caso descabida, no artigo 319 do Código de Processo Penal.

[2] A suspensão de mandato parlamentar somente existe como pena intermediária aplicável no âmbito de julgamento por quebra de decoro parlamentar, no Conselho de Ética da Casa Legislativa.

[3] Importa trazer a lição de Humberto Ávila, que demonstra como as regras são, de partida, resultado da concretização de princípios efetuada pelo legislador e, portanto, não devem ceder diante de princípios de mesma estatura hierárquica. Sobre isso, a sua função eficacial de trincheiras:

Como já mencionado, as regras possuem uma rigidez maior, na medida em que a sua superação só é admissível se houver razões suficientemente fortes para tanto, quer na própria finalidade subjacente à regra, quer nos princípios superiores a ela. Daí porque as regras só podem ser superadas (defeasibility of rules) se houver razões extraordinárias para isso, cuja avaliação perpassa o postulado da razoabilidade, adiante analisado. A expressão “trincheira” bem revela o obstáculo que as regras criam para sua superação, bem maior do que aquele criado por um princípio. Esse é o motivo pelo qual, se houver um conflito real entre um princípio e uma regra de mesmo nível hierárquico, deverá prevalecer a regra, e não o princípio, dada a função decisiva que qualifica a primeira. A regra consiste numa espécie de decisão parlamentar preliminar acerca de um conflito de interesses e, por isso mesmo, deve prevalecer em caso de conflito com uma norma imediatamente complementar, como é o caso dos princípios. Daí a função eficacial de trincheira das regras.

(Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. ampl. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 103). (destacou-se).

[4] Sobre o tema, a jurisprudência da CIDH: “La Corte ha establecido en su jurisprudencia que las medidas cautelares que afectan, entre otras, la libertad personal del procesado tienen un carácter excepcional, ya que se encuentran limitadas por el derecho a la presunción de inocencia y los principios de legalidad, necesidad y proporcionalidad, indispensables en una sociedad democratica.”

(Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_135_esp.pdf. Extraído da manifestação do IDDD na ADPF n. 395).

E ainda: “Se se entende por analogia completar o texto legal, de modo a considerar proibido aquilo que ele não proíbe ou aquilo que ele permite, censurável aquilo que ele não censura ou, em geral, punível aquilo que ele não pune, baseando-se a decisão em que tal texto proíbe, não justifica, censura ou pune condutas similares ou de similar gravidade, tal procedimento de interpretação fica absolutamente excluído da elaboração jurídica do direito penal, porque a norma tem um limite linguisticamente insuperável, que é a máxima capacidade da palavra.”

(Zaffaroni e Batista. Direito Penal Brasileiro, Vol. I, Rio de Janeiro: Revan, 2015. pp. 208-209).

[5] “2. Não obstante, as mudanças de critério jurisprudencial, em particular quando atingem certa generalidade, não podem deixar de compartilhar as razões que fundamentam o princípio da legalidade e a proibição de retroatividade detrimentosa: não é admissível que se apene a quem não poderia conhecer a proibição. Quando uma ação, que até certo momento era considerada lícita, passa a ser tratada como ilícita em razão de um novo critério interpretativo, ela não pode ser imputada ao agente, porque isso equivaleria a pretender que os cidadãos devessem abster-se não apenas daquilo que a jurisprudência considera legalmente proibido mas também daquilo passível de vir a ser julgado proibido (ou seja, do “proibível”) em virtude de possíveis e inovadores critérios interpretativos.(…)”

(Zaffaroni, Eugênio Raúl. Batista, Nilo. Direito Penal Brasileiro, Vol. I, Rio de Janeiro: Revan, 2015. pp. 223-224). (destacou-se).

Autores

  • é advogado do Senado Federal e mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Frequentou o XX Curso de Especialização em Direito Penal Econômico Internacional e Europeu, na Universidade de Coimbra.

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