Ambiente Jurídico

Papel da advocacia no inquérito civil em questão ambiental

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

14 de outubro de 2017, 10h56

Spacca
A Lei 7.347/1985 previu a instauração do inquérito civil público (IC)[1], sob a presidência exclusiva de membro do Ministério Público, para apuração de danos causados a interesses coletivos e difusos, dentre os quais está o meio ambiente. Essa atribuição veio fortalecida pela Constituição de 1988, que elevou o IC ao status de instrumento constitucional para a defesa dos interesses da sociedade[2].

A compreensão do IC é essencial ao advogado que milita na área ambiental, uma vez que o seu acompanhamento pode ser vantajoso para seu cliente[3]. Posso afirmar, por experiência pessoal, que a maioria dos ICs não dá origem a uma ação civil pública (ACP). O número de ações coletivas poderia ser ainda menor se houvesse uma efetiva atuação defensiva ao longo da tramitação do expediente extraprocessual.

Suponha-se que alguém tenha feito uma representação ao Ministério Público acerca de um dano ambiental qualquer, imputando sua autoria a uma empresa. A partir daí, e frente à documentação apresentada, será instaurado o IC[4], que levará o promotor de Justiça a buscar fundamentalmente a prova da materialidade do fato (lícito ou ilícito[5]) danoso e a identificação de seus responsáveis. É claro que outros elementos são extremamente relevantes no desenrolar da investigação, como a busca da extensão dos danos e sua quantificação, para oportunizar a devida reparação.

Para instruir o IC, podem ser produzidas as mais diversas provas admitidas em Direito, sob a requisição direta do Ministério Público, tanto a órgãos da iniciativa pública quanto privada, assim como a inquirição de pessoas. Algumas delas, contudo, dependem de autorização judicial, que são aquelas amparadas por sigilo legal, tais como os dados bancários ou fiscais.  

Pode acontecer que as provas recolhidas na hipótese acima confirmem a autoria indicada pelo representante. Por exemplo, as testemunhas ouvidas afirmam terem visto funcionários da empresa matando animais nativos sem autorização da autoridade competente. Se o investigado não acompanha o IC, não responde às requisições, nega-se a comparecer à Promotoria de Justiça para ser ouvido, pode acabar respondendo nas esferas civil, administrativa e criminal mesmo que inocente. Agindo de outra forma, poderia ter demonstrado que as testemunhas falsearam para lhe prejudicar, em razão de algum desajuste, como a demissão destas.

Ainda que o IC não esteja sujeito às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, já que se trata de expediente de cunho inquisitorial, à semelhança do inquérito policial, o presidente do IC não deixaria de juntar aos autos prova documental da defesa e considerá-la na formação de seu juízo de convicção. Até mesmo requerimentos de diligências para apuração da verdade real podem ser deduzidos no IC e acolhidos, se pertinentes. Considerando que boa parte dos danos ambientais constatados são noticiados ao Ministério Público, que instaura o respectivo IC, o advogado ambiental, tomando conhecimento de sua existência, deve fazer o acompanhamento na Promotoria de Justiça. Ainda que ele não consiga demonstrar no IC a inexistência do fato ou que não tem relação com ele, pode evidenciar a menor amplitude da extensão do dano inicialmente noticiado, que há coautores; enfim, há uma série de possibilidades defensivas no âmbito da instrução do expediente.

Outro elemento a ser bastante considerado é a intenção do agente. Se a ele é imputado um fato danoso seguido de omissão do investigado ou simples negativa de responsabilidade, a situação é uma. Já se o degradador tem de fato a responsabilidade e adota providências para reduzir os impactos ambientais negativos, coloca equipes próprias para fazê-los cessar, desde logo atua em favor da natureza e da população eventualmente impactada pelo ocorrido, a situação é diversa. Em uma e outra situação as consequências jurídicas acabam sendo diferentes.

Na esfera criminal, a Lei 9.605/1998 arrola inúmeras circunstâncias atenuantes relacionadas ao que dissemos[6]. Com o mesmo propósito, o Decreto n. 6.514/08 concede descontos substanciais ao infrator que acata as decisões administrativas e as cumpre efetivamente[7].

Destarte, o agir em prol do meio ambiente atende ao disposto no art. 225, “caput”, da CF, que impõe a todos – poder público e coletividade – o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Por certo que a atuação preventiva é a melhor alternativa, mas, se o fato indesejado já ocorreu, suas consequências devem ser minimizadas, e o Direito valoriza ações nesse sentido.   

Sob o enfoque do mercado, cada vez mais a empresa deve estar atenta às exigências de seus consumidores. Se fechar os olhos para o que pensam seus clientes, estará fadada ao insucesso. Nesse passo, as palavras da “moda” são “empresa verde”, “sustentabilidade”, “ecodesign”, “produtos orgânicos”, que se relacionam com a “ética ambiental”, a qual pode ser comprovada de diversas formas, como através de selos verdes, ISO 14.001, auditorias externas, compliance ambiental.

Também é correto afirmar que não responder a ações judiciais relacionadas a ocorrências de danos ambientais é sinal de que determinada empresa é “amiga da natureza”. E quanto maior o número de demandas dessa ordem, maiores são os indicativos de que o comprometimento com boas práticas verdes não está presente ou é apenas aparente (greenwashing).

A Lei da Ação Civil Pública originariamente previa apenas duas hipóteses para a conclusão do IC: ajuizamento da ACP ou arquivamento. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, surgiu a possibilidade de celebração de compromisso de ajustamento de conduta[8] (artigo 113 do CDC)[9]. Mais adiante, a legislação que regulamentou o Ministério Público concedeu-lhe a possibilidade de expedir recomendações – sem caráter vinculativo – para que o investigado se coloque em conformidade com a lei.[10]

Essa evolução normativa mostra porque o objetivo inicial da instituição do IC hodiernamente sofreu alteração. De fato, enquanto o inquérito policial é destinado ao esclarecimento de infrações penais, com busca de prova da materialidade e de indícios de autoria para embasamento da denúncia, o IC originalmente tinha a finalidade de apurar lesões a interesses coletivos lato sensu, apurando-se a materialidade e autoria dos fatos para fosse possível a propositura da ACP.

Tanto na esfera penal quanto na civil, a participação do investigado tinha pouca relevância para evitar a propositura da ação judicial. No crime, permanece vedada qualquer forma de negociação com a autoridade investigante com tal propósito. Inobstante, as regras não permanecem estáticas desde a elaboração do Código de Processo Penal. Com a Lei n. 9.099/95, por exemplo, foram instituídas a transação penal e a suspensão condicional do processo, que, respectivamente, barram o oferecimento de denúncia ou o processamento criminal. Nesses casos, contudo, é necessária a intervenção do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Já no processo civil coletivo, o compromisso de ajustamento de conduta firmado entre o investigado e o Ministério Público independe da participação do Estado-Juiz e substitui a propositura da ACP. Se até o novo Código de Processo Civil não havia uma indicação legal acerca da priorização do TAC ou da ACP, parece-nos que o novo CPC alterou essa lógica. Conforme o estatuto processual:

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

A leitura que fazemos é de que a norma instrumental elevou a autocomposição ao patamar de um comportamento extraprocessual e processual exigível de todos os operadores do Direito, apesar de não excluir a jurisdição estatal a quem sofra ameça ou lesão a direito.

Observe-se que, como o parágrafo 3º faz referência a “inclusive no curso do processo judicial”, advogados e membros do Ministério Público deverão estimular métodos consensuais de resolução dos conflitos antes do processo, com o propósito de evitar o litígio, na máxima medida possível. E como isso deve ocorrer na esfera ambiental?

Uma das principais formas, já destacamos, é o acompanhamento do IC, ou seja, a partir de sua instauração, compete ao advogado do investigado ser colaborativo, apresentar documentos, orientar seu cliente a prestar informações, contestar eventuais provas que apresentem algum tipo de equívoco ou imprecisão, requerer diligências.

Caso a atuação defensiva tenha sido suficiente para levar ao arquivamento do IC, o expediente administrativo será arquivado e encaminhado ao Conselho Superior do Ministério Público para homologação.[11] Veja-se que esse ato não encerra a atuação da defesa técnica, que deveria continuar atuando até a resolução definitiva do IC. Nesse sentido:

§ 3º Até a sessão do Conselho Superior do Ministério Público ou da Câmara de Coordenação e Revisão respectiva, para que seja homologada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão as pessoas co-legitimadas apresentar razões escritas ou documentos, que serão juntados aos autos do inquérito ou do procedimento preparatório.

Se o arquivamento for inviável, como regra o Ministério Público abre a possibilidade ao investigado para celebração de TAC, o que também pode ser requerido por este. Aqui abre-se uma importante fase de negociação entre compromitente e compromissário. E quanto mais eficaz o diálogo, maiores as possibilidades de formação do título executivo extrajudicial no TAC, sem a necessidade de judicialização do caso.

Algumas das vantagens da colaboração do investigado e da não propositura da ACP já foram vistas, mas podemos agregar que a assinatura do TAC abre algumas possibilidades singulares.

A transação penal e a suspensão condicional do processo dependem, respectivamente, da prévia composição do dano e de laudo da reparação do dano.[12] Considerando que uma ACP habitualmente tramita durante muitos anos, a aplicação dos institutos processuais penais mencionados acabam não podendo ser aplicados se o investigado aguarda pela sentença e execução da sentença da ACP. Logo, apesar da independência das esferas penal, administrativa e civil[13], há uma relação entre elas que não pode ser negada.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 102.439, afirmou que a existência de TAC não impede a persecução penal. Apesar disso, o ajustamento da conduta civil não é irrelevante às tutelas penal e administrativa, tanto que a recente Resolução n. 179 do CNMP dispôs o seguinte:

 Art. 1º, § 3º A celebração do compromisso de ajustamento de conduta com o Ministério Público não afasta, necessariamente, a eventual responsabilidade administrativa ou penal pelo mesmo fato, nem importa, automaticamente, no reconhecimento de responsabilidade para outros fins que não os estabelecidos expressamente no compromisso. (grifamos)

Se o Conselho Nacional do Ministério Público afirmou que o TAC não afasta “necessariamente” as responsabilides administrativa e penal é porque, em algumas situações, pode afastar. Caberá à doutrina e à jurisprudência apontarem um norte para o operador do Direito acerca da melhor interpretação desse dispositivo normativo. Uma das situações possíveis é a insignificância do fato, que, apesar de majoritariamente não ser reconhecida pelo STF, já foi motivo para o trancamento de ação penal nos autos do HC 112.563.

Enfim, a advocacia ambiental normalmente se centra no polo passivo. Isto é, dificilmente alguém contrata um advogado para a defesa do meio ambiente, embora isso possa ocorrer, como para o ajuizamento de ação popular ou para representar ao Ministério Público pela instauração de IC.

E, como vimos, a defesa daquele a quem se imputa a degradação ambiental não ocorre sempre ou prioritariamente perante o Judiciário. Nesse viés, impõe-se ao advogado acompanhar e atuar de forma eficaz perante o órgão ambiental (autuação administrativa), policial (ilícito penal) e junto à Promotoria de Justiça, neste caso na instrução e até a conclusão do IC, devendo, para tanto, conhecer as normas internas de processamento dos expedientes administrativos, como as resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público.


[1] Art. 8º, § 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.

[2] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

[3] Esse acompanhamento vem garantido pela CF, por lei e, mais diretamente, pela Resolução n. 161/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

[4] O pedido de instauração de IC poderá ser indeferido desde o início nas hipóteses do art. 5º da Resolução n. 23/2007, do CNMP.

[5] Recordemos que a responsabilidade é objetiva, razão pela qual o autor do dano responde independentemente da licitude da conduta.

[6] Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena:

II – arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação do dano, ou limitação significativa da degradação ambiental causada;

III – comunicação prévia pelo agente do perigo iminente de degradação ambiental;

IV – colaboração com os agentes encarregados da vigilância e do controle ambiental.

[7] Arts. 113, § 1º; 126, parágrafo único; e 143, § 3º.

[8] Também chamado termo de ajustamento de conduta (TAC).

[9] A matéria foi recentemente regulamentada pela Resolução n. 179/2017 do CNMP.

[10] Art. 6º, XX, a LC n. 75/93; e art. 27, I e parágrafo único, IV, da Lei n. 8.625/93. Atualmente a recomendação está regulamentada pelo CNMP pela Resolução n. 164/2017.

[11] Art. 9º, § 3º, da Lei n. 7.347/85 e art. 10 da Resolução n.23/2007 do CSMP.

[12] Arts. 27 e 28 da Lei n. 9.605/98.

[13] Art. 225, § 3º, da CF.

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  • Brave

    é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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