Ideias do Milênio

"Tribunais americanos acreditam em uma independência que não têm"

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13 de outubro de 2017, 10h20

Entrevista concedida pela jornalista Masha Gesse ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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Masha Gessen afirma que durante muitos anos ela foi a única lésbica publicamente assumida na Rússia. Nascida na União Soviética, de família judaica que migrou para os Estados Unidos, ela voltou à Rússia como correspondente internacional. Cobriu a Guerra da Chechênia, a ascensão de Vladimir Putin, de quem publicou a biografia O homem sem rosto, e a perseguição à minoria LGBT. Com onze livros publicados, contribuidora frequente do New York Times, da revista New Yorker e da New York Review of Books, Masha é uma intelectual inquieta. Acabou voltando aos Estados Unidos quando percebeu que por causa da perseguição aos homossexuais na Rússia, poderia perder a guarda dos filhos, que teve com a companheira russa.

Jorge Pontual — Ser americana e russa ao mesmo tempo lhe dá uma visão diferente sobre ambos os países.
Masha Gessen — Acho que sim. É bom que jornalistas sejam outsiders. Nasci em Moscou e vim para os EUA aos 14 anos. Voltei para a Rússia como correspondente e lá passei 20 anos. E foi útil ter estudado nos Estados Unidos, porque eu tinha certas ideias sobre democracia, sobre instituições e sobre como o jornalismo era praticado, e nem sempre eram as melhores ideias, mas eram diferentes das ideias das pessoas à minha volta e com certa frequência eu tinha certos conceitos que as pessoas estavam apenas começando a tentar formular. Nunca me senti parte do processo, eu estava sempre observando-o. Depois, quando retornei aos Estados Unidos Trump decidiu se candidatar e foi eleito, eu percebi que tinha um certo ponto de vista que me permitia perceber certas coisas sobre ele. Eu não acho que ele seja parecido com Putin, mas há coisas que são traços de autocracias, e ser capaz de perceber certas coisas… É como se eu tivesse óculos especiais que me permitem ver coisas que existem e, quando chamo atenção, outras pessoas também veem.

Jorge Pontual — O livro da Masha Gessen que eu mais gostei de ler foi esse aqui, o livro sobre as duas avós dela, Ester e Ruzya. As duas avós da Masha elas eram amigas muito antes dos filhos delas se casarem.
Masha Gessen —
Eu ficava muito confusa na infância, porque minhas avós eram tão amigas que eu não tinha o conceito de lado paterno e materno da família, porque todo mundo vivia junto. Elas estavam sempre juntas e sempre discutindo, mas muito próximas. Então, quando voltei para a União Soviética após dez anos no exílio, eu as reencontrei e pedi que me contassem suas histórias. Eu as entrevistei ao longo de vários anos e escrevi esse livro, que é sobre como as pessoas sobrevivem num regime totalitário. O subtítulo é “Como minhas avós sobreviveram à guerra da Hitler e à paz de Stalin”.

“E assim aconteceu que no fim dos anos cinquenta minhas duas avós começaram uma segunda vida – com um novo homem, uma nova profissão para Ruzya e, alguns anos mais tarde, um novo filho para Ester. Eu já tive a tentação de ligar seus novos começos ao do país delas, saindo de forma lenta e incerta de três décadas de terror stalinista.”
Ester and Ruzya: How My Grandmothers Survived Hitler’s War and Stalin’s Peace

Masha Gessen — Elas viveram no século XX. Nasceram em 1920 e 1923, uma na Rússia e a outra na Polônia. Elas viveram a ameaça do Holocausto, ambas eram judias e sobreviveram, ambas perderam seus amores na Segunda Guerra Mundial e depois construíram suas relações com o regime. Ambas fizeram isso de forma consciente, o que acho extraordinário. E consegui que elas falassem sobre isso, sobre como, num regime que não quer espectadores, no qual todos se tornam colaboradores, elas lidaram com isso.

Jorge Pontual — Uma coisa importante é a língua, como esse tipo de regime corrompe a língua. Fale sobre isso.
Masha Gessen —
Eu sou muito sensível a isso e tentei escrever sobre o assunto desde que Trump assumiu, porque, quando voltei à União Soviética, eu já era jornalista nos EUA, mas quando cheguei lá também quis escrever em russo. Então comecei a escrever nas duas línguas e percebi como era muito mais fácil escrever em inglês, porque o inglês não tinha sido pilhado, estuprado e violado. Em russo, todas as palavras importantes passaram a significar o oposto. Como “liberdade”. “Liberdade” significava “prisão”. Estabilidade. “Estabilidade” significava “estagnação”, “eleição” significava “ritual vazio”, “democracia” se tornou um termo depreciativo. Então as pessoas tinham de tentar escrever sem usar palavras que tinham sido difamadas. Isso limitou muito a língua, além de tudo que tinha a ver com a linguagem de esperança, romance e amor, no sentido político, basicamente a linguagem do futuro. Ela também tinha sido violentada, porque tinham enfiado na nossa cabeça que teríamos um futuro glorioso, que estávamos construindo o comunismo, que nos concentrávamos no futuro, o que era mentira e que, de certa forma, transformou o futuro numa mentira. Portanto, era muito difícil escrever em russo. As pessoas tentam se limitar à linguagem direta dos fatos, evitar adjetivos e advérbios, evitar o chamado “páthos” e usar a linguagem direta e simples. E temo que algo parecido esteja começando a acontecer aqui. Trump é muito diferente, não é um ideólogo, mas tem uma capacidade incrível de violentar a língua, de distorcer as coisas, usar palavras para dizer o oposto e também de usar palavras para não dizer nada. Ele vomita palavras. Mas cada palavra que ele produz esvazia a língua e dificulta que tenhamos uma realidade compartilhada.

Jorge Pontual — Você escreveu Autocracia: regras de sobrevivência, publicado no New York Review of Books:
Regra 1: acredite no autocrata, ele está falando sério.
Regra 2: não seja iludido por pequenos sinais de normalidade.
Regra 3: Instituições não vão salvar você. Putin levou um ano para controlar a mídia russa e quatro para desmontar o sistema eleitoral.
Regra 4: sinta-se indignado.
Regra 5: não se entregue.
Regra 6: lembre-se do futuro.
Os democratas não tinham visão de futuro para contrabalançar a visão populista de Trump, de um passado imaginário, e ignoraram uma instituição ultrapassada como o colégio eleitoral que deu duas vitórias aos republicanos mesmo com a minoria dos votos populares, isso não deve ser normal. Mas resistência, teimosa, não comprometida e indignada, sim.

Ele foi escrito depois da eleição, e viralizou. Quais são os pontos que você quer destacar?
Masha Gessen —
 As pessoas estavam tão devastadas com o resultado da eleição, pessoas que eu conheço e quem lê as publicações para as quais escrevo, e acho que isso se deu em parte porque desafiava a imaginação. E o fato de desafiar a imaginação fez com que as pessoas não percebessem que era uma possibilidade quando Trump era candidato. E escrevi artigos alertando que poderia acontecer. Mas as pessoas não acreditaram, porque a imaginação delas não ia tão longe. Então eu tentei pensar na experiência de autocracia que eu tinha vivido, ou na experiência do estabelecimento da autocracia. Qual é a sensação disso, e meu objetivo era falar do que eu tinha aprendido para ajudar a imaginação. Acho que foi por isso que as pessoas o acharam tão útil.

Jorge Pontual — Então a democracia americana poderia tomar o mesmo rumo que tomou na Rússia e se tornar uma autocracia?
Masha Gessen — Não acho que seja o mesmo rumo. Os países são imensamente diferentes, assim como seus sistemas políticos. O estado das instituições é muito diferente, a cultura política é muito diferente, então não tomará o mesmo rumo, mas pretensos autocratas agem de uma forma particular, e isso acontece com Trump e Putin, com Berlusconi, com Netanyahu, com Erdogan. Uma coisa que certamente Trump, Putin e Berlusconi têm em comum é a forma como mentem. E os americanos ainda estão tentando se acostumar com isso, porque Trump não mente como os outros políticos, ele não mente para fazer você acreditar em algo, ele mente para defender seu direito de dizer o que quiser. É poder, um tipo totalmente diferente de mentira.

Donald Trump – “Nosso governo não está nos protegendo direito. Nosso governo liberou o Estado Islâmico. Eu considero o presidente Obama e a Hillary Clinton os fundadores do Estado Islâmico.”

Masha Gessen — Eu também queria mencionar as instituições, porque os americanos acreditam piamente nas instituições. Acham que as instituições são construídas, existem e fazem seu trabalho. Uma das regras de sobrevivência era: “as instituições não vão te salvar”. E essa lição nem é tanto da Rússia, é uma lição que aprendi em muitos anos como repórter, estudando a fundo as instituições. As instituições não funcionam automaticamente, elas não têm uma natureza própria. Vimos instituições americanas resistirem bravamente, mas também as vimos fracassarem. O Departamento de Estado praticamente desapareceu.

Jorge Pontual — Em menos de 6 meses.
Masha Gessen — Em pouquíssimo tempo se dizimou completamente a instituição da política externa deste país. Os tribunais estão se segurando por enquanto, mas não sabemos por quanto tempo. E é muito importante ver a interdependência entre a sociedade civil e os tribunais. Os americanos acreditam na ficção de que os tribunais são tão independentes que vão funcionar independentemente do que acontecer, o que não é verdade. E a proibição de viagem foi um ótimo exemplo. Como a sociedade civil reagiu fortemente, os tribunais puderam fazer seu trabalho. Se não tivesse havido aquela reação, os tribunais não teriam agido tão rapidamente.

Jorge Pontual — Na Rússia, o medo do terrorismo foi explorado por Putin para mudar as leis eleitorais e várias outras coisas e transformar a Rússia numa autocracia. Pode acontecer o mesmo nos EUA, não é?
Masha Gessen — Já está acontecendo. Parece que todo mundo está esperando acontecer, mas aconteceu 16 anos atrás. Então a ideia do que um presidente é e faz mudou em 16 anos, numa reação ao 11 de Setembro. E isso permitiu que Trump concorresse como autocrata. O curioso é que Hillary Clinton concorreu à presidência e Trump concorreu a autocrata e venceu.

Jorge Pontual — Vamos falar de Putin. O título de seu livro é O homem sem rosto. Por quê?
Masha Gessen —
Porque antes de Putin se tornar presidente, antes de Yeltsin conclamá-lo seu sucessor, ele não tinha tido nenhum cargo público, nunca tinha sido uma pessoa pública. Isso explica parte do título. A outra parte é que Yeltsin estava preocupado em achar seu sucessor, porque temia que, se a oposição assumisse o poder depois de seu segundo mandato, fosse processado. Então precisava de alguém leal, mas tinha afastado todos os políticos carismáticos que tinham sido leais a ele. Então ele escolheu entre uma lista de burocratas desconhecidos. Putin era um homem sem rosto em ambos os sentidos: era um burocrata pálido e sem carisma e também era agente secreto. Parte do trabalho dele era não ter rosto. Muita gente diz que Putin é um gênio do mal. Ele não tem nada de gênio. Acho que adoramos imaginar que pessoas do mal são geniais, porque acho que é ainda mais assustador considerar a possibilidade de que incompetência, estupidez e caos submergem nas trevas em vez de… É melhor pensar que Hitler era um gênio do mal e não um bufão, como ele era visto por seus contemporâneos.

Jorge Pontual — Como Trump.
Masha Gessen — Como Trump. E acho que a forma como a humanidade mergulhou em suas eras mais sombrias é algo que tentamos ocultar através da escritura e leitura dos livros de História para tirar um sentido delas, porque a ideia de que não faz sentido é muito assustadora. Então os americanos veem que Trump é um bufão e criam a ideia de um Putin gênio do mal que apoia Trump. E pelo menos nesse caso as coisas terríveis que estão acontecendo têm uma explicação de inteligência superior, em vez de simplesmente aquele valentão do parquinho do primário…

Jorge Pontual — Putin.
Masha Gessen — … que você achou que acabaria ficando para trás depois da escola. Você era inteligente, fez tudo certinho e achou que ele acabaria virando borracheiro, mas ele é o presidente. E aquele outro cara, Trump, também é presidente, e eles controlam as armas nucleares. É terrível demais contemplar isso.

Jorge Pontual — Como Putin se compara a Stalin? Alguns o chamam de novo Stalin.
Masha Gessen — Se compararmos as personalidades, talvez haja semelhanças, mas não muitas. Se compararmos herdeiros, eu diria que é muito mais útil pensar em Putin como descendente de Stalin. Putin não seria possível se Stalin não tivesse governado a União Soviética por 30 anos. O tipo de retrototalitarismo de Putin foi possibilitado pelo terror de Stalin três gerações atrás.

Jorge Pontual — Voltando a Trump, como você vê a relação Putin-Trump? Eles tiveram um primeiro encontro… Ou primeiros encontros. Com todas as suspeitas envolvendo os conluios deles. Qual é a sua opinião?
Masha Gessen — Eu defendo que analisemos o que acontece em público em vez de ficar procurando a verdade escondida. E há muita informação pública e disponível para nós desde sempre. Trump expressou várias vezes sua admiração por Putin. Acho que essa admiração é sincera. Acho que a ideia de que Putin deve saber algo sobre Trump é desnecessária para explicar a admiração de Trump. Ele o admira porque acha que poder é isso, acha que o poder bruto, o controle, a popularidade extrema, a capacidade de fazer algo simplesmente por desejar são sinais de poder político, o que é uma forma pré-moderna de ver o poder. Acho que Trump quer deixar sua marca e está convencido de que relações especiais com a Rússia vão ajudar nisso, seja solucionado a crise na Síria ou construindo uma relação de cooperação com a Rússia. Em termos da interferência russa na eleição, há poucas dúvidas de que aconteceu.

Mas acho que o mais perigoso neste país é que muita gente concentrou a atenção na história da Rússia como uma teoria da conspiração, e é aí que a coisa complica, porque pode ser que haja uma conspiração, mas é ruim haver teorias conspiratórias, é terrivelmente destrutivo, porque teorias conspiratórias simplificam o pensamento e nesse caso eliminam a necessidade de pensar no que de fato aconteceu, porque se os russos elegeram Trump, isso explica Trump, e se também nos diz como vamos nos livrar dele porque, quando tudo vier à tona, Trump desaparecerá, o que não vai, isso é preguiça de pensar, e as pessoas dedicam toda essa energia intelectual pensando na conspiração russa em vez de pensar no que está acontecendo no país, ou seja, que Trump o está destruindo, e principalmente em vez de pensar no futuro.

Jorge Pontual — Você tem três filhos. O que acha do futuro? Acha que não há futuro?
Masha Gessen — Estou esperançosa em relação a este país. Não tenho esperança em relação à Rússia, mas não sabemos o que vai acontecer aqui. É um território inexplorado. Acho que, graças ao século XX e às tendências globais, entendemos a ameaça que Trump encarna, mas não temos ideia de como ela vai se concretizar nesta cultura.

Jorge Pontual — Por que não tem esperança para a Rússia? Putin está entrincheirado demais?
Masha Gessen — Não, é que o país foi traumatizado demais, fatiado demais. As pessoas não têm uma língua para começar a reconstrução, as pessoas não têm capacidade de formar opiniões. Roubaram as opiniões delas sistematicamente, e elas não têm iniciativa alguma, não têm uma história para contar sobre seu país e construir um futuro baseado nela. Essas coisas são essenciais para um país ou uma sociedade se recuperar desse tipo de trauma, e nós não as temos.

 

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