Olhar Econômico

Novo regime disciplinar para USP é assunto de interesse de todos

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

12 de outubro de 2017, 11h26

Spacca
O que se passa nas universidades públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp) é de interesse público geral, em razão de serem elas financiadas por cota-parte do ICMS, imposto pago por todos os paulistas (a cota-parte anual da USP aproxima de quatro bilhões e meio de reais); e pelo fato de terem elas entre os seus fins: a extensão de seus serviços à sociedade.

Vários aspectos vêm sendo levantados nas discussões à propósito da eleição de chapas para reitor e vice-reitor da USP, a ocorrer proximamente.[1] Entretanto um deles — o regime disciplinar —, não tem sido aventado, embora seja de grande importância.

Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, o poder de julgar do Estado, biparte-se: (i) o Poder Judiciário (estado-juiz judiciário); e (ii) o Regime Disciplinar administrativo (Estado-Juiz administrativo). O fato de o inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”) dar ao Poder Judiciário a competência de rever julgados administrativos, não faz com que a justiça administrativa possa ter segurança jurídica minimizada.

As universidades públicas possuem poder disciplinar administrativo, que deve obedecer ademais das leis, federais e estaduais, sobre a matéria, também dispositivos referentes de seus estatutos e regimentos. Cabe lembrar que, na raiz da ainda candente morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, conforme comentado na mídia, houve dissenção interna entre atores do poder disciplinar da Universidade, que fez com que a questão extrapolasse para o MP e o Poder Judiciário.

A USP fornece um bom estudo de caso, tanto com relação ao histórico de seu regime disciplinar; quanto ao modo como o poder administrativo vem sendo exercido pelo reitor Zago e pelo vice-reitor, Vahan Agopyan, este agora candidato a reitor.

O Regimento Geral da USP em vigor, é a versão consolidada da Resolução 3.745/1990, que, expressamente (artigo 4º do Título X das Disposições Transitórias), mantém vigorante os artigos 247/254 do Antigo Regimento da Universidade (Decreto 52.906/1972). Quando da discussão e aprovação do Regimento Geral, em 1990, a dificuldade e a falta de interesse em se discutir e aprovar um novo regime disciplinar fez com que se optasse pela manutenção em vigor do antigo. Entretanto, essa solução simplista, que se mantém por cerca de trinta anos, possibilita que o processo administrativo disciplinar da USP possa ser, facilmente, dirigido.

Inexistindo corregedoria geral na USP, não havendo comissões processantes prévias, compete ao reitor, por portaria interna: (i) determinar quem será julgado; (ii) estabelecer os contornos fáticos e temporais da matéria a ser examinada; e (iii) indicar os membros da comissão processante, quando já se conhece quem e sob quais alegações, determinado professor, funcionário técnico-administrativo ou aluno será julgado. Assim: (i), o reitor fixa os limites do julgamento administrativo; (ii) indica as possíveis penas a serem sugeridas pelos membros da comissão processante administrativa; (iii) escolhe a seu bel-prazer os membros dessa comissão; (iv) recebe o relatório da comissão; e finalmente (iv) aplica a pena que lhe parecer mais adequada. Com tal sistema quase medieval, se não houver total isenção e senso de justiça por parte do reitor, o processo administrativo, que é a materialização do Estado-Juiz administrativo, pode-se transformar em julgamento de exceção.

Todos os reitores da USP, antes e depois da aprovação do Regimento-Geral de 1990, serviram-se de processos administrativos disciplinares (PADs), durante seus mandatos. Entretanto, a gestão Zago/Vahan Agopyan, que agora se finda, de longe, foi a que mais lançou mão dessa competência. Entretanto, o exorbitante número de PADs dessa gestão reitoral (que obrigou a contratação de advogados, sem concurso, para atuar na procuradoria da USP) fica em segundo plano, se for considerado o modo como eles foram e vem sendo realizados.

Abaixo, lista-se, como exemplo, uma série de fatos, relacionados a PADs da USP:

1. Durante a gestão em tela, a cúpula jurídica da USP — a Superintendente Jurídica e a Procuradora-Geral — é ocupada por pessoas sem concurso público, que foram nomeadas para cargo em confiança, há bem mais de uma década, e que não se deram ao trabalho de participar de concurso público na área, apesar de vários terem sido realizados! Isso significa que as pessoas encarregadas de velar pelo devido processo legal administrativo, inclusive por meio de pareceres jurídicos, serem pessoas demissíveis a qualquer momento pelo reitor. Ou seja, o emprego delas, com grande status e boa remuneração, pode acabar por simples ato, imotivado, do reitor. Há ademais o agravante de o marido da Superintende Jurídica ocupar a Superintendência de Comunicações da USP: a família inteira potencialmente demissível ad nutum pelo reitor! Que liberdade possuem elas? Que garantia jurídica podem elas dar ao PAD?

2.As escolhas ad hoc para membros das comissões processantes, muitas vezes, pertencem ao círculo próximo deles; são desafetos declarados do indiciado no PAD (Portaria Interna 574/2015, assinada pelo reitor Zago); são pessoas já nomeadas por ato do reitor para outras comissões; são pessoas que se relacionam com o indiciado em outras instituições (Portaria Interna nº 398/2017, assinada pelo vice-reitor em exercício Vahan Agopyan); são pessoas que se pronunciaram por escrito e verbalmente sobre a matéria a ser examinada no processo[2] etc. Por tais razões, o reitor Zago já fez por merecer reprimenda ética da Comissão-Geral de Ética do Estado de São Paulo (Ofício CGE 012/2016, Expediente SPDOC – SG 118.632/2015) ou anulação integral do PAD, por vício insanável (Sentença no Mandado de Segurança. Proc. nº 1051358-03.2015.8.26.0053 da 5º Vara da Fazenda Pública do Foro Central de São Paulo), etc. Contam-se aos milhares, as pessoas potencialmente passíveis de serem nomeadas membros de comissões processantes da USP, com possibilidade de exercer esse múnus com distanciamento da cúpula e imparcialmente. Qual a razão da insistência na nomeação de pessoas com impedimentos legais ou éticos?

3.Normalmente, o processo administrativo disciplinar é instaurado por portaria reitoral, baseado em conclusões apresentadas por membros de comissão de sindicância. Na prática, tem havido PADs, cuja portaria instauradora afirma terem sido baseados em determinada sindicância (Sindicância – Proc. nº 2014.1.11899.1.3, mas que, na realidade, não guarda relação com ela (PAD nº 2016.1.15350.1.8). Essa questão não é meramente formal, mas de fundo, pois inclusive o cabal direito constitucional de defesa fica prejudicado.

4. Há maior gravidade quando o reitor, recebendo as conclusões de sindicância, exara nova portaria, e à guisa de pedir maiores esclarecimentos à comissão sindicante, notoriamente, exige e procura influenciar o conteúdo da resposta (Portaria Interna nº 1.012/2014, assinada pelo vice-reitor em exercício Vahan Agopyan). Resposta essa que servirá ao seu intuito de instaurar processo administrativo disciplinar nos moldes que deseja.

5. Há caso em que o reitor, recebendo representação, a bloqueia, não a encaminhando ao destinatário, ou seja, o Conselho Universitário (Proc. USP nº 2016.1.28351.1.8) .

6.O uso excessivo de “segredo de justiça”, com relação a PADs em curso, determinados imotivadamente, contrariam os princípios da transparência e da motivação dos atos administrativos. Pedidos sucessivos feitos pelo indiciado, para que se afaste tal segredo, sequer são apreciados! (PAD nº 2015.1.10779.1.5). Esses processos não figuram nos meios eletrônicos, ficando sob a guarda pessoal do secretário/a da comissão e indisponíveis quando ele/a não está presente; o que prejudica e dificulta o direito de defesa.

7. O artigo 251 da Lei Estadual nº 10.261/1968 elenca rol de penalidades a serem sugeridas pela comissão processante, consoante a menor ou maior gravidade das respectivas conclusões. Há casos, entretanto, em que na portaria determinadora da instauração de PAD, o reitor Zago e o vice-reitor Vahan Agopyan, praticamente, induzem as conclusões da comissão, ao fazer asseverações de mérito e ao limitar as penas possíveis de a comissão sugerir, apenas às mais graves (PAD nº 2015.1.10779.1.5 e PAD. nº 2016.1.15350.1.8).

A existência e aplicação de regime disciplinar é indispensável para o bom funcionamento de uma universidade. Contudo, é imperioso serem seguidos os princípios gerais de direito, em especial os princípios constitucionais de direito administrativo (Art. 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”); bem como o disposto na Constituição e nas leis pertinentes. Não se pode esquecer que a concessão pela lei de competência a uma autoridade, implica na responsabilidade, inclusive pessoal, de responder por desvios e excessos, bem como por perdas e danos materiais e morais.

O que acaba de ser exposto desagua nas seguintes conclusões:

A) Urgente necessidade de se discutir e aprovar novas regras disciplinares, pois elas darão maior garantia jurídica para os cerca de 120 mil uspianos. Haveria bom começo, se os candidatos às eleições reitorais da USP incluíssem esse assunto em suas agendas e debates.

B) Para que não mais ocorra ilegalidades e impropriedades éticas, no exercício do poder disciplinar na USP, urge coletar-se os abusos jurídicos e éticos que foram e vem sendo perpetrados. Para tanto, repasso o e-mail [email protected] para o qual podem ser enviados descrições e comprovações de irregularidades e abusos, pelos prejudicados e/ou seus advogados, com o intuito de se ter um relatório mais completo, que possa embasar ações. Instaurar um PAD não pode ser uma brincadeira, cujas consequências podem ser sanadas por meio de recurso ao Poder Judiciário. Por envolver prejuízos monetários e de reputação de monta, deve ser ele, bem fundamentado, legal e ético, sob pena de responsabilização das autoridades faltosas, conforme anteriormente assinalado.

Caso os uspianos não se interessem e não se mobilizem para mudar o estado de coisas que se acaba de descrever, a próxima vítima pode ser você!


[1] Rodas, João Grandino, Universidade de São Paulo merece encontrar-se com seu destino, Revista Eletrônica Conjur, 28 de setembro de 2017.
[2] PAD nº 2016.1.15350.1.8; http://www.usp/wpcontent/uploads/ Ricardo Terra; http://iptv.usp.br/´prtal/video?iditem-37707; http://iptv.usp.br/portal/ transmissão/uspdebatereitoral-riberaopreto

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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