Opinião

A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar

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11 de outubro de 2017, 16h30

Recentemente, publicamos um artigo no ICON – Blog of the International Journal of Constitutional Law and Constitutionmaking no qual chamávamos a atenção do público internacional para uma questão que ainda demanda uma posição clara de autoridades estatais e da sociedade civil no Brasil (aqui). O objetivo no artigo que se segue é o de recuperar alguns dos argumentos constitucionais expostos e de destacar que aquela posição se torna ainda mais necessária ante outros novos desdobramentos.

No dia 17 de setembro de 2017, o general do Exército Antonio Hamilton Martins Mourão, durante uma conferência para a Loja Maçônica em Brasília, defendeu a possibilidade de uma intervenção das Forças Armadas no cenário político brasileiro. Ele disse que “[…] Ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso” (aqui). Ele adicionou que tal solução não seria fácil, gerando problemas, mas os membros das Forças Armadas deveriam cumprir com “seu” compromisso com a pátria, viessem a ser aplaudidos ou não. Finalmente, ele disse que deveriam ter a consciência limpa de que “fizeram seu melhor” para encontrar uma solução. “Então, se tiver que haver haverá.”

Ao invés de impor medidas disciplinares a Mourão, o comandante do Exército, General Eduardo Villas Bôas, deu uma entrevista a um canal de televisão na qual tentou justificar o ato de seu subordinado, chamando-o de um “bom soldado” e sustentando que seu pronunciamento fora compreendido fora de contexto. Ele defendeu que as Forças Armadas somente poderiam agir ante uma requisição dos poderes constituídos ou em situações de caos iminente (aqui).[1] A entrevista foi transmitida logo após o ministro da Defesa Raul Jungmann requerer que algo fosse feito com o servidor público militar em questão.

Depois da entrevista, diversos militares da reserva endossaram publicamente os pronunciamentos do general Mourão, incluindo o ex-comandante das tropas enviadas ao Haiti na Força de Paz da ONU em 2004, general Augusto Heleno (aqui). O general Heleno disse que o General Mourão apenas explicou “de um modo claro e honesto” o conteúdo de dispositivos da Constituição de 1988, e que a “[…] esquerda, em estado de pânico depois de seus continuados fracassos, [teria visto] nisso uma ameaça de intervenção militar.” A ideia de que os militares poderiam constituir um perigo para a legalidade seria “ridícula”.[2]

As declarações foram criticadas. Sérgio Abranches opôs-se veementemente à afirmação do general Villas Bôas de que o general Mourão era um “bom soldado,” sustentando que ele estava, na verdade, propondo publicamente um golpe de Estado. Só a manifestação pública política do militar seria ilegal. De fato, o Estatuto Disciplinar do Exército, Decreto 4.346/2002, em seu Anexo I, número 57, proíbe explicitamente militares da ativa de fazerem manifestações públicas políticas ou partidárias sem a autorização de um superior hierárquico. Abranches observou que as implicações daquelas declarações para a norma regulamentar não eram irrelevantes, já que vários membros da organização militar tanto silenciosa como abertamente apoiaram o general Mourão. Todos esses fatos contribuiriam para uma crise política similar àquelas que o Brasil viveu em 1954 e em 1964. É notável que Abranches seja um dos analistas brasileiros que sempre chamara a atenção para os perigos da suposta ausência de controle efetivo por parte de civis sobre as Forças Armadas, mesmo após a criação do Ministério da Defesa (as posições de Abranches podem ser vistas aqui).

Outros fatos cooperariam para evitar qualificar o general Mourão como um “bom soldado”. Em 2015, como comandante militar do Sul, ele permitiu que outro oficial prestasse homenagem a um de seus antigos colegas, coronel Brilhante Ustra, acusado por vários opositores políticos do regime ditatorial e por instituições estatais de chefiar o centro de tortura da cidade de São Paulo do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). O coronel Ustra foi condenado pelo Superior Tribunal de Justiça em uma ação cível por participar na tortura de toda uma família, a família Teles (aqui). O general Mourão, depois da cerimônia, foi demitido do comando do sul e nomeado para um cargo financeiro sem autoridade direta sobre tropas (aqui).

Várias das disputas advindas após as declarações, para além da violação de normas legais que proíbem a manifestação militar pública política, dizem respeito à interpretação do artigo 142 da Constituição de 1988. Este dispositivo constitucional estabelece que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Vladimir Safatle observara – enquanto alertava para o perigo de atividades militares políticas e o passado repressivo que as cerca – que o artigo 142 seria uma “bomba relógio” que teria sido “imposta pelos próprios militares” durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. De acordo com essa interpretação, o texto constitucional seria análogo ao do artigo 48 (que ele cita erroneamente como artigo 41) da Constituição de Weimar de 1919 e seria hábil a “legalizar golpes de Estado” (confira aqui).

Tal argumentação soa como um tiro no próprio pé. Em verdade, ambas as leituras do artigo 142 da Constituição de 1988 são equivocadas, porque ignoram duas importantes questões: (a) o que a Constituição de 1988 estabelece; e (b) o modo adequado com que a atuação ou emprego das Forças Armadas pode ser constitucionalmente compreendido.

Com relação a (a), não é possível interpretar o artigo 142 para além de seu significado básico e sem uma consideração sistemática dos dispositivos que o cercam. Em primeiro lugar, o artigo 142 se situa dento do Título V da Constituição, intitulado “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas.” Em segundo lugar, mesmo que alguém se satisfaça apenas com seu sentido literal, não há qualquer expressão no artigo 142 que sustente a visão de Mourão de que as Forças Armadas poderiam agir sem a requisição de um dos poderes constitucionais e sem a autorização do Presidente da República. A ideia de um poder substitutivo que pudesse assumir ante a falha dos demais poderes é uma clara tentativa de romper com a ordem constitucional ou, mais diretamente, de promover um golpe. Como dois membros do Ministério Público Federal, Deborah Duprat e Marlon Weichert, reconheceram, uma “intervenção militar” soaria como uma clara configuração do que a mesma Constituição de 1988 prescreve em seu artigo 5º, inc. XLIV, como um crime inafiançável e imprescritível contra a ordem constitucional e o Estado democrático (aqui).

A Constituição autoriza o “emprego” das Forças Armadas para finalidades de segurança pública, nos termos estabelecidos pela Lei Complementar 97 de 1999, artigo 15 e parágrafos,[3] subordinando-o à autoridade e ao controle civis; termos como “intervenção militar” são, desse modo, inúteis e desprovidos de sentido. A Constituição de 1988 subordina as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) à “autoridade suprema” do presidente da República. Além disso, a Emenda Constitucional 23 de 1999 criou, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Defesa, de tal forma a consolidar essa governança civil. A Lei Complementar 97/1999 apenas autoriza o emprego das Forças Armadas baseado na garantia da lei e da ordem se a finalidade estiver relacionada à segurança pública, em caráter subsidiário, e for subordinada às autoridades civis (artigo 15). Qualquer atuação de força militar fundada numa suposta “falência da atividade política” é proibido pelo sistema constitucional.

Pode-se adicionar que a Constituição protegeu o sistema político contra qualquer intervenção que pudesse advir de forças tradicional e perigosamente presentes na cena política desde, pelo menos, a formação da República, em 1889. O artigo 14, § 8º, I e II do texto constitucional estabelece que “militar alistável” somente pode candidatar-se a cargos eletivos sob as seguintes condições: “se contar com menos de dez anos de serviço, deverá se afastar da atividade”; ou “se contar com mais de dez anos de serviço, seja agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade”.

No que respeita a (b), no contexto mais amplo no qual o emprego das Forças Armadas pode ser constitucionalmente compreendido, é impensável que sob uma Constituição como a brasileira, que edifica um Estado Democrático de Direito, fundado em um sistema de direitos adotado tanto doméstica como internacionalmente, as Forças Armadas possam pretender “interferir” na política de forma legítima. Cabe inclusive registrar que, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, autoridades militares não apenas desafiaram o órgão estatal, como também se recusaram a admitir que crimes contra humanidade, por todos conhecidos, aconteceram em suas instalações. Sustentaram, inclusive, que nenhum abuso de poder ou desvio de finalidade se deu nas dependências das Forças Armadas durante a ditadura de 1964-1985. Em outras palavras, autoridades militares reivindicaram que suas instituições, apesar dos testemunhos e documentos provando o contrário, não foram empregadas para a prática de graves violações de direitos humanos. Como o projeto democrático da Constituição de 1988 poderia encarregar tais autoridades da tarefa de se substituir aos poderes constitucionais na atividade política?[4]

É claro que o artigo 142 da Constituição de 1988 não abre espaço tanto para as interpretações de Mourão e de Safatle, mesmo que nos apeguemos ao seu texto, o passo inicial (mas nunca suficiente) de qualquer empreendimento constitucional.

E teria sido talvez por ser tão óbvia a letra da Constituição que dois acontecimentos ainda aprofundariam a crise gerada. Primeiro, o ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, publicaria uma enquete para seus seguidores de Twitter sobre uma eventual “intervenção militar” (aqui). Ela seria respondida pelo professor Lenio Streck (aqui),[5] da Unisinos, recebendo ainda uma tréplica do ministro e uma adesão de nossa parte à manifestação do professor gaúcho (aqui e aqui). Afinal, uma autoridade judicial possui responsabilidades para com as obrigações derivadas de seu papel social.

Em seguida, o general da reserva Luiz Eduardo da Rocha Paiva, quem considerava em junho de 2016 a inexistência de um fosso ideológico entre as Forças Armadas e o atual governo Temer (aqui), publica um artigo no jornal O Estado de S. Paulo, em que agora defende não apenas uma interpretação controversa do artigo 142 da Constituição, mas a possibilidade de uma “intervenção militar, mesmo sem amparo legal” (veja aqui).[6] No dia em que a Constituição celebrou seu 29º aniversário, o veículo de mídia dá amplo conhecimento ao público brasileiro de que o oficial da reserva pensa que “A intervenção militar será legítima e justificável, mesmo sem amparo legal, caso o agravamento da crise política, econômica, social e moral resulte na falência dos Poderes da União, seguida de grave instabilidade institucional com risco de guerra civil, ruptura da unidade política, quebra do regime democrático e perda de soberania pelo Estado.”

Ou seja, não importaria, na visão do general, o “amparo legal”. Usando de retórica que faz lembrar o famigerado preâmbulo do Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968, ao tentar opor uma pretensa “legitimidade” à legalidade, crê encontrar justificativa para um flagrante golpe à ordem constitucional. Nesse sentido, o general Luiz Eduardo da Rocha Paiva não apenas escreve que “[…] Pela credibilidade da presidente do STF e da maioria dos ministros, a Alta Corte tem autoridade moral tanto para dissuadir essas manobras insidiosas quanto para encontrar caminhos legais e legítimos que permitam acelerar os processos das operações de limpeza moral” e de “higienização política”, mas afirma, em tom de ameaça, que “[…] Na verdade, só o STF e a sociedade conseguirão deter o agravamento da crise atual, que, em médio prazo, poderá levar as Forças Armadas a tomarem atitudes indesejadas, mas pleiteadas por significativa parcela da população.”[7]

Todavia, no Estado Democrático de Direito, a legitimidade remete-se intrinsecamente à legalidade constitucional-democrática, posto que a pressupõe. Ora, caberia, então, perguntar se o que poderia jogar um país em uma “guerra civil” não seria, pois, a composição do Legislativo ou do Executivo, mas uma “intervenção militar sem amparo legal”. Afinal, é de se lembrar que é a própria Constituição, no destacado artigo 5º, inciso XLIV, que prevê como “crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.


1 É importante destacar que a revista Isto É deu capa para uma reportagem em que sustenta a realização de uma reunião do Alto Comando do Exército, em 11 de setembro de 2017, que teria precedido (e, de certa forma, avalizado) a fala de Mourão (aqui).

2 No dia 26 de setembro de 2017, o comandante do Exército, General Villas Bôas, também reuniu-se com vários oficiais de alta patente das Forças Armadas, em um encontro extra oficial, supostamente para demonstrar “coesão” (aqui).

3 Esta lei complementar é regulamentadora do artigo 142, § 1º, da Constituição de 1988.

4 Para o projeto estabelecido pela Constituição de 1988 em uma perspectiva transicional, cf. MEYER, Emilio Peluso Neder. “Criminal Responsibility in Brazilian Transitional Justice: A Constitutional Interpretative Process under the Paradigm of International Human Rights Law.” Indon. J. Int'l & Comp. L. 4, 2017, p. 41-61; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. “A Democracia sem Espera: Constitucionalização e Transição Política no Brasil”, Emilio Peluso Neder Meyer (ed.), Justiça de Transição em Perspectiva Transnacional, Belo Horizonte, CJT and Secretaria da RLAJT, 2017, p. 97-134.

5 A posição do professor Streck sobre a devida interpretação do artigo 142 da Constituição seria ainda detalhada em STRECK, Lenio. “A anti-hermenêutica da intervenção militar”, Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/10/1923723-a-anti-hermeneutica-da-intervencao-militar.shtml, acesso 9 out. 2017.

6 Registre-se, também, a irresponsabilidade de um veículo de mídia em difundir abertamente um golpe de Estado. Não que isto surpreenda: tanto o Estadão como vários outros veículos apoiaram abertamente o golpe de 1964 (aqui).

7 Cabe chamar atenção para o fato de que nenhuma palavra é dita sobre a corrupção da ordem jurídica a que correspondeu a edificação de um sistema autoritário e repressivo que agiu sistemática e generalizadamente contra a própria população civil. Elio Gaspari, no capítulo “A gangrena” de “A ditadura escancarada”, dedica várias páginas para recuperar como também houve corrupção durante a ditadura (GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 361 e ss). E isso sem mencionar os casos relembrados por Safatle recentemente: Capemi, Coroa Brastel, Brasilinvest, Paulipetro, grupo Delfim, projeto Jari, entre outros (aqui).

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