Tribuna da Defensoria

Exigir atividade jurídica para concurso da Defensoria ainda causa polêmica

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10 de outubro de 2017, 8h10

Entre a conclusão do curso de Direito e o sonho de ingressar na carreira de Defensor Público persiste a dúvida: qual o período de prática jurídica exigível para a posse no cargo? De fato, essa dúvida tem sido tão comum e perturbadora que, embora didaticamente o tema seja abordado durante as últimas aulas do nosso curso de Princípios Institucionais da Defensoria Pública, não conseguimos nem passar da primeira aula sem explicar a controvérsia, diante da costumeira avalanche de perguntas dos alunos.

Justamente para tentar apaziguar a curiosidade dos estudantes, procuramos utilizar a coluna de hoje para tecer breves considerações sobre essa pulsante polêmica.

Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, passou a ser analogicamente aplicável em relação à Defensoria Pública, no que couber, o disposto no artigo 93 e no inciso II do artigo 96 da Constituição Federal (artigo 134, § 4º da CF).

De acordo com o artigo 93, I da Constituição, o ingresso na carreira da magistratura deve ocorrer “mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”.

A realização de concurso público de provas e títulos, com a participação da OAB em todas as fases, não constitui nenhuma novidade no âmbito da Defensoria Pública, uma vez que os artigos 24, 69 e 112 da Lei Complementar 80/1994 já traziam essa previsão. Do mesmo modo, a observância da ordem de classificação para a realização das nomeações constitui regra geral que já constava expressamente dos artigos 28, 73 e 113 da LC nº 80/1994.

De fato, a grande inovação trazida pela aplicabilidade analógica do artigo 93, I da Constituição ao regime jurídico da Defensoria Pública diz respeito à exigência de 3 (três) anos de atividade jurídica para o ingresso na carreira, como requisito prévio destinado a garantir maturidade e experiência para aqueles que pretendem assumir o difícil encargo de prestar assistência jurídica gratuita aos vulneráveis.

Nesse ponto, subsiste um conflito normativo entre o artigo 93, I da Constituição, que exige o mínimo de “três anos de atividade jurídica”, e os artigos 26 e 71 da LC nº 80/1994, que exigem a comprovação de apenas “dois anos de prática forense”. Essa antinomia jurídica própria deve ser facilmente resolvida pela incidência do critério hierárquico (lex superior derogat inferiori), prevalecendo a norma constitucional que exige a comprovação de três anos de prática jurídica (artigo 93, I c/c artigo 134, §4º da Constituição) [1].

No que tange à aplicabilidade da ampliação temporal trazida pelo artigo 93, I da Constituição, parcela da doutrina entende que se trata de norma constitucional de eficácia limitada, pois dependeria de lei infraconstitucional para regulamentar seus vetores[2]. No entanto, o Supremo Tribunal Federal sufragou o entendimento de que a aplicabilidade das normas e princípios inscritos no artigo 93 da Constituição independe de lei regulamentadora, em face do caráter pleno e integral eficácia de que se revestem seus preceitos[3]. E no caso da Defensoria Pública, esse posicionamento acaba sendo reforçado, pois a Lei Complementar nº 80/1994, de certo modo, já realizou a regulamentação normativa do artigo 93, I c/c artigo 134, §4º da Constituição.

O grande problema da aplicação analógica do artigo 93, I da Constituição, na verdade, consiste na delimitação do conceito de “atividade jurídica” para fins de ingresso na carreira da Defensoria Pública.

Na época em que o artigo 93, I da Constituição foi modificado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, a unidade lexical “exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica” acabou dando margem a duas interpretações distintas: (a) que os requisitos seriam sucessivos, sendo necessário primeiro a obtenção do grau de bacharel em Direito para, somente depois, ser iniciada a contagem do período de três anos de atividade jurídica; ou (b) que os requisitos não seriam sucessivos, sendo exigido o grau de bacharel em direito e o período de três anos de atividade jurídica, independentemente do momento em que essa prática forense fosse desenvolvida.

No âmbito da Magistratura e do Ministério Público, em virtude do silêncio do legislador, a regulamentação do conceito de “atividade jurídica” acabou sendo realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 75/2009) [4] e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Resoluções nº 40/2009) [5], que reconheceram como prática jurídica unicamente aquela desenvolvida por bacharel em Direito, sendo vedada a contagem de tempo de estágio ou de qualquer outra atividade anterior à conclusão do curso de bacharelado.

Essa regulamentação normativa restou submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento da ADI 3.460/DF, que analisou a constitucionalidade do artigo 7º da Resolução CNMP 35/2002[6] e, consequentemente, o alcance e a abrangência lógica da expressão “três anos de atividade jurídica” contida no artigo 129, §3º da Constituição, sendo fixado o entendimento de que a contagem do prazo trienal de prática forense para o ingresso na carreira do Ministério Público teria início a partir da data da conclusão do curso de Direito[7].

No âmbito da Defensoria Pública, entretanto, ao contrário do que ocorre com a Magistratura e com o Ministério Público, o legislador definiu expressamente os contornos normativos da expressão “atividade jurídica” (artigo 93, I c/c artigo 134, § 4º da Constituição). Desse modo, a determinação do alcance dessa expressão não depende de regulamentação por atos normativos internos da Defensoria Pública ou de decisão judicial integradora; o próprio Poder Legislativo já delimitou seu significado e abrangência jurídica.

Para os candidatos ao cargo de Defensor Público Federal, “considera-se como atividade jurídica o exercício da advocacia, o cumprimento de estágio de Direito reconhecido por lei e o desempenho de cargo, emprego ou função, de nível superior, de atividades eminentemente jurídicas” (artigo 26, § 1º da LC nº 80/1994). Por outro lado, em relação aos candidatos ao cargo de Defensor Público do Distrito Federal, “considera-se como prática forense o exercício profissional de consultoria, assessoria, o cumprimento de estágio nas Defensorias Públicas e o desempenho de cargo, emprego ou função de nível superior, de atividades eminentemente jurídicas” (artigo 71, § 1º da LC nº 80/1994) [8].

Dessa forma, a Lei Complementar nº 80/1994 reconhece validade à atividade jurídica anterior à obtenção do grau de bacharel em Direito, admitindo expressamente o cômputo do período de estágio acadêmico[9]. Na esfera da Defensoria Pública da União, admite-se a contagem de todo “estágio de Direito reconhecido por lei”; já na Defensoria Pública do Distrito Federal, o legislador acabou admitindo apenas “estágio nas Defensorias Públicas”.

No que tange às Defensorias Públicas dos Estados, a Lei Complementar 80/1994 permaneceu silente, não sendo indicadas quais atividades seriam computadas como prática jurídica. No entanto, nas “Disposições Finais e Transitórias”, o legislador prevê genericamente que “o tempo de estágio será considerado serviço público relevante e como prática forense” (artigo 145, §3º da LC nº 80/1994). Com isso, também para concursos realizados no âmbito das Defensorias Públicas dos Estados, o período de estágio realizado nas Defensorias Públicas deverá ser regularmente computado como atividade jurídica.

No campo normativo dos Estados-membros, as leis orgânicas das Defensorias Públicas dos Estados de Alagoas, Amapá, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rondônia e Roraima seguem a mesma linha do artigo 145, § 3º da LC nº 80/1994 e admitem apenas a contagem do período de estágio realizado no âmbito da própria Defensoria Pública (artigo 40, III da LCE/AL nº 29/2011; artigo 58, parágrafo único da LCE/AP nº 86/2014; artigo 132, §3º da LCE/MG nº 65/2003; artigo 26, § 2º da LCE/PE nº 20/1998; artigo 25, §2º da LCE/RN nº 251/2003; artigo 32, parágrafo único da LCE/RO nº 117/1994; artigo 51, §3º da LCE/RR nº 164/2010). Por outro lado, adotando linha interpretativa mais ampla, as leis orgânicas das Defensorias Públicas dos Estados do Amazonas, Paraná, Piauí e Rio de Janeiro consideram como sendo atividade jurídica qualquer estágio jurídico oficial (artigo 48, parágrafo único da LCE/AM nº 01/1990; artigo 82, §5º, a da LCE/PR nº 136/2011; artigo 48, parágrafo único da LCE/PI nº 59/2005; artigo 47, parágrafo único da LCE/RJ nº 06/1977) [10].

Recentemente, ao julgar o Recurso Especial 1676831/AL, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que “o artigo 26, § 1º, da Lei Complementar Federal nº 80/1994, estabelece que o candidato ao ingresso na carreira da Defensoria Pública da União deve comprovar, dentre outros requisitos, dois anos de prática jurídica, aceitável o estágio de Direito reconhecido por lei”. Por essa razão, viola a legalidade a edição de regramento infralegal distinto que imponha ao candidato “a comprovação mínima de três anos de atividades jurídicas praticadas depois da obtenção do grau superior, ou seja, excluído o estágio” [11].

Não obstante o precedente do STJ guarde ligação com a carreira de Defensor Público Federal, a mesma linha de entendimento pode ser aplicada em relação às Defensorias Públicas dos Estados. Em 2016, inclusive, a 3ª Vara de Fazenda Pública da Capital (SP), ao julgar o Mandado de Segurança1007915-65.2016.8.26.0053, reconheceu validade às atividades jurídicas anteriores à obtenção do grau de bacharel em Direito, determinando a contagem do período de estágio forense realizado na própria Defensoria Pública para fins de aferição do prazo de três anos de prática jurídica exigido para o ingresso na carreira de Defensor Público de São Paulo[12].

Todavia, a questão ainda está longe de ser pacificada. Ao julgar o Mandado de Segurança 1.0000.15.022435-0/000, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais acabou aplicando em relação à Defensoria Pública a mesma diretiva traçada pelo Supremo Tribunal Federal para a aferição do período de atividade jurídica para fins de ingresso na carreira do Ministério Público, entendendo que a contagem apenas teria início a partir da conclusão do curso de Direito[13]. No meio dessa polêmica, resta àqueles que pretendem ingressar na carreira de Defensor Público uma única saída: continuar estudando…


[1]Localizada na dimensão da validade, a antinomia jurídica própria ocorre quando duas normas regulam uma mesma situação de maneira diversa (uma obriga e outra proíbe; uma permite e a outra obriga; uma proíbe e a outra permite). Para caracterizar uma antinomia, é necessário que as duas normas pertençam ao mesmo ordenamento e tenham o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material). Os critérios fornecidos para a solução desta espécie de antinomia são: (i) hierárquico (lex superior derogat inferiori); (ii) cronológico (lex posterior derogat priori); e (iii) da especialidade (lex generalis non derogat speciali).” (NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional, São Paulo: Método, pág. 131)
[2]LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, São Paulo: Saraiva, 2014, pág. 784.
[3] STF – Pleno – ADI nº 189 – Relator Min. CELSO DE MELLO, decisão: 22-05-1992.
[4] “Art. 59 da Resolução CNJ nº 75/2009: Considera-se atividade jurídica (…):
I – aquela exercida com exclusividade por bacharel em Direito;
II – o efetivo exercício de advocacia, inclusive voluntária, mediante a participação anual mínima em 5 (cinco) atos privativos de advogado (Lei nº 8.906, 4 de julho de 1994, art. 1º) em causas ou questões distintas;
III – o exercício de cargos, empregos ou funções, inclusive de magistério superior, que exija a utilização preponderante de conhecimento jurídico;
IV – o exercício da função de conciliador junto a tribunais judiciais, juizados especiais, varas especiais, anexos de juizados especiais ou de varas judiciais, no mínimo por 16 (dezesseis) horas mensais e durante 1 (um) ano;
V – o exercício da atividade de mediação ou de arbitragem na composição de litígios.
§ 1º É vedada, para efeito de comprovação de atividade jurídica, a contagem do estágio acadêmico ou qualquer outra atividade anterior à obtenção do grau de bacharel em Direito.”
[5]“Art. 1º da Resolução CNMP nº 40/2009: Considera-se atividade jurídica, desempenhada exclusivamente após a conclusão do curso de bacharelado em Direito:
I – O efetivo exercício de advocacia, inclusive voluntária, com a participação anual mínima em 5 (cinco) atos privativos de advogado (Lei nº 8.906, de 4 Julho de 1994), em causas ou questões distintas.
II – O exercício de cargo, emprego ou função, inclusive de magistério superior, que exija a utilização preponderante de conhecimentos jurídicos.
III – O exercício de função de conciliador em tribunais judiciais, juizados especiais, varas especiais, anexos de juizados especiais ou de varas judiciais, assim como o exercício de mediação ou de arbitragem na composição de litígios, pelo período mínimo de 16 (dezesseis) horas mensais e durante 1 (um) ano.
§ 1º É vedada, para efeito de comprovação de atividade jurídica, a contagem de tempo de estágio ou de qualquer outra atividade anterior à conclusão do curso de bacharelado em Direito.”
[6]“Art. 7º da Resolução CNMP nº 35/2002 (revogado pela Resolução CNMP nº 40/2009): Poderão inscrever-se, no concurso público, bacharéis em Direito com, no mínimo, três anos de atividade jurídica (art. 129, § 3º da CF) e comprovada idoneidade moral.
Parágrafo único: A atividade jurídica, verificada no momento da inscrição definitiva, deverá ser demonstrada por:
a) certidão da OAB, comprovando a atividade jurídica, na forma da Lei nº 8.906, de 1994, a abranger a postulação perante qualquer órgão do Poder Judiciário, bem como atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas, sob inscrição da Ordem dos Advogados do Brasil;
b) certidão de exercício de cargo, emprego ou função pública, privativos de bacharel em Direito, sejam efetivos, permanentes ou de confiança.”
[7]STF – Pleno – ADI nº 3.460/DF – Relator Min. AYRES BRITTO, decisão: 31-08-2006
[8] Antes da reforma implementada pela Lei Complementar nº 132/2009, a redação original do art. 26, §1º da LC nº 80/1994 apenas reconhecia como atividade jurídica “o cumprimento de estágio nas Defensorias Públicas”. Após a modificação legislativa, o dispositivo passou a admitir para a contagem do prazo todo e qualquer “estágio de Direito reconhecido por lei”. Curiosamente, entretanto, a Lei Complementar nº 132/2009 não promoveu a alteração do art. 71, §1º da LC nº 80/1994, de modo que acabou sendo criada uma diferenciação na extensão do conceito de “atividade jurídica”, sendo mais amplo na Defensoria Pública da União e mais restrito na Defensoria Pública do Distrito Federal.
[9]Em sentido contrário: “A Emenda Constitucional nº 80/2014 estendeu à Defensoria Pública a aplicação do disposto no art. 93 da Carta Magna, no que lhe couber. Assim, por força do inciso I deste dispositivo, exige-se que o candidato a Defensor Público seja bacharel em direito com, no mínimo, três anos de atividade jurídica comprovada, após a colação de grau.” (CORGOSINHO, Gustavo. Defensoria Pública, Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014, pág.179)
[10] No Rio Grande do Sul, embora a legislação estadual específica nada disponha acerca do tema, a Resolução nº 03/2014 do Conselho Superior da Defensoria Pública alterou o art. 10 da Resolução nº 10/2013, passando a reconhecer como atividade jurídica “o cumprimento de estágio oficial de Direito, anterior ou posterior à colação de grau”.
[11] STJ – Segunda Turma – Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, decisão: 05-09-2017
[12] 3ª Vara de Fazenda Pública da Capital/SP – MS nº 1007915-65.2016.8.26.0053 – Juiz AIRTOM MARQUEZINI JUNIOR, decisão: 19-04-2016.
[13] TJ/MG – 5ª Câmara Cível – MS nº 1.0000.15.022435-0/000 – Relator Des. MOACYR LOBATO, decisão: 06-08-2015.

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  • Brave

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre e doutorando em Direito Processual pela Uerj e coautor do livro "Princípios Institucionais da Defensoria Pública".

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    é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestrando em Sociologia e Direito pela UFF e coautor do livro "Princípios Institucionais da Defensoria Pública".

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