Opinião

Por quem os sinos dobram na suspensão nacional de processos?

Autores

  • Igor Raatz

    é sócio-fundador do Raatz & Anchieta Advocacia professor da Universidade Feevale pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

  • Júlio C. Rossi

    é doutor em Direito pela PUC/SP. Membro da ABDPro. Advogado da União. Pós-doutorando em Direito pela UNISINOS.

10 de outubro de 2017, 6h16

Um dos muitos pontos polêmicos trazidos pelo Código de Processo Civil de 2015 denomina-se “suspensão nacional de processos” em face do reconhecimento da repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. Sua previsão legal está no artigo 1.035 § 5º, cuja redação é a seguinte:

Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.
(…)
§ 5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.

Pela dicção do dispositivo, uma vez reconhecida a existência da repercussão geral[1] pelo ministro relator, quer nos parecer, deverá ser determinada a suspensão em nível nacional dos processos que versem sobre a matéria.

Embora não concordemos com essa concepção verticalizada de fixação de precedentes por teses abstratas desprovidas de DNA, fundamentalmente porque acreditamos que não haja respostas antes das perguntas e nem sempre a repercussão geral reconhecida inicialmente será confirmada no julgamento de mérito, além do próprio fato de que o sobrestamento nacional de todo e qualquer processo por mera “aproximação” possa se compatibilizar com a repercussão geral “a priori” reconhecida, parece que o dispositivo é imperativo no que toca a necessidade de suspensão nacional.

Isso porque, se o mote do Código de Processo Civil vigente é garantir as tão ventiladas isonomia, celeridade e segurança jurídica, não se revela adequado deixar a critério do ministro relator suspender ou não os demais processos ditos semelhantes. Podemos até não concordar com o modo com que o CPC tenta conferir segurança jurídica (além dos mantras performáticos da isonomia e da celeridade) aos jurisdicionados, porém é necessário sermos coerentes com as premissas adotadas pelo próprio legislador.

Não obstante isso, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Questão de Ordem no RE 966.177 (ver aqui), em voto condutor da lavra do ministro Luiz Fux — por ironia do destino um dos festejados idealizadores da sistemática do novo Código de Processo Civil[2] — em 7/6/2017, assentou que o pedido de suspensão nacional, com motivação no artigo 1.035, § 5 do CPC, além de “não consistir em consequência automática e necessária do reconhecimento da repercussão geral realizada com fulcro no caput do mesmo dispositivo, sendo da discricionariedade do relator do recurso extraordinário paradigma determiná-la ou modulá-la”, estabeleceu que, em caso de pedido superveniente por qualquer interessado em ver a suspensão decretada nacionalmente, deverá ser requerido no bojo do processo em que o Supremo Tribunal Federal a tenha reconhecido e não no processo em que o interessado seja parte.

Data maxima venia, esse entendimento parece que não só deixa a ver navios os ideais do novo CPC em trazer a decantada segurança jurídica e celeridade, além do tratamento isonômico aos jurisdicionais, mas deixa ao arbítrio do relator a opção de sobrestamento, o que não nos parece adequado:

— a uma porque mantém-se, de forma perigosa, uma espécie de livre convencimento ou subjetividade desgarrada do ideal de segurança jurídica e isonomia tão festejados pelos processualistas e,

— a duas, porque deixa a celeridade pretendida (o êxito quantitativo — verdadeiro eixo do novo diploma processual) ao vento, na medida em que, por certo, processos em andamento nos quais se discute, em tese, a mesma questão poderão receber diversos tratamentos pelos juízos e Tribunais por onde tramitam.

Repetimos. Somos críticos desse modelo de positivismo jurisprudencialista em que os provimentos vinculantes nascem, crescem e produzem efeitos no âmbito das cortes, irradiando-os para todo o sistema processual; mas, se ele está aí, que sejamos coerentes com ele! E ser coerente com o modelo significa fazer da suspensão dos processos uma consequência necessária do reconhecimento da repercussão geral, e não uma mera escolha do ministro relator do recurso. Simples assim.

Note-se que, mesmo que quiséssemos ser simpáticos com a defesa cega que tem sido feita em prol dos mecanismos vinculantes, seria indispensável defender que a suspensão nacional dos processos é uma imposição legal. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal revela um perigoso sincretismo, como, aliás, reiteradamente de há muito temos denunciado: quando convém, os (trans)precedentalistas encontram-se presos ao paradigma ontoteológico da metafísica clássica e são reféns dos assim denominados precedentes; porém, como que num passe de mágica, assumem uma postura própria da metafísica ontoteológica moderna, em que a vontade do sujeito assujeita — e se impõe no e sobre — o Direito. Daí o recurso constante à discricionariedade!

Não podemos esquecer que a discricionariedade — no sentido criticado por Dworkin — representa a total ausência de limitações sobre padrões de autoridade[3], o que, sejamos francos, somente seria um problema, diante do positivismo criticado pelo jusfilosofo estadunidense, quando estivéssemos diante da textura aberta das regras e, portanto, da falta de padrões outros capazes de limitar o órgão julgador. Essa noção de discricionariedade foi designada por Castanheira Neves como uma espécie de indiferença jurídica, que se traduz na “faculdade de opção dentre uma pluralidade de decisões possíveis (todas igualmente válidas de um ponto de vista puramente jurídico) imputável à autonomia do órgão chamado a decidir”, sendo esta opção uma “posição pessoal (‘subjectiva’) desse órgão perante o caso decidendo”[4]. Nessa linha, o intérprete estaria absolvido acerca da correção da decisão sempre que a norma em questão apresentasse um programa indeterminado, podendo escolher livremente entre uma série de possibilidades que se lhe apresentassem no momento da decisão.

No Brasil, porém, nem é disso que se trata! Como diria o grande filósofo contemporâneo Arnaldo Cezar Coelho, a regra do artigo 1.035, § 5º, CPC, é clara. E se a “regra” é clara nem mesmo um positivista como Hart diria que o Supremo tem poder discricionário para afastar o referido dispositivo legal.

Os efeitos colaterais da arbitrariedade já começam a surgir, roendo silenciosamente o próprio sistema dela decorrente. Isso é grave. Gravíssimo.

É preciso saber para quem o CPC/2015 foi idealizado: se para os Tribunais de Cúpula, com o propósito em resolver por meio de amostragens quantitativas os processos que, por enquanto, ainda chegam naquelas cortes; ou para o jurisdicionado sob a ideia de que a isonomia, a celeridade e a segurança jurídica constituem dever do Estado?

Isso nos remete ao livro Por quem os sinos dobram, no qual se narra um acontecimento durante a Guerra Civil Espanhola (1937) em que o idealista norte-americano (Gary Jordan) com o propósito de colocar abaixo uma ponte estratégica existente em um penhasco bem defendido pelos franquistas, alia-se aos guerrilheiros. Já no local, o idealista, juntamente com um guia que lhe apresenta ao chefe dos guerrilheiros da região (Pablo), sua esposa (Pilar) e outros inicia a jornada.

Nesse contexto, todavia, Jordan se apaixona por (Maria), uma linda jovem cujos pais foram mortos pelos franquistas. A missão do idealista é contestada pelo chefe da guerrilha, pois, se explodirem a ponte, atrairão o exército e a aviação franquista. Pilar, mulher do chefe da guerrilha, não concorda com seu marido, o qual passa a agir de um jeito no mínimo suspeito…

Será que o Supremo Tribunal Federal, ao assentar esse entendimento segundo o qual a suspensão nacional (e mesmo o próprio reconhecimento da repercussão geral)[5] caracterizaria atos discricionários do relator não estaria traindo as bases sobre as quais repousou a ideia de segurança e isonomia aos jurisdicionados?

Da mesma forma que o idealista norte-americano, ao se juntar aos guerrilheiros, tinha um propósito inicial… os idealistas do Código de Processo Civil talvez também os tinham, mas, no caminho, encontraram um Supremo Tribunal Federal… a Corte Suprema atravessou o caminho… e dessa forma, ao fim e ao cabo, qual será o efetivo propósito?

Desconfiamos que esse mote, em verdade, sirva a outros propósitos… julgamentos superficiais com produção de teses em abstrato, reprimenda de acesso aos tribunais superiores e a pole position no gerenciamento processual cujo objetivo seria limpar acervos … a qualquer custo!

É sempre bom essa advertência aos idealistas, sob pena de serem instrumentalizados.

De novo: Por quem será que os sinos dobram?


[1] Para fins de Repercussão geral “será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo” (art. 1.035, § 1º do CPC/15).

[2] O STJ em muitos julgados ao fazer referência ao Código, o faz assim: “Código Fux de Processo Civil”.

[3] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 79.

[4] CASTANHEIRA NEVES, António. O problema da discricionariedade. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico e da sua metodologia e outros. Volume 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 538. Perspectiva também abordada em um tom crítico pelo autor português.

[5] Nessa oportunidade, o Supremo Tribunal Federal, em acórdão proferido, por maioria, no RE 847.429, no qual se seguiu o voto condutor do Ministro Dias Toffoli fixou entendimento segundo o qual o Tribunal para analisar se o tema tem ou não repercussão geral deve se atem “as balizas traçadas no acórdão recorrido”, desprezando-se o pedido e a causa de pedir levada no bojo do recurso extraordinário.

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