Processo Familiar

"Cura gay" é charlatanismo, e o Direito não pode compactuar com isso

Autor

  • Rodrigo da Cunha Pereira

    é advogado presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e psicanálise.

8 de outubro de 2017, 8h00

Não é a primeira vez que o Brasil se depara com a questão da pseudo “cura gay”. Tramita na Câmara dos Deputados, em caráter conclusivo, o PL 4.931/2016, de autoria do deputado Ezequiel Teixeira (PTN-RJ), que “dispõe sobre o direito à modificação da orientação sexual em atenção a Dignidade Humana”. A absurda proposta encontra-se atualmente na Comissão de Seguridade Social e Família, pois encerrado o prazo para apresentação de emendas, em 6 de setembro.

Esse assunto voltou à discussão quando, no dia 15 de setembro, um juiz federal do Distrito Federal julgou procedente o pedido, em uma ação popular proposta pela psicóloga Rozangela Alves Justino e outros, para invalidar Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que proíbe psicólogos de submeter seus pacientes à psicoterapia com objetivo de “reverter” a homossexualidade.

Pelo sim ou pelo não, essa decisão judicial tem o grande mérito de trazer de volta essa inquietante questão. Impressionante como esse assunto tem o poder de mobilização geral. É que ele diz respeito a todas as pessoas. Todos somos sujeitos sexuais. E todos estão sempre à procura de uma “normalidade”. Algo que se encaixe na norma. E o Direito, como um instrumento ideológico de inclusão e exclusão de pessoas no laço social, sempre tentou regular a sexualidade, embora isso seja impossível. É assim que o casamento foi, por muitos e muitos séculos, o legitimador das relações sexuais. Mas esse discurso moralizante era rompido sempre, principalmente pelos homens, que até ficavam enaltecidos em sua masculinidade. Mas, como todo discurso moralista, ele trazia consigo a sua própria contradição: se somente os homens podiam ter relações sexuais antes ou fora do casamento, com quem eles iriam ter relações sexuais, se às mulheres era proibido? Só podia ser com prostitutas ou outros homens, ambos condenados pela ordem jurídica e social.

A sexualidade interessa ao Direito de Família na medida em que ela é o elemento intrínseco, vitalizador, ou desvitalizador, da conjugalidade. E das famílias conjugais decorrem direitos. No Direito mais contemporâneo, a conjugalidade, seja no casamento ou união estável, já não é mais monopólio da heteroafetividade. Mesmo assim as relações homossexuais continuam sendo um assunto que ainda envolve muito preconceito. Denominá-la de relações homoafetivas muda o significante e ajuda a diminuir essa carga de preconceito. Ver a homossexualidade como doença é uma boa forma de patologizar no outro o que é estranho em si mesmo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 17/5/1990, retirou do rol das doenças a homossexualidade. Apesar disso, nove países no mundo têm pena de morte para homossexuais. No Brasil, ainda há quem veja a preferência homossexual como doença. E o mais incrível é que ainda há pessoas, que se dizem psicólogos, que também pensam assim. Certamente não leram Freud, que em sua teoria das pulsões já disse, no início do século passado, que todas as pessoas trazem consigo uma predisposição à bissexualidade. A sexualidade humana, portanto, não é algo natural, é “perverso-polimorfa”. A sexualidade é plástica. Em outras palavras, mesmo os que se dizem “normais” trazem consigo, latente ou sublimado, a bissexualidade. Querer atribuir à heterossexualidade o estatuto da normalidade, em oposição à homossexualidade, é animalizar demais a sexualidade humana ao colocá-la apenas como instintiva e geneticamente predeterminada. Isso significa reduzir a humanidade que há em cada um de nós. Em linguagem constitucional, é reduzir a dignidade humana.

Entender a homossexualidade como doença, a ponto de querer revertê-la à heteronormalidade, é apenas uma maneira de repudiar a pulsão sexual do outro e em si próprio. Mas isso é impossível. A pulsão sexual está em nós, irremediavelmente. A homofobia é a homossexualidade não reconhecida em si e que traz consigo o desejo de combatê-la no outro. Os fiscais da sexualidade alheia, os guardiões da moralidade, certamente têm questões da própria sexualidade mal resolvida. Quem está em paz com a própria sexualidade não se incomoda com a dos outros.

As experiências com esse tipo de tratamento constituem uma violação à dignidade e é uma tortura, objetificação do sujeito ao tentar adestrá-lo para a heteronormatividade. O relato da fotógrafa equatoriana Paola Paredes é chocante. Ela fez uma importante denúncia, com registros fotográficos da violência que é o tal tratamento. No Equador, embora seja proibida a tal “cura gay”, existem dezenas de clínicas, travestidas de tratamento de alcoolismo e drogas. A fotógrafa fez uma profunda investigação, inclusive visitando mulheres que passaram por essas clínicas. O que se viu ali é o retrato da violência psíquica que significa tal “tratamento”. Para que as mulheres se feminilizassem e passassem a gostar de homens, eram submetidas a “estupros corretivos”. Também recebiam “vitaminas” que provocavam perda de memória, insônia. Tinham que escutar por horas músicas religiosas, ou eram obrigadas a andar de saltos altos, usar maquiagem e saias curtas (www.paolaparedes.com). Essa realidade de um país latino-americano nos leva a crer que existam clínicas clandestinas como essas no Brasil. O Conselho Federal de Psicologia, atento a isso, é que fez a tal Resolução CFP 01/1999.

A hetero e a homossexualidade são apenas variantes da sexualidade humana, e o pluralismo sexual é atributo da personalidade e como tal não pode qualificar ou desqualificar pessoas e expropriar cidadanias. Assim como a cor da pele, o gênero e a opção religiosa, a preferência sexual não pode ser um obstáculo ao exercício do gozo de todos os direitos em uma sociedade. Só se pode entender que a homossexualidade tem cura se a heterossexualidade também tem. A sexualidade humana é diversidade e alteridade que está em cada um de nós. Somos todos sujeitos de desejo e sujeitos de pulsão. Portanto, prometer ou anunciar psicoterapia de reversão, ou seja, cura gay, é moralismo perverso, propaganda enganosa e ignorância. E o Direito não pode permitir ou compactuar com tal charlatanismo.

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    é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

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