Diário de Classe

Intervenção da União na União: o caso do afastamento de Aécio pelo Supremo

Autores

  • Flavio Quinaud Pedron

    é sócio do Pedron Advogados doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professor na UniFG (Bahia) na PUC-Minas e no IBMEC editor-chefe da Revista de Direito da Faculdade Guanambi e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional da Associação Brasileira de Direito Processual e da Rede Brasileira de Direito e Literatura.

  • Alexandre G. Melo Franco de Moraes Bahia

    é doutor em Direito pela UFMG e professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e do IBMEC-BH.

7 de outubro de 2017, 8h05

A determinação do STF, novamente, de afastar o senador Aécio Neves de suas atividades do Senado causou grande perplexidade. A Constituição de 1988 é a única que pode determinar direitos e obrigações para os Poderes e, claro, para seus membros. A Constituição permite, excepcionalmente, que um parlamentar seja preso em caso de flagrante delito de crime inafiançável — e que essa prisão deve ser comunicada imediatamente à Casa Legislativa para que esta delibere sobre sua manutenção ou não. Perceba-se que a regra dita no parágrafo 2º do artigo 53 da Constituição é a impossibilidade de qualquer forma de prisão cautelar de parlamentares, com uma única exceção trazida ali e que mencionamos acima. Essas e outras prerrogativas estão inseridas no que se denomina de “imunidades parlamentares”, criadas com o objetivo de preservar a “dignidade da legislação”, parafraseando Waldron. Não são pensadas como privilégios, mas, sim, para que o exercício de tão nobre função não sofra com perseguições de inimigos políticos ou com ingerências de outros Poderes. Num país com o nosso histórico de violações pré-Constituição de 1988, compreende-se perfeitamente as razões de tantas proteções.

A Constituição não dispõe, no entanto, de nenhuma possibilidade de afastamento de parlamentar de seu cargo por ordem judicial. Quem poderia determinar tal suspensão seria o Conselho de Ética da Casa, mas não um órgão judicial. Lembremos que um dos casos mais paradigmáticos da história da Suprema Corte dos EUA (Marbury vs. Madison, 1803) se dá, justamente, no debate sobre a ingerência entre os Poderes, quando ficou assentado que somente a Constituição pode tratar de Poderes e prerrogativas daqueles.

Afastar de suas funções um parlamentar eleito é ir de encontro à vontade de milhões de eleitores e apenas poderia ser determinado por decisão da Casa a que ele pertence, como dito, via Conselho de Ética ou de cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar ou com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, por deliberação do Plenário (artigo 55 da CR/88).

Assim, a decisão dada pelo STF não encontra fundamento algum na Constituição. E pior: encontra fundamento no Código de Processo Penal e, então, isso significa que aquela está sendo lida a partir deste, e não o inverso!

Mas a situação que aparentemente já é calamitosa sob os aspecto constitucional ainda pode piorar: o Senado está para deliberar sobre se irá ou não cumprir a decisão — o que levanta sérias discussões sobre se uma decisão teratológica deve ou não ser cumprida. Sobre isso, o promotor de Justiça Roberto Livianu afirmou: “[E]ssa decisão do STF tem que ser obedecida. Se não for, podemos ter uma hipótese constitucional de intervenção federal no Senado”.

Partindo-se da premissa de que decisões judiciais realmente têm de ser cumpridas como regra, temos de discordar de Livianu tanto quanto à consequência quanto à possibilidade de o Senado deliberar pelo descumprimento da ordem: como mostrado acima, a possibilidade de interferência do STF sobre o Senado apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos na Constituição e esta, além de em momento algum dispor sobre a possibilidade daquele determinar o afastamento de algum membro de Casa Legislativa, não possui, ao contrário do que foi dito por Livianu, nenhuma disposição sobre a possibilidade de o STF determinar uma intervenção no Senado.

As hipóteses de intervenção federal são de intervenção da União nos estados e Distrito Federal — ou em municípios que se situassem em territórios federais — e são dadas expressa e taxativamente (artigos 34 e 35). Em momento algum a Constituição possibilita uma intervenção da União na União. Mesmo quando o caso é de intervenção determinada pelo STF em caso de descumprimento de ordem judicial, essa decisão é enviada ao presidente da República, que fará um decreto de intervenção no Estado. O descumprimento de ordem judicial do STF, por exemplo, por parte de um governador ou pela Assembleia Legislativa pode ensejar uma ordem do STF ao presidente da República para que faça uma intervenção no estado e possível nomeação de um interventor (artigo. 36, II), mas, nunca, uma intervenção de um Poder sobre outro de mesma configuração federativa — pior ainda, com a nomeação de um interventor. Durante a ditadura militar, presidentes da República até determinaram fechamentos do Congresso, mas nomeação de um interventor no Senado ou na Câmara é coisa totalmente inovadora.

Os Poderes são independentes entre si, e quaisquer hipóteses de freios e contrapesos apenas podem ser previstas na Constituição. Temos até reservas sobre se outras hipóteses poderiam ser acrescidas via emenda tendo em vista o que dispõe o artigo 60, parágrafo 4º daquela.

No mês em que a Constituição de 1988 completa 29 anos, sabemos que temos muitos desafios; sabemos que a corrupção é um grave problema. No entanto, ou estamos sob um Estado (Democrático) de Direito e, então, temos de garantir que a Constituição seja respeitada (até para os que não a respeitam) ou o que teremos é a barbárie e a “guerra de todos contra todos”: no afã de se fazer cumprir a lei ou ordens judiciais, não se pode comprometer a única coisa que estabelece uma linha divisória entre essas duas opções.

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