Opinião

Com emenda que permite censura, Brasil tropeça na própria desinformação

Autor

  • Ricardo Resende Campos

    assistente de docência wissenschaftlicher Mitarbeiter na cátedra de direito público e teoria do direito. Responsável pelo tradicional colóquio semanal de teoria do direito de Frankfurt Frankfurter rechtstheoretisches Kolloquium.

6 de outubro de 2017, 14h20

Nesta quinta-feira (5/10), foi encaminhado para sanção pela Câmara o Projeto de Lei 8.612/2017, que traz consideráveis alterações no Código Eleitoral, na Lei das Eleições e ainda revoga alguns dispositivos da minirreforma eleitoral de 2015. Dentre vários temas, três deles são bem sensíveis e tocam diretamente o cotidiano da comunicação na internet: anonimato, geração de notícias falsas e discurso do ódio.

A reação a esses sensíveis pontos foi instantânea e pontual: trata-se de uma questão de censura. Tal qual veio a reação, veio também a externalização de um profundo desconhecimento das experiências internacionais no enfrentamento do problema central que se encontra em jogo. A geração de notícias falsas lançadas na internet, acobertadas pelo anonimato e motivadas pelo discurso do ódio é hoje o “combo” perfeito para a formação de um ciclo pernicioso, aterritorial e atemporal em “terra de ninguém”.

Movidas pela gravidade e pelo alcance ilimitado dessas informações, leis bem mais consistentes e "pesadas" que as propostas têm sido discutidas reiteradamente nos Estados Unidos e já foram inclusive promulgadas na Alemanha. A reação delas vai na contramão do vetor unidirecional da "censura" que andou justificando a discussão sobre o tema. As leis estrangeiras sobre o assunto estabelecem veementemente a exclusão de comentários e notícias "falsas" pela própria rede social que os propagou. Não para por aí, estão previstos deveres anexos de informação na reparação dessas notícias e inclusive multa que vai até o montante de 50 milhões de euros.

Os meios eletrônicos e sua utilização em massa têm causado transformações em quase todos os âmbitos da vida social. Eles transformam a forma como nos comunicamos, como nos informamos, como consumimos, como somos diagnosticados, como nos relacionamos afetivamente etc. Essas transformações acarretadas pelos novos meios de comunicação também têm influenciado profundamente o Direito. Novos campos surgem, como proteção de dados, e outros são revolucionados, como propriedade intelectual. Assim como a tecnologia e a cultura da impressão moldou os tempos das grandes codificações e Constituições do século XIX, o mundo digital dará contornos decisivos ao Direito atual[1].

Tomemos o Direito do Trabalho como exemplo. Os meios digitais criaram novas categorias e instituições como a crowdsourcing. Trata-se de uma plataforma digital na qual um problema é colocado à disposição para ser solucionado de forma competitiva ou colaborativa mediante remuneração. Duas grandes diferenças para o mundo do trabalho off-line: por um lado, as empresas que contratam esse serviço da plataforma muitas vezes têm apenas uma relação de desempenho anônima; por outro lado, o mercado a ser alçando é global e não fica limitado a certa jurisdição ou país[2]. Os crowdworkers não são nem empregados nem trabalhadores autônomos no sentido tradicional. Trata-se de uma forma híbrida de emprego que não encontra correspondência na legislação trabalhista[3]. Estima o Banco Mundial que já existam, somente nos Estados Unidos, 54 milhões de crowdworkers e mais de 2.300 plataformas crowdsourcing, com tendência crescente.

Na esfera pública e em seus âmbitos correlatos, como eleições democráticas, o impacto do advento do mundo digital é ainda mais profundo. E isso somente passou a ficar claro nas últimas eleições americanas. Se até o início do novo milênio a esfera pública e a forma com que as pessoas se informavam era centrada ou "filtrada" por grandes organizações — jornais ou canais de televisão —, a nova esfera pública digital descentraliza o papel das organizações, colocando novos atores e novas técnicas em jogo, sobretudo as das redes sociais. Facebook, Twitter, WhatsApp e YouTube viraram o epicentro onde informações são geradas e compartilhadas, ou seja, nelas é onde encontra-se o maior número de acessos e são nelas que essas notícias alcançam seu maior número de leitores.

Desde o início de setembro, entretanto, as empresas americanas como Facebook, Google e Twitter têm enfrentado forte pressão devido à manipulação e influência não transparente na seara da esfera pública. Todas elas têm sido convocadas no Senado americano para prestar contas da obscuridade das últimas eleições americanas junto aos house intelligence commitees. O Facebook, por exemplo, foi obrigado a revelar ao Congresso mais de 3 mil anúncios políticos comprados pela Rússia durante as eleições e que, antevendo futuros problemas, apagou espontaneamente algumas dezenas de milhares de contas falsas antes das eleições alemãs ocorridas no dia 25 de setembro deste ano. No final do mês passado, numa audiência no Senado americano, também foi a vez do Twitter revelar aos congressistas as 200 contas russas para interferir nas eleições americanas. Devido à má experiência com as últimas eleições, os Estados Unidos se preparam para o novo pleito eleitoral de 2018. Seus institutos jurídicos terão que ser adaptados às novas condições da sociedade em redes.

Uma das ferramentas que está em foco para uma nova regulamentação jurídica é a técnica do ad-targeting criada pelo Facebook. Essa forma de anúncio possibilita qualquer cidadão ou mesmo uma conta falsa a direcionar um anúncio para um público-alvo específico. São anúncios que levam em conta não apenas a delimitação territorial que irão abranger, como também a idade, o sexo e as preferências dos leitores, criando um tipo ideal de público-alvo. Isso pode ser usado para delimitar uma comunidade de amantes de vinho tinto, ou pode ser criado para gerar conteúdo político-eleitoral falso ou até mesmo racista e separatista.

O primeiro país a dar um passo consciente na necessidade de adaptar o Direito às novas condições da sociedade de redes foi a Alemanha. No dia 30 de junho, o Parlamento alemão (Bundestag) promulgou a lei Netzwerkdurchsetzungsgesetz – NetzDG, a qual entrou em vigor neste mês. O intuito desde o início era claro: assim como existiram regulamentações para jornais e televisão segundo suas especificidades e peculiaridades tecnológicas, o mundo digital também exige uma remodelação do Direito para proteger tanto o cidadão comum como as instituições democráticas e adaptar o Direito às condições das redes.

As regras presentes na nova lei alemã podem ser assim resumidas: as empresas de redes sociais devem montar um setor de compliance, no qual as mesmas devem estabelecer um procedimento transparente (parágrafo 3º da lei NetzDG) para lidar com as reclamações e exclusão de comentários, cumprindo o dever de informação e publicação on-line de relatórios a cada três meses (parágrafo 2º da lei NetzDG), com os critérios estabelecidos no inciso 2 do parágrafo 2º da mesma lei. Para casos limítrofes, onde não há clareza sobre o conteúdo, a lei prescreve a criação de um instituto típico de Direito Administrativo chamado regulação autorregulada (regulierte Selbstregulierung), onde a decisão é tomada por um grêmio de representantes de diversos setores da sociedade e do Estado, nos moldes da experiência alemã da lei de proteção de conteúdos para jovens. A nova lei obriga, entre outros, que a rede social tenha uma sede e um responsável legal com foro na Alemanha (parágrafo 5º da Lei NetzDG). O ponto central que causou maior discussão foi o da multa, caso uma rede social descumpra a lei: multa de 50 milhões de euros caso o conteúdo declaradamente falso não seja removido das plataformas dentro de 24 horas.

Certamente um dos pontos centrais da nova lei alemã foi reconhecer que há uma dinamicidade intrínseca do mundo on-line, a qual não pode ser comparada à do mundo off-line. A lei exclui do primeiro plano a reserva de jurisdição como prevista no artigo 18, seção III, da Lei do Marco Civil brasileiro, pois essa se torna ineficaz devido à velocidade da informação propagada, especialmente sendo falsa ou ofensiva. A resposta rápida e eficaz somente pode ser dada pela rede social, que detém dos meios técnicos para tal, o que não exclui, a posteriori, a apreciação judicial. Não se trata assim de privatização da Justiça ou da função do Poder Judiciário, apenas de adequação do Direito às novas condições tecnológicas.

Já o PL 8.612/2017 procura enfrentar o problema, mesmo que de forma pouco sistematizada se comparado à lei alemã. É notória uma pressa para a publicação dentro do prazo, pois assim poderá valer para as próximas eleições. Contudo, o projeto apresentado tem seu mérito e demérito ao mesmo tempo. São introduzidas importantes mudanças no tocante às regras eleitorais, como parcelamento de dívidas, gastos pessoais, distribuição do fundo eleitoral etc. Regulamentações que tocam as regras para internet são a regularização do crowdfunding a partir de 15 de maio e a chamada "cláusula Facebook", que autoriza candidatos e partidos a pagarem pelo serviço de impulsionamento de publicações no Facebook ou Google.

Entretanto, o que mais tem causado rebuliço é o artigo 57 B, parágrafo 6º. Ele prescreve que o provedor — no caso, Facebook, Twitter etc. — exclua dentro de 24 horas conteúdo flagrantemente falso ou que seja de discurso de ódio, porém sem arbitrar multa, como no caso alemão. Associações com a Abert (Associação Brasileira de Rádio de Televisão) e a Aner (Associação Nacional de Editores e Revistas), entre outras personalidades e políticos, consideram a regra um flagrante caso de censura. Se compararmos à lei alemã da NetzD, esse parágrafo 6º é apenas uma bagatela. O que realmente o torna problemático não é nem a referência ao discurso de ódio ou geração de notícias falsas, mas a menção à exclusão por ofensa a candidato é tão inaceitável e indeterminada quanto o debate sério em torno do tema.

Novamente paira no ar a sensação de que há no discurso político-jurídico brasileiro uma persistente tendência à redução de temas complexos numa ou noutra questão pontual. Nesse caso, veio a censura englobar toda essa monstruosa dimensão da internet já claramente diagnosticada — e remediada — por outros países. A simplória justificativa em questão demonstra tão somente a imaturidade ou mesmo ausência de um debate responsável em torno de um dos temas mais promissores na atualidade: a informação na esfera pública digital.

Se a lei não toma para si o reconhecimento bem como a exigência da exclusão da notícia falsa lançada nas redes sociais e, tão somente direcionada à manipulação de uma massa de eleitores “enganados”, quem o fará? Certo é que relegar ao cidadão comum e isolado o ônus de ter que reconhecer uma fake news ou ter que lidar com falas e comentários direcionados (pelo tipo ideal), num território tão vasto quanto a internet, é tão inexigível quanto irreal.

Estamos fadados a que a desinformação e o discurso de ódio acabem se tornando a principal estratégia de influência na esfera pública. Nesse caso, sim, presenciaremos consequências desastrosas para as instituições democráticas. Na verdade, sem uma adaptação do Direito à nova sociedade de redes do mundo digital, as eleições de 2018 se tornarão um verdadeiro "velho oeste" da ilegalidade.

Enquanto a Alemanha já tomou um passo firme com a promulgação da nova lei, e os Estados Unidos caminham incessantemente nesse sentido, o Brasil vem e tropeça na própria desinformação. Que nossa liberdade de expressão não se torne liberdade de agressão.


[1] Thomas Vesting, Medien des Rechts. Buchdruck, Weilerswist: Velbrück Wissenschaft 2013.
[2] Däubler/Klebe, Crowdwork: Die neue Form der Arbeit – Arbeit- geber auf der Flucht?, NZA, 2015, 1032 ss.; Isabell Hensel, Crowdworking als Phänomen der Koordination digitaler Erwerbsarbeit, IndBez 23, 2016, 162 ss.
[3] Ver caso United States District Court von California, San Francisco, Case No. 12-cv-05524- -JST – Class Action Otey/Greth vs. Crowdflower.

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