Direito do Agronegócio

Artigo 68 do atual Código Florestal brasileiro é constitucional e legal

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6 de outubro de 2017, 8h00

Spacca
Em artigo anterior, publicado na ConJur, já afirmamos que a função social e o desenvolvimento sustentável se estruturam sobre três pilares: a produção eficiente, a proteção ambiental efetiva e o respeito aos direitos trabalhistas e às relações emanadas do exercício da empresa e do direito de propriedade.

De fato, no tocante aos imóveis rurais, o Estatuto da Terra definiu — já no ano de 1964 e em seu artigo 2º, parágrafo 1º — que a função social da propriedade rural seria cumprida integralmente quando, de modo simultâneo (o destaque é nosso), “favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias”, “mantém níveis satisfatórios de produtividade”, “assegura a conservação dos recursos naturais” e “observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam”.

Sendo assim, encontramos nesse texto legal a identificação dessas três finalidades que devem coexistir em um imóvel rural para que então a consecução efetiva da função social possa se dar, quais sejam: uma finalidade econômica, uma finalidade social e uma finalidade ambiental.

Essa mesma perspectiva foi adotada na formulação do artigo 186 da Constituição Federal vigente, no sentido de compreender que a função social será cumprida apenas e tão somente com a coordenação desses três objetivos e sem que se possa prescindir de nenhum deles.

A partir dessa norma, foram criadas diversas leis que, cada uma a seu modo e com o seu objetivo específico, procuram garantir a realização de tais objetivos sob uma ordenação que deverá ser necessariamente harmônica e a partir desse sentido maior do que representa ser a função social no tocante aos imóveis com destinação agrária.

Especificamente no que se refere à mencionada finalidade ambiental, constata-se que no ordenamento jurídico brasileiro há regras que cuidam dessa questão há muito tempo.

De um modo mais sistemático e específico, a proteção florestal foi tratada pela legislação do Brasil a partir de 1921, embora já houvesse, desde muito antes, esforços dirigidos à conservação de nossas matas.

Com efeito, as limitações ao direito de exploração florestal, no tocante a certos tipos de madeiras no Brasil, existiam desde a época da dominação portuguesa. Por exemplo, o assim denominado “Regimento sobre o Pau-Brasil”, de 12 de dezembro de 1605, estabelecia que árvores dessa espécie pertenciam com exclusividade à Coroa portuguesa e, assim, sem as devidas autorizações não poderiam ser cortadas.

Já no período republicano, direitos de propriedade sobre florestas particulares recebiam limitações, as quais se fundavam na justificativa de que constituíam elas “bem de interesse comum a todos os habitantes do país”, conforme disposto no artigo 1º do Decreto 23.793 de 23 de janeiro de 1934.

Assim, o conceito de reserva florestal surgiu no ordenamento brasileiro pela primeira vez no Código Florestal promulgado no ano de 1934, lei que tinha por objetivo sistematizar e garantir a preservação e conservação das florestas nacionais, públicas ou particulares. As florestas eram então classificadas como sendo protetoras, remanescentes, modelo e de rendimento. Aquelas pertencentes às duas primeiras espécies eram consideradas inalienáveis e de conservação obrigatória e perene.

Já em 1965 foi então criado outro Código Florestal, o que se fez pela Lei 4.771, que, em linhas gerais, seguiu a orientação do antigo decreto de 1934.

Nessa posterior legislação foram consolidadas as noções acerca das áreas nas quais não deveriam ser realizadas atividades agrárias clássicas, com o objetivo explícito de proteger a vegetação nativa e de evitar a consequente erosão do solo.

Quanto às florestas de domínio privado, essas não estavam sujeitas ao regime de utilização limitada e, ressalvadas as áreas de preservação permanente, eram suscetíveis de exploração, obedecidas as restrições estabelecidas em lei, especificamente nas alíneas do artigo 16[1].

Desse modo, o Código Florestal de 1965 consolidou os conceitos legais das áreas de preservação permanente e das reservas legais como espaços territoriais de proteção ambiental. Assim, enquanto as primeiras se referem a áreas que devam ser protegidas em função de sua localização e características, as segundas correspondem a uma fração do território de cada imóvel rural que deverá ser conservado com vegetação nativa, garantindo desse modo a manutenção das características próprias de fauna e flora típicas do território nacional[2].

Após a promulgação do Código Florestal de 1965, seguiram-se diversas alterações legislativas.

Portanto, a legislação florestal não se manteve inalterada ao longo dos anos, tendo sido, pelo contrário, grande a sucessão de regras que procuraram disciplinar as questões vinculadas à cobertura florestal brasileira.

Por último, mediante longo e debatido processo legislativo, veio à luz a Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, conhecida como o atual Código Florestal brasileiro.

Como lei recente que é e tendo por objeto regular matérias que vêm rendendo, de modo peculiar, posições extremadas e injustificadamente avessas a qualquer forma de harmonização, o tempo decorrido desde a sua aparição é ainda insuficiente para que as necessárias reflexões possam se afirmar sobre suas qualidades e defeitos.

De toda forma, algumas posições já podem ser adotadas no sentido de contribuição para as interpretações desse texto legal e, assim, para a melhor consecução de suas finalidades.

Dentre as regras principais, uma está contida no artigo 68 desta nova lei, cujo enunciado é o seguinte:

“Art. 68. Os proprietários ou possuidores dos imóveis rurais que realizaram a supressão da vegetação nativa respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor à época em que ocorreu a supressão são dispensados de promover a recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais exigidos nesta Lei.

§1º Os proprietários ou possuidores de imóveis rurais poderão provar essas situações consolidadas por documentos tais como a descrição de fatos históricos de ocupação da região, registros de comercialização, dados agropecuários da atividade, contratos e documentos bancários relativos à produção, e por todos os outros meios de prova em direito admitidos.

§2º Os proprietários ou possuidores de imóveis rurais, na Amazônia Legal, e seus herdeiros necessários que possuam índice de Reserva Legal maior do que 50% (cinquenta por cento) de cobertura vegetal e não realizaram a supressão da vegetação nos percentuais previstos pela legislação em vigor à época poderão utilizar a área excedente de Reserva Legal também para fins de constituição de servidão ambiental, Cota de Reserva Ambiental – CRA e outros instrumentos congêneres previstos nesta Lei”.

A despeito das objeções formuladas, esse artigo de lei é coerente com o sistema já consolidado em nosso ordenamento jurídico quanto à interpretação de fatos jurídicos pregressos, feitos sob o império das leis vigentes à época e que foram substituídas por outras regras legais.

Primeiro, cumpre reafirmar um princípio quanto à aplicação das leis no tempo: quando uma lei entra em vigor, ainda que revogando ou modificando outra, seus efeitos são, ordinariamente, para o presente e para o futuro.

Sua importância é, de fato, tão evidente que seria o princípio da irretroatividade das leis “o ponto de partida para a fixação dos conceitos fundamentais do direito intertemporal”, como afirmava Caio Mario da Silva Pereira[3].

Com efeito, os casos admissíveis para a retroatividade das leis são exceções nos ordenamentos jurídicos dos povos civilizados. Seus melhores exemplos encontram-se, de fato, no Direito Penal — no tocante à aplicação de penas menos severas ou pela descriminalização de alguma conduta, criadas por lei posterior e aplicadas em benefício da pena já imposta ao condenado — ou para normas de índole tributária, no tocante à concessão de isenções ou reduções de impostos, por exemplo.

Ora, qual é o sentido do referido artigo 68 do atual Código Florestal?

Parece-nos claro que o que pretende tal regra é reafirmar a regra da irretroatividade das leis — ou da retroatividade, com a ressalva do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada — no tocante àqueles proprietários que, sob o império da lei vigente à época, desenvolveram as suas atividades agrárias lícitas e, para isso, suprimiram vegetação nativa tal como permitia regra válida à época.

Sob esse plano geral, portanto, entendo que o artigo 68 da Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, é constitucional e legal.


[1] Conf. o artigo 16 da Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965.
[2] Conf. A. M. de O. Nusdeo, Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais – Uma Análise das Motivações para a sua Efetiva Conservação, in G. J. P. de Figueiredo et. al, org., Código Florestal: 45 Anos; Estudos e Reflexões, Curitiba, Letra da Lei, 2010, p. 115.
[3] Instituições de Direito Civil, vol. 1. 12ª ed., Rio de Janeiro: Forense, pág. 100.

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