Contas à Vista

O que é uma tese e as novas fronteiras da pesquisa em Direito Financeiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

3 de outubro de 2017, 8h00

Em coluna anterior, tratei do que fazem os advogados especializados em Direito Financeiro. Nesta, dirijo-me aos interessados na atividade acadêmica vinculada ao Direito Financeiro, explicitando o que é uma tese e apresentando algumas das novas fronteiras da pesquisa nessa área.

Escrever uma tese não é escrever um livro, o qual é apenas um formato para apresentação de ideias. Uma tese contém uma hipótese de pesquisa, que, via de regra, se consubstancia em uma dúvida essencial sobre um ponto específico da matéria a ser analisada. Tal hipótese de pesquisa pode ser apresentada como uma pergunta que deverá ser respondida ao final do trabalho, ou ainda ser uma afirmativa, que será confirmada ou negada ao seu término. Sem hipótese de pesquisa não há tese — pode haver uma dissertação sobre determinado tema, jamais uma tese.

A formulação da hipótese é essencial para a tese. Nada mais irritante do que um rol de perguntas diversas e aleatórias a pretexto de hipótese de pesquisa. Trata-se de uma tolice e um engodo. A hipótese deve conter, no máximo, uma ou duas perguntas, cuja análise deve conduzir a escrita de todos os capítulos em que se desdobra o trabalho, e que devem ser respondidas na conclusão. Se a hipótese for formulada como uma afirmativa, esta deve ser negada ou confirmada ao final.

Observe-se que esse método permite distinguir o que é pesquisa do que é simplesmente levantamento de dados, como se vê em dissertações, cursos ou manuais. Nada contra estes, antes pelo contrário — só que cada qual desses textos cumpre funções diferentes. Uma dissertação é um produto centrado em um aspecto específico do conhecimento, de tal modo a esgotar sua análise — este é o foco da produção dos mestrados, onde não se exige inovação na abordagem do tema, porém o mestrando deve esgotar a análise do que se produziu sobre aquele objeto. Um manual apresenta escopo mais amplo e deve abordar os temas de forma horizontalizada, pois, como o nome indica, trata-se de algo para se ter a mão, visando esclarecer dúvidas mais simples, do dia a dia. Um curso deve abranger diversos temas correlatos, porém com mais profundidade, de tal modo a transmitir um conhecimento mais vertical sobre todos os aspectos referentes àquela ampla temática — ao mesmo tempo horizontal, pela latitude, e vertical, pela profundidade.

A diferença entre tese e dissertação fica por conta de um conceito: inovação, o qual só se alcança através de pesquisa. Uma tese traz aspectos novos que esclarecem as dúvidas apresentadas. Uma dissertação não visa esclarecer pontos obscuros do tema, apenas o trata de forma sistemática, com amplo levantamento de dados.

Com quase 30 anos de docência em Direito Financeiro e Tributário, já me deparei com diversas teses de doutorado, livre docência e de titularidade que não são teses, mas dissertações estendidas, alongadas. Muitos desses trabalhos são de alta qualidade, mas não apresentam, de forma sistemática, nenhuma novidade na abordagem da matéria. Certa vez me deparei com uma tese com cerca de 300 páginas e dividida em quase 30 capítulos, os quais não se desdobravam em nenhum subitem, e que não formulava nenhuma hipótese nem tinha conclusões. Não li o trabalho — não estava na banca nem se referia à minha área de estudos —, mas ao ler o sumário estranhei a metodologia apresentada.

Portanto, tese que não contém hipótese visando trazer luz a aspectos obscuros é apenas uma dissertação ampliada, e não se configura como pesquisa, com o rigor técnico que o nome indica, mas como levantamento de dados. Não é fácil formular uma hipótese, pois, se ela for malfeita, não permitirá o desenvolvimento do trabalho nem alcançar respostas inovadoras.

É claro que nem tudo que se escreve é uma tese. Podem ser produzidos textos de outro jaez, como de opinião, colunas na ConJur, monografias etc., porém, uma tese, para ter esse nome, deve ter uma hipótese — e isso é inafastável.

O que é um ponto obscuro a ser analisado por uma tese? Aqui o campo é vastíssimo e depende do olhar do observador. Uma análise sobre orçamento público, por exemplo, pode apresentar aspectos inovadores, a despeito de haver uma enormidade de material já escrito sobre o tema em Direito Financeiro, Economia, Contabilidade etc., contudo o mesmo tema pode ser apresentado sob uma análise dissertativa, sem qualquer inovação sobre a matéria, exceto o fato de ter sido feito um excelente levantamento bibliográfico — nessa situação, seria apenas uma dissertação alongada, e não uma tese.

Essa análise deve ser efetuada, preferencialmente, a partir de uma ótica interdisciplinar endógena e exógena. Pela ótica interdisciplinar endógena deve-se necessariamente analisar subáreas do conhecimento jurídico, isto é, para o Direito Financeiro, dialogar com autores de Direito do Estado, Constitucional, Tributário, Econômico e Administrativo, dentre outros. E pela interdisciplinaridade exógena observar o que se discute em áreas correlatas ao Direito, como a Economia, a Contabilidade, a Ciência Política etc. Observe-se que tal método afasta algumas tentações, como a de produzir olhando apenas para o umbigo de sua subárea, por exemplo, tratar de Direito Financeiro dialogando apenas com autores Direito Financeiro; ou de, a partir de uma faculdade de Direito, buscar produzir conhecimento em Economia ou Ciência Política. Parece-me óbvio que nas faculdades de Direito se deve produzir conhecimento jurídico — o que não implica em dizer que se deve reproduzir apenas o Direito Positivo (ou a letra da lei) nas análises.

Todos os temas podem ser analisados ou revisitados sob um caráter inovador. A diferença está na formulação da hipótese, ponto central das teses. Se a hipótese formulada já tiver sido respondida anteriormente, nada haverá de inovação; por outro lado, se a resposta anteriormente fornecida não for satisfatória à luz dos novos questionamentos, haverá um excepcional caminho a ser trilhado.

Daí porque é extremamente difícil listar temas a serem tratados em uma tese, pois dependem do olhar do analista para identificar as dúvidas que se apresentam, seja em áreas tradicionais, já esquadrinhadas por diversos autores, seja em novas áreas que surgem. Exatamente por isso não tratarei de novas hipóteses de pesquisa a serem discutidas, mas de novas fronteiras para a análise do Direito Financeiro, ainda pouco analisadas, e que merecem a reflexão de uma gama de estudiosos que buscam trilhar o árduo e dificílimo mercado de trabalho acadêmico.

Uma dessas fronteiras é a da correlação do Direito Financeiro com as pessoas com deficiência, que tem em Luiz Alberto David Araújo um estudioso de primeira hora. Confesso que vi alguns trabalhos ligeiros sobre o tema, mas que se limitaram a tecer comentários acerca das normas existentes. Há um campo enorme para estudos jusfinanceiros nessa área, correlacionando o custo desses direitos para o Estado e o efetivo direito de isonomia de tratamento que essas pessoas devem receber.

Outra área diz respeito ao mecenato e o terceiro setor, discutindo o papel das subvenções e isenções que essas áreas recebem (ou deviam receber) dos diversos níveis de governo. Conheço teses orientadas por Regis Fernandes de Oliveira que trilharam esse caminho. Aliás, a correlação entre Direito Financeiro e Arte é um dos objetos de estudo desse emérito professor.

Dias atrás, durante o XXI Congresso da Abradt, em Belo Horizonte, ouvi uma palestra de Onofre Batista, ilustre procurador-geral do Estado de Minas Gerais, apontando uma incongruência em nosso sistema federativo, pois, como sabemos, a doutrina consolidada informa que o Senado representa os estados da federação, e a Câmara representa o povo. Pois bem, estará o estado representado no conjunto da federação quando os três senadores forem de partido político oposto ao do governador? Onofre propunha um sistema que, se bem entendi, implica em dar aos governadores assento no Senado, a fim de que o estado seja efetivamente representado por quem o dirige. Pareceu-me uma ideia instigante, que merece ser analisada por suas implicações financeiras, pois o Senado é o grande responsável pelas autorizações para a dívida pública dos entes subnacionais. Além disso, esse órgão poderia muito bem reescrever o papel do Confaz. Merece reflexão.

Aliás, a correlação endógena e exógena a que me referi acima está presente em diversos temas que relacionam o Direito Financeiro com a democracia e a república, tal como a questão do financiamento eleitoral, pois é a pedra de toque da composição dos Legislativos e Executivos, dois dos Poderes que são periodicamente eleitos em nosso país. A partir do financiamento eleitoral, dentre outras regras, escreve-se as linhas pelas quais as pessoas são eleitas e passam a criar normas. Na área jurídica, temos adoração pelo estudo das normas, porém pouco estudamos a forma de acesso das pessoas ao Poder Legislativo e ao Executivo, órgãos que fazem as normas. O Direito Financeiro tem muito a contribuir nesse campo.

Falando de temas eleitorais, de pronto surge outro assunto, que é o da corrupção e compliance — lembrando Cícero: “o tempora, o mores!”. Tais temas não se limitam à análise do Direito Penal ou Administrativo, constatando-se que grande parte dos desmandos possui implicações financeiras de monta, envolvendo os diferentes governos, distintos no tempo e no espaço federativo. Compliance, aliás, implica em “adoção de práticas de conformidade com as normas”, como nos lembra Renato de Mello Jorge Silveira, em vários de seus trabalhos sobre o tema. O Direito Penal não esgota o assunto, pois o problema se coloca em outro lugar, como sempre recorda Jacinto de Miranda Coutinho.

Outro tema que merece maior detalhamento é o do controle social, acerca do qual fiz uma apresentação no 13º Fórum Brasileiro de Controle da Administração Pública, organizado pela Editora Fórum, no Rio de Janeiro. Identifica-se usualmente o controle social com o que está inscrito no artigo 74, parágrafo 2º, CF, porém penso que tal preceito nada mais faz do que veicular o direito fundamental de petição, inscrito no artigo 5º, XXXIV, “a”, CF. O alcance do controle social do Estado é muito mais amplo e deve ser analisado no contexto de diversos fatores externos, como a mídia e as redes sociais.

A questão das renúncias fiscais também merece mais acurada análise, como a que vem sendo feita por José Maria Arruda de Andrade, que diversas colunas vem publicando nesta ConJur sobre o tema. A fórmula adotada pela Secretaria do Tesouro Nacional para mensurar tal parâmetro é de uma pobreza franciscana, pois parte de pressupostos conceituais que não possuem correlação com a realidade. Apenas um exemplo: a Zona Franca de Manaus possui um regime jurídico-constitucional de desonerações que vigorará por 85 anos, maior do que a mais longeva de nossas Constituições. Pode-se tratar desse tema como uma singela renúncia fiscal, tal como outras que são precárias? Parece-me óbvio que não. Pois ambas são igualmente tratadas no levantamento oficial realizado.

Um leque enorme de análise abre-se a partir da Constituição Financeira, tema de um livro de Heleno Torres, obra de referência acerca do assunto. Desse referencial teórico pode-se partir para mais detida análise a respeito do estrangulamento da Constituição Econômica pela Constituição Financeira, em especial pelo Anexo de Metas Fiscais da Lei de Responsabilidade Fiscal, instrumentado pelas anuais e sucessivas Leis de Diretrizes Orçamentárias. Gilberto Bercovici e Luiz Fernando Massonetto escreveram há tempos um artigo de qualidade sobre o tema, que está a merecer atualização, pois o sufocamento está se agigantando e deixando a economia produtiva com o laço no pescoço, cada vez mais apertado. Estamos mesmo vivendo em um estado de emergência econômica ou isso é apenas retórica para apertar o laço?

Um campo fértil para debate diz respeito à reserva do possível, escolhas trágicas e políticas públicas, pois permite dissecar diversas ações governamentais que implementam os direitos sociais em contraste com a escassez de dinheiro que atualmente assola nosso país. A obra de Paula Dallari Bucci é de consulta obrigatória sobre políticas públicas. Aliás, nesse campo, existem muitos outros temas a serem analisados, como a Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional, acerbamente criticada por Lenio Streck em colunas nesta ConJur, e elogiada por Antonio Maués em suas análises. O tema merece maior reflexão sob o prisma jusfinancista.

Poderia relacionar outros assuntos a serem abordados de forma acadêmica por quem pretende produzir textos jusfinanceiros, porém o espaço é curto para tanto. Sugiro ao heroico leitor que chegou até este ponto ler as notícias e passar a pensar acerca de seu impacto jurídico financeiro. Por exemplo, a recente decisão na ADI 5.450 e o Profut, a Lei Complementar 160 e a guerra fiscal, as medidas provisórias 789 e 795 sobre a atividade mineral e petrolífera, a Lei 13.365/16 e o afastamento da exigência de participação da Petrobras nas licitações dos campos de petróleo, a Lei Complementar 159, sobre a recuperação fiscal dos Estados, a Lei 13.843/17 e a nova taxa de empréstimos do BNDES (TLP), a EC 95 (teto de gastos) e os direitos fundamentais à saúde e educação, e muitas outras questões que impactam o dia a dia dos brasileiros.

Duas últimas recomendações para quem pretende escrever uma tese em Direito Financeiro: coloque sempre o ser humano em primeiro lugar, e não os números; estudamos Direito, e não Economia, Matemática ou Finanças Públicas, que são importantes, mas estão a serviço do homem, e não o contrário. E não faça meros comentários sobre a lei, ou debates doutrinários voltados para o umbigo do Direito Financeiro; fique de olho em sua hipótese, que, se bem formulada, guiará seus passos.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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