Justiça Tributária

Abusos do Fisco, corrupção, processos criminais e o livre arbítrio

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

2 de outubro de 2017, 8h05

Spacca
“Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro. É alguma coisa e é nada. Assim como era meu passa a ser de outro, após ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele não enriquece e a mim me torna totalmente pobre.” (Willian Shakespeare, em Otelo, o Mouro de Veneza, palavras de Iago a Otelo).

Quero agradecer ao colega contabilista e ao ex-colega auditor da Receita Federal que recentemente trouxeram para o espaço desta revista eletrônica opiniões totalmente divergentes sobre os problemas que atingem as respectivas atividades.

Claro que existe corrupção no país. Trata-se de crime gravíssimo. De tempos em tempos encontramos tais casos amplamente noticiados. Surgem as “máfias” do ISS, do “habite-se”, das “notas frias” e das “consultorias”, em vários casos com prisões, demissões a bem do serviço público, bloqueio de bens dos meliantes e haja espaço na mídia para tanta lama.

Nós, jornalistas, quando queremos o conceito mais preciso do que é notícia, podemos afirmar que notícia é quando o homem morde o cachorro. Afinal, isso é pouco usual.

Quando, há quase 20 anos, fui Conselheiro e honrado com os cargos de Corregedor e depois presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, verifiquei que na advocacia é assim como na vida canina: notícia é quando o advogado vira bandido.

Afinal, se o profissional cumpre suas obrigações corretamente e observa a ética, não merece ser notícia: apenas cumpre o juramento de honra que fez ao receber a carteira da OAB:

Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.

Em 2000, na gestão do nosso saudoso presidente Rubens Approbato Machado, ao receber o cargo de Corregedor do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, deparei-me com um comentário que um cidadão fez na TV Globo, dizendo-se vítima de um advogado malandro. Apurado o caso, tratava-se de um cidadão malandro, que mentia para não pagar os honorários devidos e contratados.

Como na matéria apareceu uma injusta generalização (“ora, advogados são muito espertos”) foi feita pesquisa a nível nacional sobre os processos éticos. Resultado: os profissionais punidos por faltas éticas eram 2,5% dos inscritos. Ou seja: 97,5% dos advogados honravam o juramento.

Quando qualquer profissional (advogados, contabilistas, servidores públicos) trabalham corretamente o fazem para merecer seus pagamentos e, principalmente, terem a certeza de que seus familiares não se envergonharão do parentesco. Isso não é notícia.

Meu colega contabilista e meu ex-colega auditor da Receita Federal merecem todo o meu respeito. Se o primeiro fez injusta generalização, o segundo confundiu decreto com lei. Não existe decreto com “status” de lei. O que vale em matéria de processo administrativo federal é a lei 9.784/99. A prevalência de lei sobre decreto é indiscutível.

Manifestações sobre a matéria obrigam-me a reconhecer nela algumas imprecisões. Nunca pratiquei ato de contabilista, embora inscrito no CRC. Minha carreira no serviço púbico foi curtíssima. Isso foi esclarecido na reportagem de 17 de outubro de 2014 cujo título é “Tributarista, professor e jornalista, Raul Haidar condensa 40 anos em livro”.

Em mais de 40 anos de advocacia nunca um servidor público (na área fiscal, jurídica ou policial) me apresentou proposta indecente. Dois ou três insinuaram a possibilidade, que fingi não entender, mudando de assunto.

Escrevi em 6 de fevereiro deste ano sob o título Crimes contra a ordem tributária: abusos e fantasias do Fisco ao comentar a Medida Provisória 765 que criou “Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira”, fixado conforme indicadores de desempenho e metas a serem estabelecidos através de um “planejamento estratégico” do fisco. Nessa ocasião afirmei:

Se o contribuinte chega a ser indiciado pelo crime de sonegação fiscal, hoje chamado de 'contra a ordem tributária' , muitas vezes ocorrem denúncias em que uma pessoa é processada sem ter efetivamente participado de qualquer ato ilícito, mas apenas por ser ou ter sido sócio de uma empresa.

Na semana passada, em Embu das Artes, por fim terminou processo crime contra diretores de uma indústria acusada de créditos indevidos de ICMS por aquisição de matérias primas com uso de documentos “inidôneos”. A origem:auto de infração equivocado. A defesa administrativa não foi bem sucedida e a suposta dívida foi inscrita. Iniciada a ação penal por cerca de cinco anos os acusados se defenderam.

Pouco antes da audiência de instrução e julgamento o Ministério Público pediu a absolvição sumária dos réus, por reconhecer ausência do ilícito. Tal questão fora apresentada na defesa prévia. Um deles, idoso, pelo que sofreu teve a saúde prejudicada. A empresa teve custos com as defesas. Pode acionar o Estado pelos prejuízos materiais e os corréus pelos morais.

Todavia, não se pode, de forma alguma, atribuir ao agente fiscal procedimento ilegal. Se os auditores federais possuem metas, premiáveis pela MP 765, os estaduais e municipais sofrem pressões ainda piores.

O que está ruim para os contribuintes pode piorar. Veja-se o Projeto de Lei Complementar 25/2017, de autoria do governador deste estado, encaminhado à Assembleia em 16/09/17, em regime de urgência. O desejo da Fazenda paulista é instituir um “Programa de Estímulo à Conformidade Tributária” que apelidou de “Nos conformes”.

Assim que me recuperar do susto, talvez consiga analisá-lo tecnicamente, nem que tenha que consultar um psiquiatra.

Os servidores públicos da área tributária recebem vencimentos razoáveis, possuem garantias que não existem para os da iniciativa privada, como aposentadoria integral e a segurança da estabilidade. Isso já é suficiente para obrigá-los a serem eficientes e produtivos no que fazem. A maioria dos servidores públicos assim se comporta.

Corrupção é via de duas mãos, com bandidos em ambos os lados. Mas ninguém é obrigado a propor ou aceitar a prática de crime. Já fui convidado por candidatos a clientes a tentar fazer “acordo” ilícito. Como nunca aceitei, vários clientes procuraram outros prestadores de serviços. Alguns voltaram, convencidos de que foram cúmplices e reféns. Um deles já traz uma condenação que dará ensejo a reabilitação.

Fico surpreso sem notícias de ações do Ministério Público ante a possível ocorrência de crimes de excesso de exação.

O assunto foi muito bem examinado pelo Sindifisco. Basta procurar na internet, pela expressão “excesso de exação”. A evolução tecnológica que nos viabiliza tantas facilidades funciona para o bem e para o mal. Cabe-nos escolher o nosso caminho. Para isso existe o livre arbítrio.

*Texto alterado às 15h23 do dia 3 de outubro de 2017.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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