Segunda Leitura

O sistema de Justiça de Moçambique: entre a tradição e a inovação

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de outubro de 2017, 10h44

Spacca
A República de Moçambique, situada no litoral sudoeste da África, tem 801.590 km2 e cerca de 26 milhões de habitantes. Colonizada por portugueses, que lá chegaram em 1498, Maputo é a sua capital. O idioma oficial é o português, porém se falam mais 23 dialetos em seu extenso território. Rica em gás e carvão mineral, guarda, em vários aspectos, semelhanças com o Brasil, país com o qual mantém relações próximas.

Após um longo período de guerrilha, Moçambique tornou-se independente de Portugal em 1975, adotando o regime comunista, com apenas um partido político (Frente de Libertação de Moçambique – Frelimo), e mantendo relações próximas com Cuba e a extinta União Soviética.

Naquela época, segundo informou o procurador Ribeiro Cuna, o Judiciário tinha independência apenas formal, visto que o Tribunal Popular Supremo editava instruções ou diretivas que deviam ser cumpridas por todos os juízes, e os Tribunais Populares deviam prestar contas às Assembleias do Povo[1].

Em 1990 foi promulgada nova Constituição, adotando-se o sistema multipartidário e o sistema capitalista. A Constituição de 1990 sofreu modificações em 2004[2] e logo ao início reconhece o pluralismo jurídico, ou seja, a existência de vários sistemas normativos e de resolução de conflitos.

Isso significa que, atenta a uma realidade que une diversas etnias e culturas, a Carta Magna admite a existência de formas de solução fora do sistema judicial do Estado. Procura-se, de forma inteligente, conciliar o antigo, representando pelas práticas milenares das populações tradicionais, com o novo, trazido, via Portugal, por novas práticas dos países da União Europeia, com ênfase ao Estado de Direito e à proteção dos direitos fundamentais.

A Constituição prevê a existência do Tribunal Supremo (TS), Tribunal Administrativo (TA) e Tribunais Judiciais. Na área dos Tribunais Administrativos, existem cortes especializadas, por exemplo, em questões aduaneiras e fiscais, que se reportam ao TA, e não ao TS.

Além dos Tribunais Judiciários, há um Conselho Constitucional, composto de sete juízes conselheiros, a quem compete o controle de constitucionalidade das leis e que, inclusive, atende consulta do Poder Executivo sobre a constitucionalidade de um projeto de lei antes que ele seja promulgado. Portanto, não cabe aos Tribunais Judiciais reconhecer inconstitucionalidade de leis.

A magistratura de carreira é exercida por magistrados judiciais e magistrados do Ministério Público. O ingresso é por concurso e depois faz-se um curso de um ano, findo ao qual os participantes escolhem se serão juízes ou procuradores da República. A partir daí seguirão carreiras diferentes e se subordinarão a conselhos diversos.

Os vencimentos são baixos, o que se explica pelo baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, que coloca o país na modesta 181ª colocação (o Brasil está no 79º lugar). Um juiz inicia sua carreira no Tribunal Distrital (pequenas causas) recebendo em torno de 500 dólares. No cargo mais alto da hierarquia, Tribunal Supremo, recebe cerca de 2 mil dólares.

A carreira da magistratura judicial é estabelecida pela Lei 7/2009, que é o Estatuto dos Magistrados Judiciais[3]. Todos os cargos denominam-se juízes, vindo em seguida a especificação. Assim, temos, juiz conselheiro, no TS, juiz desembargador (Tribunal Superior de Recurso, equivalente ao nosso Tribunal de Justiça), juiz de Direito A e B (Tribunal Judicial de Província, equivalente ao nosso juiz de Direito, mas que julga recursos em casos de pequeno valor) e juiz de Direito C e D (Tribunais Distritais, equivalentes ao nosso Juizado Especial de Pequenas Causas).

Muito embora reduzidos os vencimentos, o estatuto prevê as vantagens do cargo. Assim, os juízes conselheiros e os juízes desembargadores têm o título de venerando. Os conselheiros fazem jus a veículo oficial, verba de representação, passaporte diplomático extensivo ao cônjuge e filhos e passagem em classe executiva. Os juízes de Direito têm o título de meritíssimo.

Toda a carreira é regulada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial[4], previsto no artigo 128 e seguintes do estatuto. Ele é composto por 16 membros, com mandato de 5 anos, sendo presidido pelo presidente do TS. Todas as atividades judiciárias emanam do conselho, por exemplo, propor a nomeação de juízes, fiscalização, inspeções, apresentação do orçamento e promoção, sendo que esta exige três anos de permanência no cargo e avaliação com, no mínimo, a classificação "bom". Entre as penalidades disciplinares existe a de despromoção.

O sistema prevê, ainda, no artigo 216 da Constituição, juízes eleitos, que só atuam em primeira instância e sobre matéria de fato. Esses juízes tem por principal função, facilitar acordos, explicar ao juiz de Direito os costumes locais ou serem tradutores dos dialetos das partes ou testemunhas. A forma de indicação e outros dados está prevista no artigo 79 e seguintes da Lei 10/92.

Há, todavia, discussão jurídica sobre a vigência da legislação que trata dos juízes eleitos, sustentando alguns que a Lei 10/92 foi revogada pela Constituição de 2004. Por outro lado, dificuldades surgem na sua atuação, como a resistência dos juízes de Direito e até a falta de pagamento de seus vencimentos, fato que levou os que atuam no Tribunal da Província de Nampula a suspenderem suas atividades, reclamando quitação dos atrasados[5].

A Constituição também reconhece os Tribunais Comunitários, e a Lei 10/92 regulamentou-os. Basicamente, deliberam e promovem conciliação sobre pequenas controvérsias de natureza civil, seguindo os usos e costumes locais. Decidem, também, pequenos delitos em que não haja pena de prisão. Julgam por equidade e bom senso. Assemelham-se aos nossos antigos juízes de Paz, praticamente extintos com a Constituição de 1988.

O Ministério Público tem tratamento à parte e, muito embora tenha evoluído muito com o Estatuto do Ministério Público[6], não goza de todas as prerrogativas como no Brasil. Por exemplo, segundo o artigo 239 da Constituição, o procurador-geral da República não precisa ser membro da carreira. O Conselho Superior do Ministério Público é o órgão de gestão e disciplina, tendo os seus 10 integrantes o título de conselheiro e um mandato de cinco anos[7].

Registre-se, ainda que todos os cursos de formação, não só para os juízes, mas também para os agentes do Ministério Público, membros da Polícia Judiciária e funcionários judiciais, são dados pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária, órgão tradicionalmente coordenado por magistrados judiciais, mas subordinado ao Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos[8].

Em que pese seus avanços e a vigência de um estado de Direito, Moçambique ainda encontra dificuldades para levar aos tribunais os ilícitos de corrupção de maior gravidade. A título de exemplo, menciona-se que “a Odebrecht admitiu contudo ter pago luvas, avaliadas em 900 mil dólares, a funcionários do Governo de Moçambique entre 2011 e 2014. O objetivo era obter o contrato de construção de um aeroporto em Nacala, no norte, a única obra da empresa brasileira no país. Inicialmente orçado em 90 milhões de dólares, o projeto acabou por custar 216,5 milhões”[9].

Ao contrário do que ocorre no Brasil, tais casos não têm gerado a prisão dos envolvidos e nem sequer julgamento de mérito. Entre as razões para tal fato cita-se a inexistência em Moçambique de lei permitindo a delação premiada.

Eis, em síntese, as bases do sistema de Justiça de Moçambique. Conhecê-lo, com suas boas iniciativas e também dificuldades, é importante para o profissional do Direito em um mundo globalizado. Além disso, o Brasil é presença constante em Moçambique, onde, entre outras coisas, realiza a exploração do carvão mineral em larga escala.


Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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