Senso Incomum

Será que juiz de vídeo salva a interpretação do Direito?

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30 de novembro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Jogo decisivo. Final de campeonato. Jogo tenso, nos acréscimos. Lance de falta na área do time visitante. Mas está tudo bem, afinal, o recurso do árbitro de vídeo (AV) serve para solucionar lances desse tipo, certo? Bem… errado. Não é tão simples assim. Porque quando o juiz não quer, o recurso não serve pra nada.

Qualquer semelhança entre o parágrafo anterior e a realidade, todo mundo sabe, não é mera coincidência. Afinal, todo mundo sabe, nunca é mera coincidência. Mas enfim, o ponto não é esse. Por mais apropriado que o momento seja para que falemos sobre futebol, meu espaço aqui na ConJur é um daqueles espaços chatos, incômodos, que insistem em falar sobre… Direito. E é sobre isso que venho falar aqui hoje mais uma vez. Porque, como jurista, não tenho o direito de desistir do Direito.

Acontece que, como ex-goleiro que sou (e, modéstia às favas, eu era dos bons), não é de agora que venho propondo algumas metáforas futebolísticas para falar sobre o Direito. Nada como unir duas paixões. Especialmente quando a proposta serve pra alguma coisa — e otimista metodológico que sou, gosto de pensar que insistir no Direito ainda serve pra alguma coisa —, um pouco de bom humor não faz mal a ninguém. Portanto, relaxemos.

Veja: de que adianta ter árbitro de vídeo (novidade da Fifa), quarto árbitro, árbitro atrás da goleira, replay, slow motion, se o juiz pode escolher qualquer coisa? Dito de outro modo: de que adianta termos uma série de garantias e formas adequadas de procedimento, previstas em lei, se o juiz tiver livre convencimento ou “livre apreciação do lance”? De que adianta o ato de conhecimento ter cada vez mais recursos disponíveis se, ao fim e ao cabo, o ato de vontade (decisionista) tem mais força? De que adianta termos cada vez mais critérios através dos quais se decide se o juiz (aqui é lato sensu, servindo de árbitro a ministro) insiste em ignorá-los para fazer escolhas? Um bom exemplo é a retirada da palavra “livre” no artigo 371 do CPC e a desobediência do judiciário aos artigos 916 e 489, parágrafo primeiro do mesmo CPC.

Essa é a questão. Já que estamos em uma coluna bem-humorada à la Bill Shankly (lendário treinador escocês, multicampeão pelo Liverpool, que dizia que “futebol não é uma questão de vida ou morte… é muito mais do que isso), repleta de metáforas, imaginem o seguinte (quem me instigou a escrever sobre isso foi meu ex-aluno Henrique Abel): imaginemos que o mais novo estatuto da arbitragem internacional dispõe que “é obrigatório o uso do árbitro de vídeo”. Um tempo depois, o FPAF — Fórum Permanente dos Árbitros de Futebol organiza um workshop e divulga alguns enunciados, dentre os quais destaca-se o Enunciado 171: “É obrigatório o uso do árbitro de vídeo… mas, se não quiser, não precisa usar; e se usar, o árbitro tem livre convencimento”.

Na minha metáfora, parece óbvio que os árbitros passam a não usar o árbitro de vídeo e, perguntados, fazem alusão ao Enunciado 171. E, diante dessa realidade, o professor Joseph Ring, coordenador do curso Empirical research on soccer – behavioral patterns, do Campus II da Universidade de Shimer, organiza uma pesquisa visando a prever a forma como os juízes apitariam os jogos. O resultado aponta para 28% dos árbitros nunca usando o recurso de vídeo, 21% usando a favor do time que já esteja à frente do placar, e 51% usando só de vez em quando, quando der vontade. Lamentavelmente, a pesquisa empírica não serviu pra muita coisa. Parece que estão refazendo, agora usando baseball ou basquete… ou bola de gude. Ou xadrez (d'onde o cuidado que se deve ter para não jogar esse jogo com pombos — sabe-se o que o pombo faz). Ficcionalizando a realidade ou tornando realidade um mundo de ficções? Quem sabe. Só no final do jogo é que poderei responder.

Qualquer semelhança… Bom, deixa pra lá. Pergunto: na ficção acima, o que faria mais sentido? 1) Simplesmente prever a forma como os juízes decidem? 2) Fazer um novo enunciado-certo pra corrigir o enunciado-errado e torcer pra que não sobreviesse nenhum metaenunciado que fizesse tudo retornar à estaca zero? 3) Fazer um novo workshop para explicar o que se queria dizer com o enunciado 171? 4) Exigir o cumprimento da lei?

Peço desculpas pelo meu conservadorismo futebolístico, mas fico com a quarta opção. Cumprir a lei. E aqui a ambiguidade na fala, por óbvio, não é mera coincidência. Assim como o texto da coluna. Os adeptos do futebol e os praticantes do Direito temos um longo e árduo caminho a percorrer. Mas a partida só termina com o apito final. E até os minutos a serem concedidos tem de ser controlados. Como? Com juiz de vídeo? Com um super-relógio? Não sei. Só sei que, na minha metáfora, o jogo de futebol não pode depender do árbitro. Árbitro não marca penalty no meio do campo. Não valida gol de mão. Não marca gol. Não evita gol. Nem critica os jogadores. Apenas apita. Aliás, até um positivista como Hart dizia, falando das regras do críquete (que eu adaptei para o futebol ainda nos anos 80 na aula de mestrado), que se as regras do árbitro se sobrepuserem às regras do jogo, já não há mais jogo; há, então, um outro jogo.

Bueno. Como diz Fiori Giuglioti, crepúsculo de jogo aqui no Estádio Senso Incomum.

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