Dados de celular

Suprema Corte dos EUA começa a julgar confronto entre segurança e privacidade

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28 de novembro de 2017, 7h50

Foi fácil para a polícia de Detroit colher provas para indiciar um suspeito de uma série de assaltos à mão armada a lojas de telefones celulares. O celular do suspeito, Timothy Carpenter, o entregou. Uma busca nos arquivos de sua provedora de telefonia celular mostrou que ele estava na área de cada crime, no dia e na hora em que cada crime aconteceu.

Em 2013, depois que a polícia apresentou a um tribunal dados de locais e horários em que o celular de Carpenter esteve em um período de 127 dias, o réu, então já definido pela acusação como chefe de uma quadrilha, foi condenado a quase 116 anos de prisão.

No entanto, a eficiência da polícia de Detroit perdeu o brilho, por causa de uma interpretação duvidosa da legislação – é o que está em discussão na Justiça. A polícia não obteve mandado judicial para fazer a busca dos dados do celular do réu, por considerar tal medida juridicamente desnecessária.

Isso é o que irá se ver. Na quarta-feira (29/11), a Suprema Corte dos EUA fará a primeira audiência do caso Carpenter versus United States, para os ministros ouvirem (e discutirem) os argumentos das partes.

O que está em jogo
Uma parte irá defender a eficiência da segurança pública, que pode se respaldar em uma lei federal e em jurisprudência (antiga) da Suprema Corte. A outra vai defender o direito à privacidade do cidadão, garantida pela Quarta Emenda da Constituição do país – obviamente, sujeita a interpretações.

O advogado de Carpenter, com apoio da American Civil Liberties Union (ACLU), pede a anulação do julgamento, porque a ação da polícia teria violado um princípio constitucional. Se esse for o caso, haverá um novo julgamento, em que as provas fundamentais do primeiro (os dados da provedora de telefonia) serão suprimidas.

À primeira vista, a Constituição ajuda o réu. Ela garante: “O direito das pessoas de estarem seguras em suas pessoas, casas, papéis e efeitos, contra buscas e apreensões não razoáveis, não deve ser violado e nenhum mandado judicial deve ser emitido, a não ser diante de causa provável, sustentada por juramento ou afirmação e particularmente descrevendo o lugar onde a busca será efetuada e as pessoas ou coisas sujeitas à busca”.

Por sua vez, uma lei federal, que se refere a comunicações por fio (telefone, telégrafo, etc.) e eletrônicas, abre uma brecha para a polícia interpretar que não precisa de mandado judicial em certas circunstâncias. Basta determinar, com base em fundamentos razoáveis, que o conteúdo das comunicações (registro e outras informações) são relevantes e substanciais para uma investigação criminal em andamento.

A lei se refere a buscas e apreensões em geral. A jurisprudência anterior é mais específica para o caso que será julgado pela Suprema Corte, porque se refere mais claramente ao mundo da telefonia celular. Nos anos 70, a Suprema Corte construiu a “doutrina dos terceiros” (third-party doctrine).

Segundo essa doutrina, o governo não é obrigado a obter mandado judicial para solicitar a terceiros, tal como uma companhia telefônica, dados e informações relevantes para uma investigação. Uma vez que uma pessoa transfere dados ou informações voluntariamente a terceiros, ela perde a expectativa de privacidade.

Se esse entendimento prevalecer no atual julgamento do uso do celular para rastrear suspeitos, o dispositivo constitucional será totalmente irrelevante no que se refere a buscas de dados produzidos por smartphones, hoje em dia. Afinal, para um telefone celular funcionar, é preciso que os dados transitem entre o aparelho e as operadoras de comunicações móveis – e suas torres que, efetivamente, denunciam a localização do usuário.

Isso significa que 95% da população dos EUA (porque 95% da população tem telefone celular) pode ser investigada pelos órgãos de segurança sem mandado judicial, segundo o jornal Washington Examiner.

O “problema” do mandado
Então, por que a polícia simplesmente não obtém um mandado judicial para cada caso que vai investigar? A resposta é que, em muitos casos, a polícia precisa de agilidade para atuar com eficiência e a burocracia (da obtenção de um mandado) só atrapalha.

Imagine-se uma situação em que um policial pare um carro por uma infração de trânsito. Na operação, o policial se convence (ou é convencido por seu cão) de que os ocupantes do carro transportam drogas – ou armas, contrabando ou um corpo no porta-malas. O policial não pode pedir ao motorista para não se mexer enquanto ela vai obter um mandado judicial para revistar o carro.

Além disso, o pedido de mandado judicial para realizar uma investigação requer que o policial demonstre “causa provável”. Isso não é um procedimento simples. Mas, para pelo menos agilizar a obtenção de mandado, alguns tribunais estão tentando implementar um método que permita ao policial fazer isso através de seu telefone celular.

Esse último aspecto não tem relação direta com o caso perante a Suprema Corte. Mas mostra como pode ser complicado aplicar o texto da lei de uma forma estrita, sem levar em conta circunstâncias.

Provavelmente, a Suprema Corte não vai entrar nesse detalhe. Uma das queixas da comunidade jurídica nos EUA é a de que as interpretações da Suprema Corte precisam, com frequência, ser interpretadas. Isso porque a corte não se dá ao trabalho de discutir os casos sob todos os seus aspectos, para elucidar dúvidas de uma vez por todas. A corte decide o que lhe foi perguntado, no máximo.

Há muitas perguntas que a Suprema Corte poderia responder, mas não se sabe se o fará. A mais simples é: o que fazer com leis ou doutrinas antigas, da época do telégrafo, do telefone de disco?

Hoje, os órgãos de segurança têm acesso a um volume e a uma especificidade de informações pessoais dos cidadãos que nem sonhavam que poderiam ter há algumas décadas. A resposta seria mudar a lei, para atualizá-la. Seria uma tarefa para o Legislativo, que não é muito afeito a legislar.

E há respostas mais difíceis. Por exemplo, quais regras deveriam orientar o relacionamento entre agentes de segurança e os cidadãos civis? Que volume de dados é razoável pedir às provedoras de telefonia? Como esses dados devem ser guardados? Pode-se compartilhar esses dados com outros órgãos de segurança? O cidadão tem o direito de saber que dados sobre ele são detidos pelo governo? Os dados devem ser apagados quando a investigação e a produção de provas se encerrar?

Todas essas respostas também deveriam ser dadas pelo Congresso. Não há muitas esperanças de que isso aconteça, disse ao jornal The New York Times o professor de Direito da Universidade de Nova York, Barry Friedman, a não ser que… “A Suprema Corte poderia tomar uma decisão totalmente contra os órgãos de segurança. Eles teriam força (e lobby) para fazer o Congresso agir”.

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