Opinião

STJ errou ao considerar streaming "execução pública"

Autor

  • Marcelo Frullani Lopes

    é advogado do escritório Frullani Lopes Advogados especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

28 de novembro de 2017, 5h11

A questão da cobrança de direitos autorais sobre plataformas de streaming foi objeto de intenso debate no Superior Tribunal de Justiça [1]. Essa tecnologia consiste na transmissão contínua de dados por meio da internet, possibilitando ao usuário acessar conteúdo sem que precise realizar o download dos arquivos. No campo musical, o gênero do streaming se divide em duas espécies: simulcasting (transmissão simultânea da programação de uma emissora de rádio na internet) e webcasting (transmissão de conteúdo exclusivamente por meio da internet, possibilitando ou não ao usuário a escolha da música a ser executada; é o caso do Spotify, Apple Music, rádios transmitidas exclusivamente pela internet etc).

O caso em questão envolve uma emissora de rádio que se valia das duas modalidades de streaming. Isto é, oferecia tanto uma plataforma que meramente retransmitia o conteúdo da rádio, quanto disponibilizava conteúdos exclusivos na internet. A ação foi iniciada pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) em face dessa emissora, com pedido de condenação desta ao pagamento de direitos autorais. O caso envolve uma série de discussões, mas aqui vamos tratar de uma delas: se a disponibilização de músicas via streaming, em qualquer das espécies, caracteriza “execução pública”. A Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) estabelece a definição dessa expressão no artigo 68, § 2° e 3°:

Art. 68. Sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas.
(…)
§ 2º Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica.

§ 3º Consideram-se locais de freqüência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas.

Segundo esse dispositivo, o uso de uma obra intelectual caracteriza execução pública caso ocorra em “local de frequência coletiva” e se dê “por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”. A definição é complementada pelo § 3°, que define o que deve ser considerado local de frequência coletiva. A execução pública é, assim, um tipo de utilização de obra que merece tratamento especial da lei. O parágrafo 4° do artigo 68[2] estabelece que cabe ao empresário realizar pagamento ao Ecad antes do uso da obra. O debate, portanto, é se as plataformas de streaming devem ou não ser consideradas “locais de frequência coletiva”. Se forem, cabe ao Ecad realizar a gestão coletiva dos direitos autorais sobre as músicas transmitidas; caso contrário, as empresas devem buscar autorização diretamente dos titulares dos direitos patrimoniais sobre as obras, ou de seus representantes.

Deve-se ressaltar que não se trata de uma discussão envolvendo a necessidade ou não de pagamento pelo uso de obras protegidas por direito autoral. A mera disponibilização da obra em uma plataforma dá ensejo, por si só, à remuneração. O que se discute, na verdade, é se essa simples colocação da obra à disposição do público pode ser interpretada como “execução pública”, visto que essa classificação produz impacto decisivo em relação a quem pode cobrar os valores: o titular do direito patrimonial ou seu representante (caso se considere que não há execução pública) ou o Ecad (caso seja considerada execução pública).

A Lei de Direitos Autorais entrou em vigor em 1998, momento em que o consumo de músicas na internet ainda era muito incipiente. Ao incluir a expressão “local de frequência coletiva”, faz-se referência a espaços da “realidade física”, como teatros, cinemas, festas, entre outros. O streaming claramente não foi levado em consideração. Mas, a partir do momento em que essa tecnologia é criada e se desenvolve, surgem litígios que precisam receber resposta do Judiciário. Assim, deve-se analisar se há, no ciberespaço, “locais” que podem ser considerados de frequência coletiva. Como a lei estabeleceu um conceito voltado à realidade física, foram utilizadas de metáforas[3] para interpretação do novo fenômeno[4].

O voto do relator Ricardo Bôas Cueva destaca que, mesmo quando se discute se um espaço físico deve ou não ser interpretado como local de frequência coletiva, não é relevante a quantidade de pessoas que se encontram reunidas no ambiente, e sim o simples fato de se colocar a obra ao alcance da coletividade. De acordo com sua linha de raciocínio, seria possível haver um local de frequência coletiva no ciberespaço também, assim como ocorre no espaço físico. Seria esse o caso das plataformas de streaming, em qualquer de suas modalidades, pois possibilitam que um número indeterminado de pessoas tenha acesso às obras transmitidas. O fato de que algumas dessas plataformas permitam elevada interatividade, de modo que o usuário escolha as músicas que queira ouvir, não retira a caracterização de “execução pública”, pois o que importa é a mera disponibilização das obras para o público[5]. O relator se valeu de metáforas para enquadrar o fenômeno do streaming ao conceito de execução pública; como premissa, entendeu que os usuários dos aplicativos adentram um local de frequência coletiva ao acessarem-nos, assim como ocorre em bares, restaurantes e hotéis, por exemplo.

Segundo o ministro Marco Aurélio Bellizze, autor de voto divergente, o relator acertou ao considerar que a disponibilização de uma obra por streaming afasta o conceito de “distribuição”[6], uma vez que este se concretiza quando há transferência da propriedade ou posse do suporte (CD, DVD) em que a obra se encontra materializada. De fato, não há qualquer transferência de propriedade ou posse das obras. Porém, Bellizze defende que o autor do voto majoritário errou ao desconsiderar a possibilidade de que o uso da obra por meio do streaming configure “reprodução”[7], outro conceito previsto na Lei de Direitos Autorais, em vez de execução pública.

Ao tratar do exercício do direito de reprodução, o artigo 30 da Lei menciona a colocação à disposição do público de obra, “na forma, local e pelo tempo que desejar, a título oneroso ou gratuito”. Ou seja, a mera colocação da obra à disponibilização do público não configura execução (consequentemente, também não configura execução pública), mas sim um exercício do direito de reprodução. Além disso, execução pública ocorre, como já se disse, em “locais de frequência coletiva”. Como ressalta Bellizze, apesar de a lei estabelecer um rol meramente exemplificativo, todos os lugares mencionados se destacam pelo acesso transitório e rotativo de pessoas. Pode-se dizer que, no ambiente virtual, também há “locais” com essa característica[8]?

Segundo Bellizze, no caso do simulcasting é possível defender que há execução pública nos termos da lei. Mesmo que o usuário precise acessar a página da emissora de rádio para apertar o play, a programação é uma só para qualquer um que faça o mesmo. Já no caso da plataforma de webcasting que possibilita que o usuário escolha as músicas que queira ouvir, não se pode considerar que há execução pública. Bellizze faz uma analogia com o espaço físico: a mera disponibilização de fones em lojas de CDs e DVDs em lojas nunca foi considerada “execução pública”. Da mesma forma, se o usuário não escolhe propriamente as músicas individualmente, mas executa uma playlist criada especialmente para ele, também não haveria execução pública[9].

O STJ, ao seguir majoritariamente o voto do relator, confundiu o “direito de colocar à disposição do público”, que é um exercício do direito de reprodução, com “execução pública”. Assim, a mera disponibilização de uma obra em uma plataforma, de modo que cada usuário escolha se a reproduzirá ou não, o momento e a duração da reprodução, foi considerada pela maioria como execução pública.

O voto divergente do ministro Bellizze acertou em suas críticas a essa interpretação. A mera disponibilização de uma obra em plataforma de streaming não é suficiente para caracterizar execução pública. Devem ser analisadas as características de cada plataforma, e não incluir todas elas, indistintamente, em uma mesma definição. A mera disponibilização de obras em uma plataforma que permita grande interação com o usuário, podendo este escolher as músicas a serem executadas e os momentos de execução, não pode ser equiparada, à luz da Lei 9.610/98, a uma transmissão radiofônica em que o ouvinte não tem qualquer poder de escolha, ou à transmissão em bares e restaurantes. Já as plataformas de simulcasting, ou rádios online da modalidade webcasting, em que não haja grande interação com o público, são mais facilmente enquadradas como execução pública. Há diversos casos intermediários, porém, que ficam numa penumbra, e que devem ser analisados caso a caso (por exemplo, o oferecimento de listas personalizadas de músicas aos usuários; ou se o poder de escolha do usuário for quanto ao “estilo musical” a ser ouvido).

Portanto, o STJ errou ao tratar todas as plataformas de streaming de uma mesma forma. O voto divergente do ministro Bellizze aponta corretamente os equívocos dessa interpretação. Acima de tudo, porém, esse caso serve de exemplo para verificarmos como a transferência de conceitos criados tendo em vista apenas “espaços físicos” para o contexto da internet pode se mostrar problemática caso não sejam levadas em conta as peculiaridades de cada situação. No caso aqui discutido, o relator errou defender metaforicamente que a mera disponibilização de músicas por streaming caracteriza execução pública, e que essas plataformas são sempre locais de frequência coletiva. E o STJ errou, consequentemente, ao seguir majoritariamente esse entendimento.


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 1.559.264-RJ. Recorrente: Escritório Central de Arrecadação e Distribuição ECAD. Recorrida: Oi Móvel S.A. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, 08 de fevereiro de 2017. O acórdão foi objeto do Recurso Extraordinário n° 1.056.363-RJ apresentado pela emissora de rádio; o Ministro Relator Alexandre de Moraes negou seguimento ao recurso, pois não haveria em tese ofensa à Constituição Federal. Essa decisão foi objeto de agravo regimental por parte da emissora, cujo julgamento ainda está pendente.

[2] § 4° Previamente à realização da execução pública, o empresário deverá apresentar ao escritório central, previsto no art. 99, a comprovação dos recolhimentos relativos aos direitos autorais.

[3] Acolho a visão de Lakoff e Johnson (LACKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. The University of Chicago Press, 2003), que defendem que metáforas não são meras figuras de linguagem, mas sim figuras de pensamento. Ao tratarmos de uma seara desconhecida, buscamos conceitos que carregamos previamente. No direito, isso se dá, por exemplo, através da busca da “essência” ou “natureza jurídica” de um fenômeno.

[4] Cf. MARANHÃO, J. S. de A. Reconfiguração Conceitual? O Direito Digital como metáfora de si mesmo. In: FORTES, Pedro; CAMPOS, Ricardo; BARBOSA, Samuel (org.). Teorias Contemporâneas do Direito. Juruá: Curitiba, 2016. pp. 97-128.

 

[5] O Relator afirma o seguinte em seu voto: “Da mesma forma, não é possível extrair do texto legal que os critérios da interatividade – situação na qual o usuário seleciona as obras autorais que deseja acessar em local e momento que melhor lhe aprouver -, da simultaneidade na recepção do conteúdo e da pluralidade de pessoas são parâmetros para definir uma execução como pública”.

[6] Art. 5° Para os efeitos desta Lei, considera-se:

(…)

IV – distribuição – a colocação à disposição do pública do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretação ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse.

[7] Art. 5°, inc. VI: reprodução – a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido.

[8] Como ressalta Juliano Maranhão (2016, p. 117), a própria ideia de a internet é um “espaço virtual” (ou ciberespaço) é metafórica. Segundo o autor, “aqui, a perspectiva é interna: o usuário não está fora e se comunica por meio do computador, mas vive experiência virtual dentro de um novo espaço”. Essa metáfora, voltada à defesa de uma regulação excepcional da internet, opõe-se à da “autoestrada da informação”, utilizada por aqueles que viam a internet como uma “estrada” apta a ser regulada pelo Estado sem qualquer excepcionalidade.

[9] O Ministro Bellizze afirma o seguinte em seu voto: “Começo alertando para o fato de que o meio virtual não é um meio homogêneo, de sorte que me parece prematura a extração de uma tese jurídica genérica. Nessa esteira, ressalto que não é a mera existência de determinado dado, no mundo virtual, que lhe assegura sua publicidade”.

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