Contas à Vista

Tributo dói no bolso, porém a dívida pública pode sufocar futuras gerações

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

28 de novembro de 2017, 7h02

Spacca

Muitos já escreveram que uma carga tributária alta e mal distribuída inibe investimentos e dificulta a atividade econômica; o que pouco se fala, porém, é que a dívida pública tem um poder muito mais letal do que os altos tributos, em especial porque é intergeracional. Bem ou mal, os tributos são visíveis, exibidos nas notas fiscais; a dívida pública é invisível e insidiosa.

Participei dias atrás da 3ª Jornada da Dívida Pública, evento organizado pela competente procuradora da República Samantha Dobrowolski, dividindo um painel com Élida Graziane Pinto, José Roberto Afonso e Lucieni Pereira da Silva.

Nossa mesa encerrou o evento, que no dia anterior contou com a participação de diversas autoridades, como Otávio Ladeira de Medeiros, atual secretário-adjunto do Tesouro Nacional; Leonardo Albernaz, do Tribunal de Contas da União; José Franco Moraes, atual subsecretário da Dívida Pública do Tesouro Nacional; Heleno Taveira Torres, professor titular de Direito Financeiro da USP; Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente, criada pelo Senado Federal; dentre outros experts, como Antonio D’Ávila, consultor da Câmara dos Deputados, e Orlando Cavalcante Neto e Rita Fonseca dos Santos, ambos consultores do Senado Federal. Um evento desse porte, organizado pela Procuradoria-Geral da República, demonstra a importância do tema, crucial para o desenvolvimento do país.

Nosso painel teve como tema central a questão da “Judicialização e seus impactos na dívida pública”. Como o tempo é sempre limitado, e cumprir o estipulado é uma medida de respeito aos ouvintes e aos demais colegas de mesa, cingi-me a destacar alguns pontos, que aproveito para melhor explicitar nestas linhas.

Nem toda dívida é perniciosa. O bom uso do crédito público permite que o país alavanque investimentos e dê um salto qualitativo nos níveis civilizatórios de sua população. É claro que o crédito obtido hoje deverá ser pago amanhã, com juros e demais acréscimos, o que comprometerá a arrecadação tributária futura, pois será no porvir que será pago o empréstimo hoje recebido.

Logo, é necessário averiguar as condições pelas quais esses empréstimos são contratados: prazo de duração, prazo de carência, juros, condicionantes, multas etc., bem como identificar no que esse dinheiro está sendo utilizado, pois, se não for em prol de benefícios civilizatórios para a população, acarretará apenas mais dívida. O mau uso do crédito público hoje acarretará o comprometimento dos tributos que nossos filhos e netos pagarão amanhã. Daí porque afirmo que o tributo dói no bolso, mas a dívida pública pode sufocar as futuras gerações.

Uma cautela que deve ser tomada decorre do sistema de vasos comunicantes orçamentários, uma vez que a movimentação de um item traz necessariamente impacto nos demais. Por exemplo, para aumentar o gasto com remuneração de servidores públicos, será necessário aumentar a arrecadação ou privilegiar este gasto em face de outros, que serão menos aquinhoados na distribuição dos recursos. Isso decorre do fato de que as questões orçamentárias são relacionais, pois alterar um item implica em modificar outro, tal como um sistema de vasos comunicantes. Portanto, é insuficiente estudar a dívida pública isoladamente ou de modo apenas formal, pois é necessário saber as causas que geraram essa dívida, bem como sua dinâmica.

Em razão disso, e do fato de que o sistema financeiro como um todo é extremamente sensível, é que me preocupei sobremaneira com o tema do painel, cujo foco era a questão dos impactos da judicialização da dívida pública. Gosto da ideia de que o sistema de controle financeiro e orçamentário (que não se esgota na díade Poder Legislativo e Tribunais de Contas) é correlato à lógica foucaultiana, de vigiar e punir. O sistema deve visar muito mais vigiar, no sentido de controle, do que punir, no sentido de apenar. Quanto mais elaborado e eficaz for o sistema de controle, para vigiar, menor uso deverá ter o sistema de punição.

Logo, falando perante uma seleta plateia composta de inúmeros procuradores da República, foi necessário reforçar este ponto, buscando demonstrar a necessária cautela com a judicialização e a necessidade de controle, no sentido de vigilância. Por isso, o uso de inquéritos civis é muito mais adequado do que o imediato recurso à judicialização, embora essa não deva ser descartada, para ser adotada a seu tempo e modo, com prudência. Judicializar a economia pode gerar efeitos muito mais perversos do que a judicialização da política.

Ocorre que em muitos âmbitos o sistema financeiro, correlato à dívida pública, tem sido muito opaco à sociedade, com incontáveis filtros que obscurecem os procedimentos. É necessário que se torne mais transparente (efeito vitrine) e tenha maior publicidade (efeito autofalante), e a Procuradoria da República pode ser um importante vetor para esse intento.

Louis Brandeis, em 1913, quando ainda advogado, isto é, antes de se tornar juiz da Suprema Corte norte-americana, afirmou com muita pertinência que a

Publicidade é justamente elogiada como um remédio para doenças sociais e industriais. A luz solar é considerada como o melhor dos desinfetantes; a luz elétrica como o policial mais eficiente. E a publicidade já desempenhou um papel importante na luta contra o poder do dinheiro[1].

Por exemplo, qual o nível de publicidade e transparência do Banco Central no que se refere aos acordos de leniência, regulados, no âmbito financeiro, pela Lei 13.506/17 e regulamentado pela Circular 3.857/17? Consta que haverá um processo de sigilo nas informações obtidas, exceto para o Ministério Público Federal; mas, e a sociedade?

Qual razão justifica tal triagem, além do que for estrita e rigorosamente delimitado pelo sigilo fiscal? Será realmente necessário excepcionar para o sistema financeiro as regras gerais dos acordos de leniência? Qual a razão desse tratamento diverso – excetuado o sigilo fiscal? Esse procedimento não parece ser isonômico e deve ser melhor analisado.

Outro aspecto diz respeito à remuneração das contas públicas, que, ao que tudo indica, vem sendo usada para pagamento de gastos correntes, o que viola a denominada regra de ouro inserta no art. 167, III, CF, que veda a utilização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital. Não estou seguro de que essas operações tenham infringido tal regra, mas a dúvida está presente. De forma mais ampla, pode-se perguntar se, em face do déficit atual e crescente, ainda se pode falar de respeito a tal regra de ouro? Um país que estabelece como meta fiscal um déficit de R$ 170 bilhões está respeitando a regra de ouro? Trata-se de algo pouco crível.

Outras dúvidas: Qual controle efetivo vem sendo realizado sobre: 1) as operações compromissadas; 2) os swaps cambiais; 3) as relações entre o Tesouro Nacional e o Banco Central; 4) como tem sido realizada a escolha dos operadores do sistema da dívida pública; 5) qual controle vem sendo realizado acerca da disseminada securitização de créditos dos entes subnacionais? Penso que quase nada ou muito pouco tem sido efetivamente controlado acerca dessa matéria. Tratei desses temas en passant, tendo sido esse o foco da exposição de Élida Graziane Pinto, com riqueza de detalhes.

É claro que nem tudo pode ser encaminhado através de procedimentos prévios não-judiciais, como os acima referidos. Existem alguns problemas que requerem imediata providência judicial. O melhor exemplo é a omissão na fixação dos limites globais da dívida consolidada da União (art. 52, VI, VII, VIII e IX CF).

A Lei de Responsabilidade Fiscal, de maio de 2000, em seu art. 30, I, determinou que o presidente da República submeteria ao Senado proposta nesse sentido, em 90 dias – não é necessário contar nos dedos para verificar que já se passaram 17 anos e o Senado não legislou.

O mesmo art. 30, no inciso II, também determinava 90 dias para que o Congresso estabelecesse o montante da dívida mobiliária da União (parte final do art. 48, XIV, CF), e não o fez. Em ambos os casos, a mora está instalada e o STF deve ser instado a determinar que o Poder Legislativo legisle, através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO). A PGR tem legitimidade para isso.

Foi muito oportuna a intervenção feita por José Roberto Afonso lembrando que recentemente, através da ADO 25, o STF reconheceu a mora do Congresso em legislar acerca do Fundo da Lei Kandir, estabelecendo uma espécie de competência supletiva ao TCU para determinar os valores desses repasses, inserindo-os na Lei Orçamentária Anual. Tal ideia não recebeu apoio de Lucieni Pereira da Silva, que prontamente refutou a adoção desse mecanismo para estabelecer os limites do endividamento federal.

Enfim, o debate foi riquíssimo, apontando diversos âmbitos a serem analisados. José Roberto Afonso pontuou que a União segue emitindo títulos públicos, isto é, fazendo dívida, sem passar pelo orçamento, fruto de uma errônea interpretação da vetusta Lei 4.320/64, procedimento que, à toda prova, está incorreto.

Lucieni Silva ainda destacou diversos riscos fiscais que existem no horizonte, seja no âmbito legislativo, por meio de leis que criam ou majoram gastos sem amparo na receita existente – o que ocorre em todos os níveis da federação, sendo muito mais destacado em estados e municípios; seja no âmbito judicial, com decisões que apresentam forte impacto orçamentário, sem que haja nenhum estudo sobre sua repercussão.

Recordei a imprecisa estimativa de dispêndio de R$ 250 bilhões apresentada pela Fazenda Nacional no caso da retirada do ICMS na base de cálculo do Pis e da Cofins, o que já analisei em outra coluna, fazendo ver que as decisões judiciais devem ser cumpridas, sem argumentos consequencialistas tão-somente econômicos.

Concluí minha exposição apontando o dilema da PGR, entre judicializar ou não essas questões, pois, de um lado, existe o risco da instabilidade dos mercados, porém, de outro lado, como acima mencionei, estou convicto que a luz do sol é o melhor dos desinfetantes, o que acaba por tornar todo o processo mais transparente e público, fortalecendo as instituições.

É claro que isso deve ser feito com muita prudência, com luz, mas sem holofotes, estabelecendo metas factíveis a serem cumpridas, e com medidas antecipatórias da judicialização, quando couber.

O sistema de endividamento público passa além das questões tributárias, que podem ser reguladas ano a ano, através de escolhas jurídico-políticas de novas alíquotas, bases de cálculo ou incidências; porém o endividamento é intergeracional, e, se mal regulado, tem o poder de sufocar todas as futuras gerações, como já expus anteriormente (ver aqui https://www.conjur.com.br/2016-jun-14/contas-vista-estado-fiscal-estado-endividado-sociedade-desejante e aqui https://www.conjur.com.br/2016-nov-29/contas-vista-vale-constituicao-ou-anexo-metas-fiscais-lrf). Toda atenção a esse tema ainda será pouca.


[1] Brandeis, Louis D. What Publicity Can Do. Harper’s Weekly, 20 de dezembro de 1913, p. 10. No original: “Publicity is justly commended as a remedy for social and industrial diseases. Sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman. And publicity has already played an important part in the struggle against the Money Trust.”

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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