Direito Civil Atual

Publicidade e Direito: espaços de normatividade e autodeterminação

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

27 de novembro de 2017, 15h27

Spacca
O Direito Civil contemporâneo encontra-se diante de crescentes solicitações ambientes para resolver problemas que, por muitos anos, ao menos no século XX, se publicizaram e voltaram ao leito do universo privado. Em outros aspectos, acentuam-se as clivagens entre o Direito Público e o Direito Privado. Finalmente, há campos nos quais se pode desenvolver fecundas inter-relações entre a privatística e a Constituição, o que exige do jurista atual uma preocupação cada vez maior com a metodologia, a fim de não ser tragado por fenômenos igualmente antigos e novos como o subjetivismo, o solipsismo e o arbítrio do decisionismo (tanto administrativo quanto judicial).

Esses movimentos podem ser assim organizados: a) aumento dos espaços privados (e de sua normatização); b) incidência recíproca de normas constitucionais e privadas no âmbito da autodeterminação e da autonomia privada. Sendo certo que as liberdades comunicativas se apresentam como um símbolo da ação coordenada desses movimentos. Suas diferentes ambiências (liberdade de expressão, liberdade artística, liberdade de radiodifusão, liberdade de imprensa e liberdade de pesquisa e investigação) foram constitucionalizadas de modo extremamente analítico em 1988, embora o núcleo essencial dessas liberdades já se ache constitucionalizado desde 1824 no Brasil e na quase totalidade das constituições liberais do século XIX. A mudança de plataformas comunicativas, em geral ligadas à evolução tecnológica, ampliou suas segmentações e, de algum modo, permitiu que se reavivassem apreciações sobre o exercício dos direitos fundamentais e dos direitos subjetivos a elas vinculados. A internet, por exemplo, faz reviver questões jurídicas muito próprias dos séculos XVIII e XIX quanto ao anonimato, à multiplicidade de meios de difusão informacional e à debilidade dos mecanismos de controle ético das edições.

O século XX trouxe consigo a evolução e a categorização de conceitos como propaganda, marketing e publicidade, particularmente quanto a este último, pode-se também acentuar idêntico fenômeno quanto a seus agentes: anunciante, agência de publicidade e veículos. O motor dos meios de comunicação social por imprensa e por radiodifusão sonora (rádio) ou de sons e imagens (televisão) recai na publicidade e na propaganda. Os últimos, na modalidade privada, ao menos no Brasil, não funcionavam (nem funcionam) por meio de subvenções públicas ou privadas compulsórias (como se dá com o serviço de radiodifusão estatal britânico). Os anunciantes, em última instância, eram (e são) os financiadores desses serviços. A imprensa cada vez menos depende dos assinantes. As verbas publicitárias desempenham um papel essencial para a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro.

O Direito Público e o Direito Privado, nesse contexto, ocuparam-se com cada vez maior intensidade dos problemas relativos à publicidade, o motor de grande parte das liberdades comunicativas. Preocupações de caráter social, consumerista e até mesmo ideológico passaram a interferir nessas relações, o que conduziu a um movimento de intervencionismo estatal ou social cada vez maior no universo dessa particular espécie de liberdade comunicativa. Em paralelo, os agentes privados organizaram mecanismos de controle prévio e privado dos atos praticados nesse setor.

Esse interessantíssimo universo, no século XXI, transbordou os limites dos meios de comunicação social tradicionais, provocando até mesmo a obsolescência de regras da Constituição de 1988 sobre controle desses meios e sobre sua pertinência com a soberania nacional. Prova disso está no movimento dos anunciantes para o universo da internet, o que conduziu, nos últimos dez anos, a uma crise sem precedentes nos media tradicionais, como rádio, televisão e jornais impressos.

Conhecer das especificidades jurídicas de um mundo absolutamente alheio à realidade de milhões de pessoas é um privilégio para poucas pessoas.

Dominar esses conceitos, saber operacionalizá-los com rigor metodológico, e ainda por cima empreender discussões sobre sua história, é ainda mais raro.

Apresentar esse nível de conhecimento técnico-jurídico e compreender a necessidade de diferentes qualificações jurídicas para um mesmo fato quando ele ultrapassa as fronteiras do Direito Civil, do Direito Constitucional, do Direito Administrativo-Regulador e do Direito do Consumidor, é algo que precisa ser enaltecido.

Reunir todas essas qualidades em um livro, especialmente em uma tese de doutorado, e torná-las acessíveis a um público de diferentes formações é singular.

Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias, advogada e professora universitária, conseguiu tal êxito ao defender sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2010, perante banca formada pelos professores Rui Geraldo Camargo Viana (orientador), Maria Celina Bodin de Moraes, Fernando de Campos Scaff, Claudio Luiz Bueno de Godoy e Rogério Ferraz Doninni. Aprovada a tese, ela compartilhou seus conhecimentos sobre o tema ao editar sua tese sob a forma do livro intitulado Publicidade e Direito, cujo sucesso editorial se ora reafirma com o lançamento da terceira edição, pela Saraiva, que ocorrerá na quarta-feira (29/11), às 18h30, na Arena do Shopping Iguatemi, em São Paulo.

Estive presente no lançamento da primeira edição do livro, prefaciado pelo professor Nelson Nery Jr., e agora posso acompanhar a evolução do pensamento da autora, que ampliou consideravelmente as fontes nacionais e estrangeiras, além de haver enfrentado as mais recentes polêmicas jurisprudenciais sobre o tema de Publicidade e Direito.

Com o domínio prático e teórico do tema, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias expõe ao leitor questões como os conceitos de publicidade, propaganda e marketing, com suas diferentes nuances: “A diferença entre propaganda e publicidade está, portanto, na finalidade de cada uma. A propaganda, historicamente, não almeja um benefício econômico, mas fundamentalmente a difusão de ideias. Ela visa promover a adesão a certo sistema ideológico (político, social, religioso, econômico, governamental). A publicidade, por seu turno, é a forma clássica de tornar conhecido um produto, um serviço ou uma empresa com o objetivo de despertar o interesse pela coisa anunciada, criar prestígio ao nome ou à marca do anunciante ou, ainda, difundir certo estilo de vida”[1].

Ela também apresenta os princípios próprios da publicidade, os conceitos de publicidade enganosa e abusiva, além de retomar — com maior profundidade — as candentes questões sobre a publicidade infantil, tão presentes hoje nos tribunais brasileiros. As técnicas publicitárias (merchandising, publicidade oculta, subliminar, teaser, testemunhal, puffing) são apresentadas ao leitor com uma preocupação didática tão elevada quanto a de preservar suas especificidades técnico-jurídicas.

O equilíbrio entre a informação insuficiente e a informação excessiva é retomado à luz de novos problemas como a rotulagem de produtos, cujo alcance transbordou as agências reguladoras e passou para o campo jurisdicional. A publicidade digital, a nova fronteira do século XXI no campo das liberdades comunicativas, também foi substancialmente desenvolvida nesta terceira edição do livro de Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias. A experiência estrangeira não ficou alheia ao trabalho: ela examinou o “native advertising, também conhecido como ‘marketing de conteúdo patrocinado’ e definido pela Federal Trade Commission como a publicidade cujo ‘conteúdo tem semelhança com as notícias, artigos de destaque, comentários sobre produtos, entretenimento e outros materiais on-line’ —, com base na principiologia própria da publicidade, forte, ainda, em exemplos da legislação e jurisprudência estrangeira”[2].

A autora conseguiu, com raro equilíbrio, enfrentar temas que hão saído da normalidade do debate intelectual e acadêmico para um espaço crítico (ou criticável?) de paixões e de ideologias. Isso também não é estranhável, como ela própria define, embora distintos, propaganda e publicidade muitas vezes terminam por convergir, em prejuízo da última.

Como civilista respeitada, a autora não se omite em preservar os espaços da autonomia privada, da autodeterminação, da autorregulação, expressões que contam com sua crença sincera, e também em assegurar (tanto quanto possível) sua compatibilidade com o Direito do Consumidor, matéria da qual também se ocupa, e o Direito Regulatório.

Ganha a cultura jurídica com a nova edição do livro Publicidade e Direito. Espera-se que o livro continue a influenciar os meios acadêmicos e jurisprudenciais, servindo de estímulo para que novos pesquisadores se interessem por algo tão humano e tão atual quanto publicidade, propaganda e suas relações com o Direito.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


[1] DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p.27.
[2] DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. p.18.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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