Opinião

Na prática, nulidade processual é um fingimento, e não efetiva garantia

Autor

  • Bruno Torrano

    é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

24 de novembro de 2017, 5h16

Na Ação Penal 0028277-51.2011.8.26.0451, que tramitou publicamente perante a 1ª Vara Criminal de Piracicaba (SP), dois réus foram condenados, juntamente com outros corréus, pela prática de receptação qualificada (artigo 180, § 1º, do Código Penal) e absolvidos do crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor (artigo 311, caput, do Código Penal).

Ao analisar os recursos de apelação interpostos pelas partes, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu parcial provimento ao apelo do Ministério Público, para condená-los, igualmente, por violação do mencionado artigo 311 do CP, mantida a sentença nas demais questões, com relação a eles. O acórdão transitou em julgado e os autos baixaram para execução de pena.

Constituída nova defesa, ambos suscitaram — tanto no TJ-SP (HC 2155841-66.2014.8.26.0000), quanto no Superior Tribunal de Justiça (RHC 57.403) — a ocorrência de nulidade absoluta, por terem sido representados por advogado que estava suspenso dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

No writ, alegou-se, em síntese, o que segue: (a) o causídico foi suspenso em dezembro de 2012, situação que continuava inalterada no momento da impetração do writ, em razão do disposto no artigo 37, § 2º, da Lei 8.906/1994; (b) tanto a sentença quanto o acórdão foram publicados durante a suspensão do defensor constituído; (c) o recurso de apelação foi interposto no período de inabilitação; e (d) o prejuízo era manifesto, por duas razões: o acórdão que julgou a apelação deu provimento ao recurso do Ministério Público para o fim de condenar os pacientes/recorrentes como incursos no artigo 311 do CP, com relevante aumento de pena (3 anos e 6 meses de reclusão para um, 4 anos e 1 mês para outro, em concurso material); e o causídico inabilitado deixou de opor embargos de declaração contra o acórdão, bem como de interpor recursos especial e extraordinário, o que levou ao trânsito em julgado do acórdão, com início de execução de pena.

Nesses termos, foi pleiteada a anulação de todos os atos praticados pelo defensor inabilitado, mediante aplicação do disposto no artigo 4º, parágrafo único, da Lei 8.906/1994 (“São também nulos os atos praticados por advogado impedido – no âmbito do impedimento – suspenso, licenciado ou que passar a exercer atividade incompatível com a advocacia”) e do enunciado da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal (“No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”).

Acompanhando a conclusão do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela inexistência de constrangimento ilegal a justificar a concessão da ordem de habeas corpus, tendo negado provimento ao recurso ordinário sob os seguintes fundamentos: (a) o fato de a defesa técnica ter sido feita por advogado suspenso pela OAB constitui mera “irregularidade processual” que demanda a demonstração de efetivo prejuízo; (b) no caso, o prejuízo não se verificou porque o advogado compareceu a todos os atos processuais, tendo, inclusive, interposto recurso de apelação; e (c) a ausência de oposição de embargos de declaração ou de interposição de recursos especial e extraordinário não constitui, de per si, prejuízo à defesa, em razão do princípio da voluntariedade recursal [i].

O caso narrado constitui apenas um, dentre inúmeros outros, a indicar que, no Brasil, ainda convivemos com uma cultura judicial apática quanto ao conteúdo dos princípios acusatório e do devido processo legal, arcaica quanto à insistente crença do processo penal como instrumento voltado à “busca da verdade real”, e indiferente às particularidades normativas do processo penal quando cotejado com o processo civil.

Como resultado dogmático e jurisprudencial, doutrinadores e juízes respeitáveis continuam a aplaudir, sem revisão crítica, distinções analíticas que aparentam ser neutras quanto a seus fins, mas que, em verdade, prestam-se, desde o início, ao propósito nada ingênuo de “salvar” condenações ou evidentes prejuízos quando as regras do jogo limpo (fair play) são desrespeitadas pelos atores processuais. Fala-se, assim, em atos irregulares vs. nulidades; essência vs. consequência; nulidade relativa vs. nulidade absoluta; provas ilícitas vs. provas ilegítimas; forma do ato vs. conteúdo; etc.

Com todos esses utensílios abstratos em mãos, a doutrina tradicional respalda aquilo que se conhece por pas de nullité sans grief. Acompanhada pelo STF e STJ, conclui que eventual “defeito” ou “vício” na forma prevista em lei causa apenas a “irregularidade” do ato, mas que tal “irregularidade” não pode ser confundida com “nulidade”, já que esta não é da “essência” do ato, e sim uma “consequência” (sanção) jurídica a ser construída, nas hipóteses taxativas autorizadas por lei, pelo raciocínio “discricionário” do magistrado, o qual deve examinar, por um lado, se a “finalidade” para o qual o ato se destina foi alcançada, e, por outro, em caso positivo, se o alcance “irregular” de tal finalidade/conteúdo importou genuíno “prejuízo” à parte que pretende a invalidação — e isso, frise-se bem, independentemente de se tratar de nulidade “relativa” ou de nulidade “absoluta”[ii].

Uma curiosidade, neste ponto. A fórmula “não existem princípios absolutos”, que serve de golpe de frase pronta e satisfaz aplicadores do direito em contextos de relativização de direitos fundamentais e de amparo da intervenção estatal, aqui já não parece ser tão persuasiva. Professores de filosofia do direito que se ocupam com a teoria das normas e com a distinção de categorias normativas (princípios, regras, postulados, políticas, etc.) têm à mão um exemplo de princípio jurídico absoluto — ou, caso se prefira, de regra jurídica não-excepcionável. À luz da processualística e da jurisprudência, o pas de nullité sans grief reina soberano em todo e qualquer jogo de linguagem processual possível e imaginável, não se deixando derrotar, nunca, por nenhuma outra forma de normatividade concorrente.

Seja como for, para o que me interessa mais de perto neste artigo, insta salientar que a interpretação alargada, absoluta e acrítica que se tem dado ao artigo 563 do CPP[iii], mormente no que diz respeito à equiparação de nulidade relativa e absoluta quanto à necessidade de comprovação de prejuízo, ajusta-se concomitantemente a dois eficientes predadores da ampla defesa e da paridade de armas: poder discricionário e prova diabólica. Veja-se bem: no âmbito do processo penal[iv], o modelo da “forma como instrumento” pode até, em certa medida, ser compatível e coerente com a leitura isolada do mencionado dispositivo legal. Todavia, do ponto de vista constitucional, seria salutar, se não a completa modificação de lege ferenda de todo o sistema de nulidades (mais ou menos na linha proposta por Ricardo Gloeckner e Aury Lopes Jr.), ao menos o retorno à interpretação jurisprudencial restritiva do artigo 563 do CPP, a fim de ressuscitar a ideia de presunção de prejuízo nas nulidades absolutas.

Os princípios acusatório e do devido processo legal demandam que a aplicação dos efeitos jurídicos de uma fraude contra as formas processuais independa dos sentimentos que os fatos narrados na denúncia despertam na consciência do magistrado. Trata-se da técnica interpretativa que Jeremy Waldron, em excelente metáfora, nominou “engolir a seco”: o bom juiz, sabedor de sua responsabilidade política e do dever constitucional de imparcialidade, reconhece e declara um desrespeito às regras do jogo processual ainda que se sinta intimamente escandalizado com a gravidade dos fatos apurados, ou ainda que desprestígio e impopularidade sejam as consequências ante a opinião pública.

Não obstante, as distinções analíticas enaltecidas no modelo da “forma como instrumento” incentivam justamente o oposto: que o jogo processual continue a fluir, rendido às opiniões do julgador acerca da gravidade do crime ou da decência do réu, ou, enfim, à influência exercida por jogadores extra-processuais que clamam por punição. Na leitura ampla do artigo 563 do CPP, toda a estrutura do pas de nullité sans grief é pensada com o intuito, ainda que disfarçado, de abrir discricionariedade onde o sistema jurídico-constitucional determina o seu radical fechamento, de capitalizar confiança no aplicador do direito onde se pressupõe justamente desconfiança e rígidos limites normativos[v].

Trata-se de um elogio ao mau juiz, uma ode àquele funcionário do sistema que, escravo das emoções galopantes, não consegue contrariar-se a si próprio em favor da aplicação da mensagem objetivamente passada pelo direito. O poder discricionário que o pas de nullité sans grief enfeixa no magistrado é brutal, imperturbável, e confere ares de legitimidade a qualquer escolha, desde que a decisão atenda ao frouxo teste da motivação razoável: cabe a ele selecionar se se trata de ato “meramente irregular”, de “nulidade relativa” ou de “nulidade absoluta” e, em qualquer dos casos, avaliar, por sua conta e risco, se a parte conseguiu “demonstrar o prejuízo”.

Isso nos conduz ao segundo predador da due process clause: a exigência de que a parte faça prova de algo impossível ou difícil de ser provado. Ou, ainda, em termos contemporâneos, que prove algo cujo prejuízo, diante da normativa constitucional, deveria ser juridicamente presumido.

A combinação entre o modelo alargado de pas de nullité sans grief e o gerenciamento viciado de poder discricionário adorna o pior cenário possível para a defesa. Não basta, tal como no caso exposto no início do artigo, que a defesa comprove que o causídico anterior estava suspenso da ordem dos advogados, que a condenação foi proferida durante o patrocínio de advogado inabilitado, que a pena foi incrementada em segunda instância na mesma ocasião em que se analisou o apelo por ele interposto, que ele deixou de opor embargos de declaração e de interpor os cabíveis recursos especial e extraordinário.

Na prática do processo penal brasileiro, basta que a reação emotiva do julgador aos fatos narrados na denúncia hostilize-se desde logo contra a figura do réu para que nenhum argumento, explicação ou evidência alcance força suficiente para a anulação de um ato processual irregular. No modelo ampliado da “instrumentalidade das formas”, que obriga o acusado a suplicar pelo fair play e torcer pela boa vontade do juiz mesmo nas nulidades absolutas, o instituto da “nulidade processual” tem a natureza jurídica de lorota, de fingimento, e não de efetiva garantia contra o jogo sujo.


[i] Eis a ementa do acórdão proferido pela Quinta Turma do STJ:

“PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. NULIDADE DO PROCESSO. AUSÊNCIA DE DEFESA. ADVOGADO SUSPENSO. MERA IRREGULARIDADE. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. SÚMULA 523/STF. 2. NÃO OPOSIÇÃO DE EMBARGOS. NÃO INTERPOSIÇÃO DE RESP E RE. PRINCÍPIO DA VOLUNTARIEDADE. AUSÊNCIA DE NULIDADE OU PREJUÍZO. 3. RECURSO EM HABEAS CORPUS IMPROVIDO.

1. Não há se falar em ausência de defesa, porquanto o advogado compareceu a todos os atos processuais, tendo, inclusive, interposto recurso de apelação. Dessa forma, eventual deficiência da defesa técnica, em virtude de o causídico estar suspenso, demanda demonstração do prejuízo, conforme dispõe o verbete n. 523/STF. De fato, a defesa técnica realizada por advogado, ainda que suspenso pela OAB, é mera irregularidade processual que demanda a demonstração do efetivo prejuízo a ensejar a declaração de nulidade. Conforme disciplina o art. 563 do Código de Processo Penal. 2. A ausência de oposição de embargos de declaração ou de interposição de recursos especial e extraordinário, não revela, por si só, prejuízo à defesa, haja vista o caráter de voluntariedade do recurso. Dessa forma, além de não se verificar nenhum tipo de nulidade não se demonstrou eventual prejuízo. 3. Recurso em habeas corpus improvido.” (RHC 57.403/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 16/05/2017, DJe 24/05/2017)

[ii] “Esta Suprema Corte sufraga o entendimento de que o reconhecimento da nulidade alegada pressupõe a comprovação do prejuízo, nos termos do artigo 563 do Código de Processo Penal, sendo descabida a sua presunção, no afã de se evitar um excessivo formalismo em prejuízo da adequada prestação jurisdicional” (HC 147356 AgR, Relator: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, publicado em 17/11/2017). “A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que ‘a demonstração de prejuízo, de acordo com o art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta (RHC 122.467, Rel. Min. Ricardo Lewandowski)’. (HC 135278 AgR-ED, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, publicado em 17/11/2017).

[iii] “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”.

[iv] Não questiono, aqui, a compatibilidade da instrumentalidade das formas no âmbito do processo civil.

[v] Refiro-me à noção de “economia da confiança” teorizada por Scott Shapiro. Cf. SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011. Cf. minha explicação em TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico e pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

Autores

  • é mestre em Direito. Assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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