Opinião

O que a renúncia do tirano Mugabe ensina sobre constitucionalismo e perdão

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

22 de novembro de 2017, 14h57

“Bem, eu não gosto de pessoas segurando a minha mão. Então, eu afastei a minha mão da dele e fui para a outra ponta do sofá”, bufou Ian Smith, primeiro-ministro da então Rodésia, que exerceu cruelmente o poder entre os anos de 1964 e 1979, impondo a 5 milhões de negros o capricho racista de uma minoria branca.[1]

A confidência foi feita à escritora Heidi Holland, publicada em Dinner with Mugabe: The untold story of a freedom fighter who became a tyrant. Ela simboliza a tempestade de revanchismos que sacudiu o país culminando na renúncia de Bob após dias de incertezas na nação africana.

Smith referia-se à tentativa de reconciliação de Robert Mugabe, o primeiro negro a assumir, democraticamente, o poder no Zimbábue, em 1980. “Bob”, como é conhecido no “Zim”, acaba de renunciar ao poder após o Parlamento do Zimbábue dar início a um processo de impeachment. Sofreu, na verdade, um golpe dentro de muitos golpes que deu contra as instituições e a Constituição do seu país.

No começo da história, logo após sua vitória nas urnas, Mugabe propôs uma reconciliação ao ex-presidente Ian Smith, responsável pelos 11 anos nos quais Mugabe esteve na cadeia. A humilhação de ver sua mão estendida acendeu a primeira centelha de ódio que marcaria o seu governo. Antes dessa recente renúncia, ele havia sido eleito em junho de 2013, pela sétima vez, presidente do país, numa eleição marcada por acusações de violência, desrespeito a direitos, pouca transparência e muita fraude.

Desde 1980, o Zimbábue é governado por esse herói inicial — líder guerrilheiro alçado ao poder em eleições livres —, que acabou com a supremacia branca para depois virar um autocrata rancoroso que viveu com o dedo enfiado em cicatrizes não curadas.

Mugabe tem um início de caminhada tão esplendoroso como o de Nelson Mandela. São líderes africanos negros que desafiaram a prepotência da colonização e do apartheid impostos pelos colonizadores. Mesmo com formação intelectual, passaram a travar uma luta contra o império valendo-se de táticas terroristas.

Robert Gabriel Mugabe nasceu dia 21 de fevereiro de 1924, em Kutama, a cerca de 100 km de Harare, capital do Zimbábue. Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em Mvezo, em 18 de julho de 1918, na África do Sul. Eles cresceram sem a presença paterna e desenvolveram uma ligação muito forte com suas mães.

Mugabe se casou pela primeira vez com Sally Hayfron, professora em Gana e grande entusiasta da luta por liberdade na África. O segundo casamento de Mandela foi com Winifred Madikizela, a Winnie Mandela, que tinha pendor por grandes batalhas. Mugabe passou 11 anos na cadeia, na província de Gwelo e foi impedido de ir ao enterro do filho, Nhamo Mugabe, em 1966. O mesmo aconteceu com Nelson Mandela, isolado por 18 anos em Robben Island sem ter podido comparecer ao funeral do filho, Madiba Thembekile, em 1969.

Os dois, após conquistarem a liberdade, foram honrados por multidões às ruas. Nas eleições seguintes, livres e com participação negra, elegeram-se presidentes.

Contudo, enquanto Mandela suportou o caminho da reconciliação, Mugabe abraçou a revanche. Um acreditou e manteve uma Constituição livre. O outro, diante dos complicadores que a política lhe apresentou, preferiu a força. Nada de respeito à Constituição.

Dentre vários encontros que Mugabe teve com Nelson Mandela, um é ilustrativo. Na década de 1990, eles inauguraram uma ponte na fronteira entre os dois países. Os presidentes caminharam em direção ao meio de seus respectivos lados, cada um carregando uma tesoura para cortar a fita de inauguração. Do lado sul-africano havia estudantes brancos que organizaram um almoço. Mandela agradeceu aos estudantes e, de repente, anunciou uma foto com os dois presidentes.

Ele chamou o presidente do Zimbábue para a foto, referindo-se simplesmente como “Mugabe”, sem seguir o protocolo. No momento em que se preparou, os estudantes correram para Mandela. Dois deles se sentaram em seu colo. Mugabe foi deixado de lado. Ele olhou ofendido enquanto Mandela se divertia diante das câmeras.

Heilli Holand relata ainda que o ciúme que Mugabe tinha de Mandela era semelhante à rivalidade que há entre irmãos. Ele desejou a vida inteira ser tido como alguém especial, uma pessoa diferente de todas as outras. “De repente, quando começa a subir os degraus em direção ao seu castelo, aparece aquele irmão mundano, sábio, mais velho, que estava no topo da sua jornada e que monopolizava todos os holofotes”, anota a escritora. Para Holand, “o fato de Mandela emergir como o rei do mundo era uma decepção muito difícil para um homem fraco como Mugabe suportar tranquilamente”.

O próprio Mandela, em tom de brincadeira, dizia que Mugabe tinha sido a estrela, “até que o sol saiu”. O sol era Mandela.

Como pode dois líderes africanos terem chegado ao século XXI com legados tão diversos? Mandela renunciou voluntariamente à disputa do segundo mandato presidencial ao qual tinha direito enquanto Mugabe acaba de ser chutado por aliados.

Pelas mãos de Nelson Mandela seu país abraçou o perdão. “Peguem suas armas, suas facas, suas ‘pangas’, e joguem ao mar. Eles me deixaram preso 27 anos e eu os perdoei. Se sou capaz de perdoar, vocês também são!”, disse “Madiba”, em cadeia nacional de televisão em 1990, quando a África do Sul se desmanchava em sangue na luta entre brancos e negros.

Essa chuva de perdão irrigou a Constituição sul-africana, possibilitando que a Corte Constitucional manuseie um instrumento generoso. Enquanto isso, o governo do Zimbábue foi o retrato do rancor racista. Um ódio inicialmente imposto pela minoria branca sob a liderança de Ian Smith. Depois, gradualmente empregado pela maioria negra sob o comando de Robert Mugabe. Hoje, zimbabuanos migram para a África do Sul em busca de prosperidade. Não o contrário.

David Schmidtz recorda que “muitos dos responsáveis pelo apartheid estavam bem vivos nessa época e, de forma alguma, fora do alcance da lei. Todavia, mesmo assim, o objetivo de Mandela (assim como o de Desmond Tutu) era a reconciliação e não a vingança. Ele queria evitar que o legado do apartheid continuasse a pairar sombriamente sobre as gerações futuras”.[2]

Enquanto Mandela optou pelo caminho da reconciliação e encontrou em seus algozes uma boa receptividade, Robert Mugabe viu o líder branco Ian Smith deixar-lhe com a mão estendida e liderar uma oposição que pretendia, antes de tudo, manter a concentração de terras nas mãos dos brancos e perseguir o ideal de supremacia baseada na cor da pele. Mugabe preferiu curvar-se ao ódio do qual ele foi vítima.

Durante os primeiros anos do seu governo, Robert Mugabe implementou muitas políticas — principalmente educacionais — em atenção à comunidade branca. Havia uma intenção de reconciliação. Ian Smith, seu algoz, circulava livre pelo Zimbábue e maquinava contra o governo.

Em 1985, uma eleição na qual Mugabe sagrou-se primeiro-ministro mostrou que os zimbabuanos brancos votavam fechados em Ian Smith. Dos 20 assentos no Parlamento reservados para eleitores brancos, todos foram preenchidos com membros do partido de Ian (Aliança Conservadora do Zimbábue) ou de seus aliados (Grupo do Zimbábue Independente e Independentes). Ficou claro que os brancos não votavam em Mugabe. Ele se sentiu rejeitado e prometeu se vingar: “Talvez a reconciliação que nós tentamos com os brancos tenha sido um erro”, confidenciou ao seu então líder espiritual, o padre jesuíta Fidelis Mukonori.

Ao mostrar ao novo presidente que gostavam de seu antigo líder, “os zimbabuanos brancos se colocaram como um grupo que preferia não apertar a mão de Mugabe, não porque ele não tinha conseguido fazer um bom trabalho, mas porque ele era negro”. Daí em diante as coisas começaram a mudar.

Em 2000, as urnas derrotaram Mugabe num referendo que visava a aprovação de uma nova constituição para implementar uma reforma agrária racista. O presidente implementou a política mesmo assim, escapando dos limites constitucionais impostos.

A Fast Track Land Reform Programme tirava as terras das mãos dos brancos e as entregavam aos negros. De fato, o Zimbábue convivia com uma imensa concentração de terra nas mãos dos brancos que não abriam espaço para qualquer negociação. Para Mukonori, “você tem que entender a arrogância dos brancos rodesianos, a lógica da supremacia branca. Eles queriam um partido que garantisse a manutenção das terras em suas mãos, a base do seu estilo de vida. Mas eles não podiam enxergar que os negros também queriam isso”, confidenciou à escritora Heilli Holand.

Contudo, Mugabe fez algo pra lá de radical. Ele pôs fim a todas as fazendas responsáveis pela produção de alimentos. A tecnologia, expertise, logística e liderança dos brancos na agricultura começaram a fazer falta. Destruiu-se um setor que fornecia metade das divisas do Zimbábue. O resultado foi o colapso da economia, a expansão da fome coletiva, surtos de hiper-inflação e um índice de desemprego que chegou a 94%.

A situação foi alvo da atenção de David Schmidtz, para quem “Robert Mugabe e seu exército estão erguendo tendas em qualquer lugar que lhes agrade e qualquer horta dos fundos preferiria estar em algum outro lugar”, afirmando, ainda, que ocorre no país uma “catástrofe”, já que, lá, os direitos de propriedade “desmoronam”.[3]

Mais de 14 anos depois da implementação da Fast Track Land Reform Programme, algumas províncias começam a exibir frutos.

A obra Zimbabwe’s Land Reform: Miths + Realities, coordenada pelo professor Ian Scoones, mostra que as políticas de redistribuição de terra na província de Masvingo abriram caminho para a inserção de grupos marginalizados, para o fim dos latifúndios, para o surgimento de uma nova comunidade rural e fortaleceu o senso de pertencimento nos zimbabuanos. A pesquisa fala do papel fundamental desempenhado pelo governo e mostra que a indústria agrícola, em Masvingo, dá sinais de retomada da produção de modo sustentável e mais igualitário.

Robert Mugabe não é um estúpido. Não estamos falando de um ditador africano que pega em armas, luta por dinheiro ou come pessoas (alguns ditadores africanos, como Idi Amim, de Uganda, foram acusados de canibalismo). Mugabe é um intelectual que coleciona diplomas universitários. São sete ao todo, sendo que, dois deles conquistados enquanto estava na cadeia: pedagogia, educação, inglês, artes, administração, economia, direito, além do mestrado em direito.

Acontece que, enquanto Nelson Mandela sustentou seu compromisso com a reconciliação, tendo governado por 4 anos e entrado para a eternidade em dezembro de 2013, quando faleceu, Mugabe retribuiu na mesma moeda o que o governo racista de Ian Smith lhe fez. Agora, é sacado fora do governo que conduz desde 1980, deixando um país pobre e isolado internacionalmente.

O racismo de Mugabe não expulsou somente fazendeiros brancos. Milhões de jovens negros zimbabuanos estão na África do Sul trabalhando por não terem encontrado no seu país uma oportunidade de felicidade. Ao final do expediente, eles embarcam rumo às townships [favelas sul-africanas] esgarçando ainda mais o que resta dos laços cortados pelo revanchismo político de líderes que não souberam perdoar.

Agora, Bob Mugabe está fora do jogo. Isso é bom. Mas a sua saída não mudará os destinos dos jovens zimbabuanos se o futuro governo persistir com a ideia de que os rumos de uma nação residem num acerto de contas sem fim. É hora de olhar para frente e construir um amanhã melhor para todos. Para isso, as crenças no constitucionalismo e um sincero compromisso com o perdão podem ser um extraordinário primeiro passo.


1 A trajetória de Robert Mugabe pode contar com um estudo aprofundado nas seguintes obras: GODWIN, Peter. The Fear – The Last Days of Robert Mugabe. London: Picador, 2010. DUBIN, Steve C. Spearheading Debate: Culture Wars & Uneasy Truces. Cape Town: Jacana, 2012. MOORCRAFT, Paul. Mugabe´s War Machine. Cape Town: Jonathan Ball Publishers, 2012. HOLLAND, Heidi. Dinner with Mugabe: The untold story of a freedom fighter Who became a tyrant. Johannesburg: Penguin Books, 2009. Especificamente sobre a Reforma Agrária, recomendo Zimbabwe´s Land Reform – Myths & Realities. Cape Town: Jacana, 2011.

2 Os elementos da justiça. Trad.: William Lagos; revisão da trad. Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 323.

3 Os elementos da justiça. Trad.: William Lagos; revisão da trad.: Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 317.

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