Direito Comparado

O modelo de pós-graduação: o dilema da qualidade e da produção

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de novembro de 2017, 7h05

Spacca
1. Ford versus Da Vinci
O jornal espanhol El País, em sua edição de 18 de novembro de 2017, publicou notícia com o título “Educação endurece os critérios para ser professor e catedrático universitário”. Na Espanha, o equivalente brasileiro a professor titular é o catedrático, enquanto o titular espanhol corresponde ao professor associado no Brasil. Em que consistiu esse endurecimento de critérios? De acordo com a reportagem, o candidato ao cargo de catedrático de Direito deverá comprovar a publicação de quatro monografias, 15 capítulos de livros e 15 artigos. Essa é, digamos, a “barreira de entrada” para concorrer à cátedra. Em outras áreas, o rigor também aumentou: em Matemática, são necessárias 35 publicações em revistas reconhecidas internacionalmente, ao passo que, em Física ou Química, o interessado deve comprovar a publicação de 50 artigos em periódicos indexados.

O que esses números querem dizer?

Na coluna anterior, deu-se início a uma reflexão sobre a natureza, a função e o papel das pós-graduações em Direito sob uma perspectiva comparada. Na conclusão do texto anterior, deixou-se em aberto um problema: qual a abordagem a ser dada à pós-graduação no Brasil, considerada sua realidade assimétrica em termos regionais, econômicos e políticos?

Parafraseando o livro de H.G. Wells, de 1897, A Guerra dos Mundos, que narra a invasão da terra por marcianos, a universidade passou (e ainda passa) por uma guerra de (concepções) de mundo(s). Os fordistas, em uma analogia com o modelo de linhas de produção inaugurado por Henry Ford na fábrica de automóveis que leva seu nome, e os renascentistas, uma figuração para qualificar os que trabalham artesanalmente em busca de seu opus magum, como Leonardo da Vinci, serão as personagens principais desta coluna. Como cenário, a pós-graduação em Direito.

O objetivo desta coluna, que dá sequência ao debate, é apresentar como se deu a transformação da pós-graduação em geral e no Direito, em particular, em um espaço de disputa entre o modelo fordista e o modelo renascentista. O fordismo venceu. O que fazer com a cidadela ocupada? Qual o papel dos renascentistas nas ruínas de uma ciência reflexiva, que foi tomada por controles preponderantemente quantitativos?

2. Crônica de uma ruína anunciada
O abandono do modelo renascentista de pós-graduação (não apenas em Direito) remonta ao câmbio ocorrido na organização burocrática dos controles acadêmicos no século XX. É possível datar o início desse processo no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. É igualmente possível localizá-lo: no Reino Unido e na Irlanda do Norte.

O historiador britânico Paul Johnson narra um episódio que simboliza (e sintetiza) essa mudança: embora estudasse em Cambridge, Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) alistou-se como voluntário no Exército Real e Imperial (da Áustria-Hungria, sua terra natal) após a declaração de guerra em 1914. Por seu desempenho heroico em combate na sanguinária frente russa, Wittgenstein foi condecorado pelo imperador. Em plena guerra, ele concluiu seu opus magnum, o Tractatus Logico-Philosophicus, livro que revolucionaria o pensamento filosófico e científico no século XX.

Com a derrota e o fim político da Áustria-Hungria, Wittgenstein tentou se adaptar à vida civil, o que se deu com enormes dificuldades em razão dos traumas de guerra. Ele terminou por voltar a Cambridge no ano de 1929. Segundo a narrativa de Paul Johnson, preocupado com a sobrevivência de Wittgenstein e com seu futuro acadêmico em razão das novas regras para admissão de docentes nas universidades britânicas, Bertrand Russel organiza uma “defesa de tese doutoral” para Wittgenstein. A tese? Muito simples: Tractatus Logico-Philosophicus. A banca, na verdade, consistiu em uma ágape intelectual entre examinadores e o “candidato”. O renascentista Wittgenstein adaptava-se aos métodos fordistas graças ao engenho e à astúcia de Russel. Com o grau de doutor, Wittgenstein foi designado como fellow do Trinity College, na Universidade de Cambridge, recebendo uma bolsa a título de remuneração. Em 1939, outro benfeitor de Wittgenstein, Georg Eduard Moore, que esteve em sua banca de doutorado, aposenta-se antecipadamente. Tudo fazia parte de uma maquinação de Russel: a vaga foi preenchida por Wittgenstein em um concurso cujo resultado todos sabiam qual seria.

A história, que é verdadeira, revela as preocupações de Russel com a possibilidade de Cambridge perder um dos grandes gênios do século XX em razão da burocracia acadêmica que se instalara no Reino Unido dos anos 1930.

Com o segundo pós-guerra, os controles burocráticos aumentaram consideravelmente em todo o mundo. Reformas do ensino superior ocorreram nos anos 1960 e 1970, inclusive no Brasil, com o objetivo declarado de tornar o acesso universal (o que não significa gratuito). As revoltas estudantis de 1968, especialmente na França, na Itália e na Alemanha, foram um reflexo da luta por essas mudanças (ou dos efeitos mal calculados desses câmbios). O regime militar, nos anos 1970, instituiu o atual modelo de pós-graduação brasileiro e extinguiu o sistema de cátedras, que foi substituído pelo sistema de departamentos.

Até então, o fordismo não havia lançado suas bases em um campo: a produção intelectual dos docentes. Embora a publicação de livros e artigos tivesse crescido exponencialmente, não havia um sistema de indexação e de controles quantitativos tão rígido. O publish or perish (publique ou pereça) não se havia instalado com todos os seus requintes.

3. Publicar e perecer
A grande virada ocorrerá na década de 1980, graças a Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos) e Margareth Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido). Nos Estados Unidos, a administração Reagan incentivou a competição entre as universidades, seja como instrumento necessário à vitória na Guerra Fria contra a União Soviética, seja como uma estratégia de combate aos acadêmicos left-liberals (termo equivalente a acadêmicos simpáticos a algumas ideias de esquerda), que passaram a dominar as grandes universidades americanas após os anos 1960. No Reino Unido, com a grave crise econômica e orçamentária dos anos 1970, o thatcherismo chegou às universidades com a ordem: financiem-se, concorram e tornem-se atraentes ao setor produtivo.

Nos Estados Unidos, o novo modelo não foi tão problemático, pois a lógica da maior parte das universidades foi do autofinanciamento e das doações privadas. No Reino Unido, sua implantação deu-se em termos menos suaves. As grandes universidades adaptaram-se, ao passo em que as médias sofreram um pesado baque.

Nos dois lados do Atlântico, a gestão acadêmica tem-se distinguido cada vez mais da gestão financeira. A administração “empresarial” das grandes universidades britânicas e norte-americanas foi o grande legado da era Reagan-Thatcher, ao menos nos níveis atualmente praticados.

Este colunista participou de um grande encontro sobre responsabilidade civil comparada em Cambridge no ano de 2016 e pôde compreender essa visão: quase tudo era voltado para receber estudantes ou pesquisadores estrangeiros e a otimizar espaços para que as instalações e os cursos da universidade fossem rentabilizados. Não é sem causa que, segundo Peter Burke, nos anos de 2003 e 2004, as universidades britânicas foram responsáveis por ingressos financeiros da ordem de 28 bilhões de libras esterlinas, apenas com a presença de estudantes estrangeiros. No mesmo período, a indústria automobilística faturou 20 bilhões de libras esterlinas, e o setor de serviços, o valor de 19 bilhões de libras esterlinas.

Para que essa máquina funcione, é necessário um processo de retroalimentação, que envolve prestígio para atrair bons alunos e pesquisadores, os quais conseguem prêmios, patentes e bolsas, que, por sua vez, servem para aumentar o prestígio e trazer mais alunos e mais doadores (ou financiadores). Nesse círculo virtuoso, os rankings, as distinções e os prêmios acadêmicos são fundamentais. E como ficar bem nesses indicadores? Com critérios qualitativos, é claro. Mas não apenas. São centrais os critérios quantitativos. Número de publicações indexadas, por exemplo, é um desses critérios.

Uma história narrada a este colunista exemplifica tal processo: uma doutoranda em uma universidade americana apresentou dois artigos a seu orientador, como requisito para a obtenção do título (em muitas faculdades de exatas, a publicação de artigos substitui a elaboração de teses). O orientador considerou que os papers estavam adequados para bons periódicos e mandou que a aluna os enviasse para as revistas, o que é algo bem planejado nos Estados Unidos, envolvendo até mesmo uma janela de meses no ano. Poucas semanas depois, ela foi procurada pelo orientador com uma contraordem: ela deveria direcionar os artigos para periódicos com indexação mais valorizada. Isso implicaria enorme esforço da doutoranda para reelaborar os textos, que já haviam sido considerados bons. Ela se atreveu a perguntar o porquê dessa mudança. O orientador respondeu com franqueza: “Fui procurado pelo deão da faculdade. Ele precisa que subamos no ranking deste ano para que possamos pleitear mais bolsas para jogadores de basquetebol que vão atuar na liga americana. Com isso, teremos uma participação maior na verba de publicidade dos jogos da liga e poderemos financiar pesquisas em nossa unidade”.

Esse entrelaçar de financiamento, prestígio e produção, que se tornou típico dos modelos norte-americano e britânico (não no sentido de modelo jurídico, é claro), terminou por ser exportado para o resto do mundo. E é nas pós-graduações, o locus por excelência da produção científica, que essa “nova ordem fordista” se tornou ainda mais visível. Espaços para pesquisadores renascentistas ainda existem. Mas até estes são cobrados pelos controles de produção. É vulgar, nesses casos, aquelas publicações em coautoria com pesquisadores ou professores assistentes, uma prática que começa a ser criticada em alguns fóruns científicos, até mesmo em razão de algumas denúncias de jovens pesquisadores que se julgaram preteridos em suas carreiras nas universidades e se voltam contra seus (supostos) “exploradores”.

4. O Direito nas “oficinas de florestas”
Até então preservada por sua “específica especificidade” (com o perdão pela hipérbole), a pós-graduação em Direito foi convocada para essa luta pelos rankings. Como em uma guerra total, até mesmo unidades não combatentes terminam por ser chamadas ao front. Há pelo menos duas décadas, o Direito e sua pós-graduação vem sendo inserida (muitas vezes contra sua vontade) nesse processo de controle fordista das produções em livros e periódicos.

Essa perplexidade tem chegado com mais força às pós-graduações em Direito. Se são conhecidas as causas dessa transformação, é necessário desenvolver pautas e agendas para que o Direito consiga se adaptar a esses novos tempos sem que sua própria forma de organização e de produção do conhecimento não seja soterrada pela importação de modelos que lhes são hostis ou inadequados. Não há mais volta ao modelo renascentista puro. Os excessos do fordismo, porém, criaram efeitos colaterais como produção artificial, de baixo impacto e com fins puramente quantitativistas. Na próxima semana, um novo debate: como melhorar esses critérios e permitir uma produção também qualitativa na pós-graduação em Direito no Brasil?

5. Epílogo
Jesus Cristo Salvador do Mundo é a pintura de autoria atribuída a Leonardo da Vinci, mais conhecida pelo nome em latim Salvator Mundi. Pintada por volta de 1500, a obra é no estilo renascentista e se considera uma produção tardia do grande Leonardo. O quadro traz o Cristo com a mão direita erguida e com os dedos inclinados abençoa a quem o contempla. Mais curiosa ainda é a história dos donos da pintura: Luís XII, rei de França, Carlos I, rei da Inglaterra, o 1º Visconde de Cook e, em 1958, leiloada pelos descendentes do visconde por 45 libras esterlinas. Reaparecida em 2005, foi comprada por um grupo de investidores especializados em Arte e depois vendida ao russo Dmity Rybolovlev. No dia 15 de novembro de 2017, a Christie’s, famosa casa britânica de leilões, conseguiu vender a pintura de Da Vinci por US$ 450 milhões, o maior valor pago na história por uma obra de arte.

Apesar de vencedores, os fordistas não derrotaram os valores renascentistas. Eles estão vivos e são muito bem apreciados por quem conhece o que é belo e bom e justo.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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