Consultor Tributário

Novo regime de royalties sobre mineração está repleto de inconstitucionalidades

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

22 de novembro de 2017, 10h50

Spacca
Caricatura Heleno Torres (nova) [Spacca]Está em discussão legislativa a Medida Provisória 789/2017, sobre as mudanças do regime geral de royalties de mineração. Assim, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), que antes incidia sobre o resultado, na forma do produto mineral, ou seja, pela lavra do recurso mineral, para sua transformação em produto mineral; a partir da MP 789/2017, passa a incidir sobre diversos outros fatos econômicos, que não correspondem à transformação do recurso mineral no produto mineral. Vejamos alguns destes.

Inusitadamente, o artigo 2º da MP 789/2017 estabeleceu, pelo menos, cinco bases de cálculo para a CFEM, sendo duas delas bases presumidas e sem qualquer relação com o resultado da exploração, numa canhestra tentativa de equiparar a CFEM às espécies de tributos IPI, ICMS ou IRPJ.

CFEM sobre a venda. O inciso I do artigo 2º da MP 789/2017 prescreve que a alíquota da CFEM incidirá “na venda, sobre a receita bruta da venda, deduzidos os tributos incidentes sobre sua comercialização, pagos ou compensados, de acordo com os respectivos regimes tributários”. A incidência da CFEM sobre o valor bruto de venda do minério aproxima-se da base tributável do ICMS. A CFEM deve incidir sobre o resultado da exploração.

CFEM sobre o consumo. O inciso II do artigo 2º da MP 789/2017 determina que a alíquota da CFEM incidirá “no consumo, sobre a receita calculada, considerado o preço corrente do bem mineral, ou de seu similar, no mercado local, regional, nacional ou internacional, conforme o caso, ou o preço de referência definido pela entidade reguladora do setor de mineração, observado o disposto no § 6º”. Noutros termos, a CFEM sobre o consumo instituiu a modalidade da pauta de valores e apropriou-se de um elemento muito utilizado, como tributação por presunção jurídica, por significar preço do minério em fase diversa. O estabelecimento de referidas bases de cálculo representa a utilização de presunções para fins de incidência da CFEM. Ora, o artigo 20, §1º da CF somente pode ser o resultado da exploração.

A base de cálculo da CFEM no consumo de produto mineral apresenta-se “presumida”, de acordo com “a receita calculada, considerado o preço corrente do bem mineral, ou de seu similar, no mercado local, regional, nacional ou internacional, conforme o caso, ou o preço de referência definido pela entidade reguladora do setor de mineração”. Igualmente no caso da base de cálculo empregada às exportações de produtos minerais para pessoas jurídicas vinculadas, ou domiciliadas em países de tributação favorecida.

CFEM sobre as exportações. Nas exportações de produtos minerais para pessoas jurídicas vinculadas ou domiciliadas em países com tributação favorecida, a base de cálculo será a receita calculada segundo o preço parâmetro definido pela Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, com fundamento no artigo 19-A da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e na legislação complementar, ou, na hipótese de inexistência do preço parâmetro, será considerado o preço de referência definido pela entidade reguladora do setor de mineração.

A base de cálculo presumida será o preço parâmetro de “preço de transferência” estabelecido na Lei 9.430/96. A adoção de bases de cálculo presumidas é medida excepcional, apenas justificada pela praticidade ou por controles de normas antielusivas especiais. A base de cálculo da CFEM está adstrita ao “resultado da exploração”, que pode e deve ser reconhecido como o “faturamento líquido” obtido pela exploração de recursos minerais.

Como veremos a seguir, “receita bruta” da venda do produto mineral não é o “resultado da exploração”. Parte dos questionamentos relativos ao preço de referência, ou preço parâmetro, abordados na CFEM-Consumo são pertinentes, também, para a CFEM-Exportação. A CFEM cinge-se à fase de exploração e não se pode converter em um adicional de IRPJ, como sugere a pretensão da União.

CFEM sobre o valor de arrematação. Na aquisição de produto mineral em hasta pública, a base de cálculo será o valor de arrematação. Pois bem, neste caso, nos moldes do IPI-Arrematação, o legislador instituiu nova materialidade para a CFEM. Com a arrematação, mais uma vez, não se adequa aos moldes constitucionais da materialidade da CFEM, como já antecipado, pois o artigo 20, §1º, da CF, não é equivalente do IPI e não se pode admitir sua aplicação fora dos limites da “exploração” minerária.

CFEM sobre a comercialização de rejeitos e estéreis. Em outro dispositivo legal, a MP 789/2017, artigo 1º, § 5º prescreve que “os rejeitos e estéreis decorrentes da exploração de áreas objeto de direitos minerários que possibilitem a lavra, na hipótese de comercialização, serão considerados como bem mineral para fins de recolhimento da CFEM”. Aqui, há que se considerar uma materialidade como desdobramento da CFEM-Venda, o que, naturalmente, não a invalida. Especialmente, acaso trate-se de um fato decorrente de uma venda, desde que sua quantificação represente o “resultado pela exploração do recurso mineral”, neste caso, rejeitos e estéreis.

Como se evidencia, a Medida Provisória 789, de 25 de julho de 2017 trouxe inconstitucional ampliação da materialidade da CFEM, ao prever que esta incidirá também sobre o consumo do bem mineral.

As alterações da cobrança da CFEM pretendidas na MP 789/2017 estão em evidente descompasso com a Constituição Federal. Primeiro, porque há ampliação indevida do critério material da CFEM firmemente estabelecido no artigo 20, §1º da CF. Segundo, porque a CFEM somente pode ser cobrada quando há exploração de recursos minerais. O consumo não é ato de exploração de recursos minerais, nem se equipara a este. E tampouco pode-se estender a CFEM ao ato de “industrialização”, por aproximar esta receita do IPI.

A Constituição de 1988 instituiu, pelo artigo 20, § 1º, duas modalidades remuneratórias devidas aos entes públicos (Estados, Distrito Federal, Municípios e órgãos da administração direta da União): a primeira, pela participação no resultado, e a segunda, na forma de compensação financeira. Ambas, em razão da exploração de (i) recursos minerais, (ii) recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica, e, (iii) de petróleo ou gás natural, nos termos do dispositivo constitucional abaixo transcrito:

Art. 20, § 1º – É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.”

No texto constitucional, a materialidade da CFEM está inteiramente conexa com a atividade de exploração de recursos minerais, ou melhor, à atividade de extração do recurso mineral de propriedade da União, o que afasta qualquer cabimento de incidência desta em etapas posteriores como o beneficiamento e a industrialização do produto mineral.

O critério material para cobrança da CFEM está conexo ao produto mineral, e não ao recurso mineral. O recurso mineral refere-se ao bem que se encontra na mina ou na jazida, já o produto mineral é o resultado da extração. Logo, o texto constitucional já identificou com precisão a base de cálculo da CFEM, qual seja, o resultado da exploração de recursos minerais. Por conseguinte, não há nenhum espaço para discricionariedade do Poder Legislativo, e muito menos do Poder Executivo, na demarcação dos elementos componentes do critério quantitativo da CFEM.

Caber esclarecer que nesse processo produtivo há quatro fases bem marcadas, sendo elas: (i) a extração, que compreende a fase de lavra do produto mineral, (ii) o beneficiamento, (iii) a transformação industrial e (iv) a comercialização. Ora, resta claro que os tributos que incidem sobre a industrialização ou comercialização do produto mineral e as despesas de transporte e seguro devem ser excluídas do faturamento líquido da CFEM.

É erro grave utilizar critérios de parametrização de bases de cálculo de tributos para determinar a base de cálculo da CFEM, que não se afirma como espécie tributária e a ela não se aplica o regime constitucional tributário. A compensação financeira possui regime constitucional próprio, que deve ser observado pelo legislador infraconstitucional, sob pena de flagrante descumprimento das normas que lhe conferem fundamento de validade.

A materialidade da CFEM está inteiramente conexa com a atividade de exploração, leia-se: extração ou lavra, sem qualquer destaque que autorize sua aplicação para alguma etapa prévia, como aquela da simples condição de “propriedade” dos bens pela União, ou futura, como a “industrialização”.

Demarca-se como atividade de exploração de recursos minerais a retirada de substâncias minerais da jazida, mina, salina ou outro depósito mineral para fins de aproveitamento econômico. Somente a esta etapa reduz-se a exploração. Portanto, somente a estes procedimentos deve incidir a compensação financeira.

Vejamos a comprovação desta erronia.

A MP 789/2017, ao modificar o artigo 6º, § 4º, da Lei 7.990/89, ampliou significativamente o conceito de “beneficiamento”, como forma equivalente de industrialização, in verbis:

II – beneficiamento – as operações que objetivem o tratamento do minério, tais como processos realizados por fragmentação, pulverização, classificação, concentração, separação magnética, flotação, homogeneização, aglomeração, aglutinação, briquetagem, nodulação, sinterização, pelotização, ativação, coqueificação, calcinação e desaguamento, além de secagem, desidratação, filtragem e levigação, ainda que exijam adição ou retirada de outras substâncias, ou não impliquem sua inclusão no campo de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI; e

A MP 789/2017 prescreve, por equiparação e ficção jurídica, que a pelotização, dentre outros processos, seria etapa inerente ao beneficiamento. Nada mais equivocado. A pelotização dá origem a “produto mineral” de uma industrialização, como resultado da transformação do minério de ferro. Logo, a pelotização não pode ensejar a incidência da CFEM, haja vista tratar-se de fase inerente à tributação do IPI. A CFEM somente alcança o resultado da exploração de recursos minerais, defeso lançar-se na sua base de cálculo custos agregados até o final da etapa de pelotização, como pretendido na MP 789/2017.

A CFEM não é tributo, logo, não se pode aplicar a esta “compensação financeira” o regime do IPI. A definição de “industrialização”, deveras, é matéria inerente ao ordenamento e que encontra, na Constituição, referência expressa do texto constitucional, e que se vê especificada no art. 46, parágrafo único do CTN. Portanto, a pelotização é processo industrial que não se confunde com beneficiamento (etapa da lavra) e implica a transformação do minério explorado em “produto mineral”, etapa que refoge aos limites da “exploração” e, consequentemente, deve ser excluída da materialidade de CFEM.

O artigo 6º da Lei 7.990/89 somente pode ser aplicado numa típica “interpretação conforme a Constituição”, ao prescrever o “faturamento líquido” como sendo aquele obtido após a última etapa do processo de beneficiamento adotado e antes de sua transformação industrial, em conformidade com o critério material do artigo 20, § 1º da CF, ou seja, o resultado da exploração de recursos minerais, logo, com a exclusão das despesas de transporte e de seguro de qualquer etapa anterior ou posterior.

A CFEM não pode incidir em processo relativo à etapa de industrialização do bem, quando na propriedade do particular, e não mais da União. O real motivo da existência da compensação financeira consiste na participação no resultado da exploração do bem de titularidade da União, e não como uma contraprestação pela exploração de bem do particular ou mesmo como espécie de “tributo”. Deve limitar-se aos elementos que representem a fase da extração do recurso mineral, uma vez que ao se transformar em produto mineral, o bem deixa de ser da titularidade da União para ser de titularidade do minerador, esse o verdadeiro marco limítrofe da base de cálculo da CFEM.

Assim, é de se concluir que tudo que exceder ou não for relativo à etapa de exploração do mineral in natura não poderá compor a base de cálculo da CFEM, em observância aos limites materiais do artigo 20, § 1º da CF. Destarte, desvela-se como inconstitucional qualquer adição de elemento colhido em momento diverso da fase de exploração do recurso mineral, como a chamada “pelotização”, dentre tantas outras que equivalem à industrialização, ou mesmo etapas de comercialização, a tentar confundir a CFEM com tributos, como o IPI, o ICMS, o IRPJ ou as contribuições PIS/Cofins.

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