Tribuna da Defensoria

Preclusão processual prevalece sobre independência funcional do agente político

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21 de novembro de 2017, 8h55

Situação prática: em ação penal, o membro do Ministério Público opina, nas suas alegações finais, pela absolvição, com o que concorda o magistrado, julgando improcedente a pretensão punitiva. Publicada a sentença, intima-se o Ministério Público, que, por meio de outro promotor, interpõe recurso de apelação. Hipótese rara? Nem tanto….

O quadro descrito se mostra, na atuação prática, bastante comum, razão pela qual, aliás, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão, no Recurso Extraordinário 590.908, por maioria[1]. De lá para cá, porém, o debate na corte máxima da República estagnou.

As contradições cotidianas, no entanto, continuam a decorrer. Outro exemplo? Oferece o Ministério Público, por meio do promotor A, a suspensão condicional do processo. Aceita pelo suposto autor do fato, o promotor B, discordando do seu colega, recorre, ou busca modificar as condições.

Tudo isso em nome da independência funcional, garantia dos membros das carreiras das instituições constitucionais essenciais à justiça. A exemplo dos promotores de justiça, os defensores públicos têm assegurada a possibilidade de atuar livremente, sem se submeterem a pressões externas. Agem, para usar a expressão do ministro Marco Aurélio, “segundo ciência e consciência” próprias.

No entanto, do outro lado da balança (ou do ringue da ponderação) está a segurança jurídica, valor dos mais centrais do ordenamento, consubstanciada na preclusão. Esta, no dizer de Dinamarco, é “a perda da faculdade processual imposta pela lei em determinados casos”[2], elemento absolutamente crucial para garantir a noção de processo como uma marcha para a frente.

Evidentemente, no atual regramento cooperativo, o juiz não deve conduzir a relação processual como um jóquei guia seu cavalo de corrida, a acelerando a todo custo, sendo bastante razoável que invista tempo dialogando com as partes, de modo a entender e superar eventuais empecilhos existentes para o atingimento da questão de fundo que propiciou o litígio. No entanto, trotando em maior ou menor ritmo, o cavalo só andará para a frente — não há espaço para marcha à ré.

Também assim na relação processual, essencialmente dinâmica: é possível pausar, designando, por exemplo, uma audiência especial apenas para que se busque um acordo, mas, salvo o reconhecimento de nulidade insanável de algum ato, não existe replay ou rewind. O que passou passou.

A essa impossibilidade de retrocesso, portanto, dá-se o nome de preclusão, que pode ser de várias espécies. Aqui, interessa sua vertente lógica, quando se dá “em razão da incompatibilidade entre determinada faculdade, ou seu exercício, com uma conduta já posta em prática pela parte”[3]. Em outras palavras: sob pena de termos um processo bipolar, a parte não pode se contradizer.

Retomada esse basilar conceito da Teoria Geral do Processo, é imperioso lembrar que o Ministério Público é uno, bem como a Defensoria Pública. Estamos diante do princípio da unidade. Não há divisão interna de cada uma das instituições autônomas (isto é, dentro de cada Ministério Público ou Defensoria Pública estaduais ou do MPF e da DPU) e, quando figuram em juízo em nome próprio (como o faz o Parquet no processo penal, como autor), devem se comportar de maneira condizente.

Tem-se reconhecido, por essa razão, a fungibilidade dos membros das carreiras mencionadas, ressalvando a sua não submissão ao entendimento eleito pelo anterior colega, em função da sua independência funcional[4]. Esse dogma, contudo, merece uma mitigação.

Esses dois elementos — a preclusão e o princípio da unidade (e seu corolário, o princípio da indivisibilidade) — demandam leitura à luz da segurança jurídica da parte contrária. É insustentável que, supostamente porque o munus de fiscal da lei está acima de qualquer subordinação a manifestação processual pretérita, se fira de morte a garantia constitucional da certeza acerca de seu patrimônio jurídico.

De igual maneira, soa absurdo que, pelo simples fato de se manifestar agente político, se afaste, sem cerimônias, a expectativa da parte contrária. É decididamente anti-isonômico que uma parte processual assistida por advogado deva ser prudente ao se posicionar no jogo processual e outra, assistida por defensor público, possa agir levianamente, bastando que outro defensor invoque, posteriormente, sua independência funcional.

O resultado da ponderação deve ficar particularmente claro no processo penal, em se tratando do Ministério Público, uma vez que (i) figura a instituição, una, como autora e que (ii) os direitos tutelados são especialmente delicados, afetando o réu em variadas frentes sociais (ao aceitar a transação penal ou a suspensão do processo, o sujeito confia que, cumprindo as condições, a questão estará encerrada, retomando o curso regular de sua vida).

No atual cenário de valorização dos precedentes judiciais, em que, acertadamente, se exige a construção da noção de um Judiciário uno, respeitador dos entendimentos por ele próprio fixados, urge elevar o senso de responsabilidade dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, instituições chamadas a pacificar seus posicionamentos internamente, e a atuar, em juízo, de maneira leal e coesa — o que passa, necessariamente, pela observância das anteriores manifestações, no mesmo processo, de outros membros da mesma carreira. A preclusão processual, enquanto garantia da outra parte, prevalece sobre a independência funcional do agente político.


[1] Considerando a situação excepcionalíssima, a ponto de afastar a repercussão geral da discussão, votaram os Ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do novo processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 191.

[3] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do novo processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 192.

[4] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 330-331.

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