Paradoxo da Corte

Nulidade das decisões judiciais por defeito de motivação

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

21 de novembro de 2017, 7h00

O novo Código de Processo Civil contém original e importante regra no parágrafo 1º do artigo 489, que arrola determinadas situações — frequentes, diga-se de passagem — nas quais a própria lei se adianta, antevendo ofensa ao disposto no inciso II da citada regra, que impõe fundamentação adequada a todas as decisões judiciais. Preocupado ainda uma vez com o mandamento constitucional do dever de motivação, o novel diploma, de forma até pedagógica, estabelece os vícios mais comuns que comprometem a higidez do ato decisório, “seja ele interlocutório, sentença ou acórdão”.

Na verdade, as determinações legais acerca do dever de motivação, inseridas no diploma processual em vigor, reforçam a ideia de que a moderna concepção de “processo justo” não compadece qualquer resquício de discricionariedade judicial, até porque, longe de ser simplesmente “la bouche de la loi”, o juiz proativo de época moderna deve estar comprometido e envidar esforço, tanto quanto possível, para a observância, assegurada aos litigantes, da garantia do devido processo legal.

Não atende ao requisito de motivação suficiente o pronunciamento judicial que simplesmente reproduz texto legal, deixando de interpretá-lo à luz da controvérsia que se apresenta ao julgador (artigo 489, parágrafo 1º, inciso I). O processo hermenêutico de subsunção é imprescindível para que, de um lado, possa ser adequadamente interpretada a convicção do julgador e, ainda, de outro, ser feito o controle crítico do ato decisório.

Considerando, pois, a previsão normativa ora focada, é ainda válida — apenas para esse fim — lançar mão da ideia de que, sob o ponto de vista formal, a sentença pode ser equiparada a um silogismo, sendo a premissa maior a lei; a menor, o contexto fático-jurídico; e, por fim, a conclusão explicitada no dispositivo.

Mas não é só. O artigo 489, parágrafo 1º, inciso II, nas hipóteses de incidência de conceitos indeterminados — e, por certo, de cláusulas gerais e princípios jurídicos —, exige a exposição de raciocínio hermenêutico-axiológico mais pormenorizado, embasado muitas vezes pelo recurso à ponderação, para justificar a escolha, dentre as opções possíveis (lembre-se do juiz Hércules na problemática alvitrada por Dworkin), daquela mais adequada para a situação concreta.

Assim, por exemplo, quando o juiz se nortear pelo princípio da proporcionalidade, tem ele o mister de explicitar, tanto quanto possível de forma objetiva, a razão pela qual aquele fundamento, nas fronteiras do caso concreto, determina a procedência ou improcedência do pedido.

No mesmo sentido, já agora a teor do artigo 489, parágrafo 1º, inciso III, ao juiz é vedado valer-se de pseudofundamentação, vale dizer, “fundamentação artificial”, aparentemente padronizada, apta a justificar qualquer ato decisório.

Se de fato essa norma legal vingar, desde que observada com rigor, verifica-se facilmente que inúmeros provimentos judiciais, frequentes em nossa atual praxe judiciária, estarão eivados de inequívoca nulidade.

O paradigma mais típico desse criticável modelo de decisão descortina-se aquele que, há muitos anos, inadmite recursos especial ou extraordinário.

Em regra, tal ato decisório monocrático, de todo abstrato e lacunoso, emerge totalmente divorciado dos autos, fazendo até crer que, a rigor, não foram examinadas as razões deduzidas na respectiva impugnação.

No que toca, por exemplo, à interposição de recurso especial, com fundamento na violação à disposição de lei federal (artigo 105, inciso III, letra a, da Constituição Federal), afirmar, simplesmente, em inúmeras decisões padronizadas, que se “observa não ter sido demonstrada sua ocorrência, eis que as exigências legais na solução das questões de fato e de direito da lide foram atendidas pelo acórdão ao declinar as premissas nas quais assentada a decisão”, não é motivar; é, na verdade, apenas dissimular fundamentação.

Deparando-se com decisão idêntica a essa, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em expressivo pronunciamento, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.264.053, proveniente do Tribunal de Justiça paulista, teve oportunidade de decidir que: “1. A matéria agitada no recurso especial, cuja caminhada foi obstada, merece ser reapreciada no âmbito desta Corte de Justiça. Diante disso, necessário se faz determinar a subida do recurso especial, sem prejuízo do juízo de admissibilidade definitivo que será oportunamente realizado neste Tribunal. 2. Ademais, o despacho de admissibilidade negativo, exercido pelo Tribunal de origem, é extremamente genérico. Este fato, por si só, prejudica o exercício do direito de defesa da parte, que fica impossibilitada de compreender quais os pontos específicos que obstaram a subida do apelo”. De aduzir-se que, no corpo desse importantíssimo aresto, de relatoria do ministro Humberto Martins, lê-se que: “Por fim, não custa lembrar que quando o Tribunal de origem afirma que os fundamentos do recurso especial não são suficientes para infirmar as conclusões do acórdão, ele acaba por adentrar na questão de fundo e a exercer juízo de valor que compete a esta Corte Superior”.

Igualmente, serão ainda “reprovados” alguns atos decisórios do Superior Tribunal de Justiça, visto que, à guisa de fundamentação, reportam-se ou simplesmente transcrevem a ementa de precedentes.

Vigente o novo código, estão, também, acoimadas de inarredável nulidade decisões que forem lançadas com a seguinte matriz: “Trata-se de recurso especial no qual se alega ofensa a dispositivos de lei federal e dissídio jurisprudencial. O recurso não reúne condições de admissibilidade. Quanto à alegada vulneração aos dispositivos arrolados, observe-se não ter sido demonstrada sua ocorrência, eis que as exigências legais na solução das questões de fato e de direito da lide foram atendidas pelo acórdão ao declinar as premissas nas quais assentada a decisão. Ademais, o acórdão, ao decidir da forma impugnada, assim o fez em decorrência de convicção formada pela Turma Julgadora diante das provas e das circunstâncias fáticas próprias do processo sub judice, sendo certo, por esse prisma, aterem-se as razões do recurso a uma perspectiva de reexame desses elementos. A esse objetivo, todavia, não se presta o reclamo, a teor do disposto na súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça, suficiente para obstar o seguimento do recurso, quer pela alínea a, quer pela alínea c do permissivo constitucional. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso especial”.

Simplesmente incrível: o que o permissivo da alínea "c" tem a ver com o enunciado da Súmula 7 do STJ?

Tenha-se, outrossim, presente que a primeira parte do artigo 141 do Código de Processo Civil preceitua que: “O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes”, ou seja, terá de ser enfrentada toda a argumentação, de direito e de fato, expendida pelas partes.

Caso contrário, vale dizer, se a sentença deixar de considerar alguma questão, que potencialmente poderia ensejar diferente desfecho do processo, não será suficiente a respectiva ratio decidendi, porque conterá vício que inquina de nulidade o ato decisório (artigo 489, parágrafo 1º, inciso IV).

Expressivo precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 47.169-MG, cujo voto condutor é da lavra do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, assentou ser “nula a sentença que omite questão central posta na contestação”.

Assim, para que a motivação atenda às exigências legais, deverá abordar toda a matéria suscitada pelos litigantes, desde que juridicamente relevante para justificar a decisão. É evidente que, pela perspectiva lógica, não será necessário enfrentar os argumentos cuja apreciação estiver prejudicada pelo acolhimento de determinada preliminar. Desse modo, se, por exemplo, for acolhida a arguição de prescrição, o juiz não estará obrigado a examinar e decidir outras questões controvertidas que foram deduzidas pelas partes. Nessa hipótese, a sentença não poderá ser considerada viciada.

A hipótese do inciso V reitera o que já está, de certo modo, previsto no precedente artigo 489, parágrafo 1º, inciso III. Coíbe-se aqui a mera referência a súmula ou precedente judicial no corpo da sentença, sem que o juiz demonstre, de forma cabal, a sua pertinência com o objeto da controvérsia.

Em perfeita simetria com essa regra, dispõe o parágrafo 1º do artigo 927 que, na dinâmica da observância das decisões arroladas em seus respectivos incisos, os juízes e tribunais deverão considerar as regras dos artigos 10 e 489, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, isto é, ressaltar que a súmula ou precedente invocado se identifica com o cerne da tese debatida no processo.

Daí porque o juiz ou tribunal não poderá fundamentar o seu respectivo decisum baseando-se exclusivamente em precedentes pronunciamentos pretorianos, sem qualquer argumentação adicional, deixando de revelar fundamentação própria, conexa com o objeto do processo sob julgamento.

Por fim, nota-se que o artigo 489, parágrafo 1º, inciso VI, é vocacionado à proteção da confiança, quando impede que o juiz, ao proferir a sentença, despreze súmula ou precedente, colacionado como reforço argumentativo por uma das partes, não tomando o cuidado de explicar que o julgado paradigma não se aplica ao caso concreto, ou mesmo que já se encontra superado pela obsolescência.

Entendo que, por força do importante aforismo, iura novit curia, mesmo que a tese jurisprudencial, embora relevante, não seja invocada pela parte interessada, a decisão desponta eivada de nulidade, se o juiz desprezá-la de forma injustificada.

Colocando de lado a polêmica acerca da natureza ontológica dos precedentes judiciais, quanto a ser ou não fonte primária de direito, Robert Alexy, em obra específica sobre argumentação jurídica, anota que a primordial justificação da utilização pragmática dos precedentes é ditada pelo "princípio da universalidade" ou da justiça formal, que impõe um tratamento isonômico para situações iguais.

A conciliação entre justiça e universalidade — segundo o referido jurista — pode ser alcançada, em regra, por meio da observância dos precedentes, sem embargo de admitir-se o abandono de uma determinada orientação pretoriana, desde que sobrevenham justificadas razões. E, ocorrendo essa hipótese, o ônus da argumentação deve ser imposto ao órgão judicial que pretenda afastar-se do precedente. Alexy entende que, nesse particular, o princípio da inércia de Perelman é adequado, com sua exigência de que uma decisão só pode ser alterada se razões suficientes puderem ser aduzidas para tanto.

Ao preservar a estabilidade, aplicando o precedente nas situações sucessivas análogas, os tribunais contribuem, a um só tempo, para infundir a certeza jurídica e para reiterar a proteção da confiança na escolha do caminho trilhado pela decisão judicial.

Em conclusão, Alexy formula duas regras gerais do discurso jurídico para a utilização da jurisprudência dominante, a saber: a) quando vier invocado um precedente a favor ou contra uma decisão, ele deve, em princípio, ser seguido; e b) quem pretender se afastar de um precedente tem o ônus da justificação.

Conclui-se, pois, que, nos termos do analisado inciso VI do parágrafo 1º do artigo 489, configurando-se a hipótese aí prevista, o tribunal tem o ônus argumentativo para justificar que a súmula ou precedente invocado pela parte não tem incidência no caso concreto.

Haverá ainda nulidade decorrente de motivação aliunde ou per relationem. Ressalte-se que essa hipótese continua sem previsão legal expressa, embora facilmente inferida do sistema adotado pelo código em vigor.

Os motivos do julgamento devem ser declinados de modo explícito, uma vez que constitui função própria e exclusiva do juiz da causa a de interpretar a lei, aplicá-la aos fatos da causa e, em conclusão, proferir a decisão.

Assim, deixará de cumprir o seu dever funcional o julgador que se limitar a decidir, sem revelar como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto, ou, mesmo, a fazer simples remissão a fundamentos expendidos em razões, pareceres, decisões, ou seja, em atos processuais produzidos em outro processo (motivação aliunde).

Observo que o novo diploma brasileiro, a esse respeito, perdeu a oportunidade de repudiar o disparatado permissivo, de motivação per relationem, constante do artigo 252 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, assim redigido: “Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando, suficientemente motivada, houver de mantê-la”.

Há, nessa indesejável técnica, manifesta ofensa à garantia consagrada no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, embora (de certo modo) abonada pelo Superior Tribunal de Justiça (cf., e. g., Corte Especial, Embargos de Divergência 1.021.851-SP, rel. min. Laurita Vaz, m. v., DJe 4/10/2012).

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