Opinião

Modelo do Tribunal do Júri pode cercear ampla defesa

Autor

  • Paulo Tamer Junior

    é advogado criminal em São Paulo e Barcelona especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e especialista em Tribunal do Júri.

19 de novembro de 2017, 10h11

A vivência da advocacia criminal traz ao operador percepções que, por óbvio, não consegue vislumbrar quando da leitura teórica e do exercício de abstração. Neste contexto, mesmo os escritores que se destinam a tornar a prática do processo penal palatável aos recém ingressos neste nobre ofício não conseguem prever todas as particulares situações passíveis de ocorrência na prática advocatícia.

Assim, nesta breve reflexão, pensemos acerca de possível entrevero surgido entre magistrado e advogado no contexto do Tribunal Popular.

Sabe-se que neste cenário a atuação do juiz, bem como a do advogado, é absolutamente diferente daquela quando em julgamento de crimes comuns, tais como tráfico de entorpecentes, roubo, furto e etc, os quais são julgados em varas comuns, sem a presença de jurados. Logo, necessária a explicação da atuação defensiva e a desmistificação do poder decisório do magistrado.

Deve-se compreender o que está disposto nos mais simples manuais de processo penal ou nos mais comuns livros a respeito da instituição do Tribunal do Júri: de que nos ritos deste tribunal a defesa, ao invés de ampla, deve ser plena.

Pois bem, se compreendermos ser a ampla defesa – conectada ao contraditório – subdividida em autodefesa (possibilidade de o réu defender a si próprio) e defesa técnica (ser o réu necessariamente defendido por profissional habilitado e qualificado para tanto), devemos necessariamente compreender todas as facetas desta última que devem ser atendidas para que se concretize o mandamus constitucional supracitado.

Portanto, são elementos da defesa técnica: I. Direito à livre escolha do defensor técnico; II. Direito à comunicação pessoal, prévia e reservada com o defensor técnico; III. Direito ao tempo e aos meios necessários para a preparação da defesa técnica; IV. Direito à inviolabilidade da pessoa, dos documentos e do local de trabalho do defensor técnico; V. Direito à última palavra; VI. Defesa técnica efetiva.

A partir deste desmembramento da práxis do princípio da ampla defesa, pode-se, através de exercício de abstração, se imaginar que para que se alcance este mesmo escopo em cenário onde a defesa deve ser plena, ao invés de ampla, deve-se exponenciar aquelas possibilidades concedidas constitucionalmente aos réus e defensores em processo penal no rito do Tribunal do Povo.

Assim deve ser, pois, diferentemente dos julgamentos de crimes comuns, está-se diante de juízes cujo voto é soberano, não podendo ser, de forma alguma, reformado por tribunais superiores. Ademais, não podem os jurados sanar qualquer ineficiência defensiva como pode o juiz de direito fazê-lo em decisões tomadas em julgamentos ordinários.

Portanto, não está o defensor, quando em plenário e intencionado a buscar a absolvição de seu patrocinado, limitado as possíveis teses absolutórias, tais como as excludentes de ilicitude ou negativa de autoria. Ao contrário disto, pode sustentar sua defesa com base na condição social do réu, em questões filosóficas, ideológicas e, inclusive, políticas. Assim, todas estas teses serão apreciadas pelo Conselho de Sentença que as dará guarida, ou não, a partir dos votos SIM e NÃO.

Analisando, agora, o papel do juiz-presidente, posição ocupada por juiz de direito no Tribunal Popular, vê-se que, ao contrário do muito dito por vozes leigas, possui a toga imenso poder decisório, afinal compete ao magistrado decidir acerca de toda e qualquer questão de direito surgida, cabendo aos jurados julgar apenas a respeito dos fatos.

Ora, se possui o magistrado o poder de decidir acerca de questões direito, pode eventualmente decidir quais provas serão produzidas em plenário, quais documentos podem ser apresentados ao Conselho de Sentença e demais questões desta natureza. Assim, tamanho é o poder do magistrado que pode alterar vertiginosamente a concepção dos jurados acerca dos fatos que lhe são apresentados, visto poder fazer, em alguns casos, juízo de seleção do que será apresentado aos jurados.

Pela proximidade entre Ministério Público e Poder Judiciário, por muitas vezes, o juiz acaba por favorecer o representante da acusação, seja em sua inquirição ou, de forma mais grave, dar-lhe mais crédito diante dos jurados quando em comparação com o defensor.

É rotineiro aos tribunos defensivos passar por situações em que o juiz-presidente os trata com evidente respeito reduzido, quando comparado com o tratamento dispensado ao representante do órgão acusador, também agente estatal, seja indeferindo exacerbadamente o conteúdo de suas perguntas, seja realizando interrogatório e oitiva de testemunhas com postura claramente acusatória.

Entretanto, a reflexão sobre a matéria deve ser realizada não em razão do respeito que deve ser conferido aos defensores, mas principalmente pela possibilidade do viés psicológico do juiz-presidente interferir na prova a ser produzida ou na prova a ser apresentada, o que, por via óbvia, prejudicará o réu e suas garantias, incorrendo assim no risco do encarceramento de indivíduos inocentes.

Em que pese compreendamos ser de imensa gravidade posturas como estas, compreendemos, às vezes, ser de difícil constatação o estado de espírito do juiz-presidente, sendo as referidas condutas abrigadas pelo argumento do poder decisório e da manutenção da higidez processual, por isso dificilmente reconhecidas pelo órgão ad quem como causas de nulidade.

Todavia, em alguns casos, especialmente naqueles em que o juiz-presidente expressa juízo de valor acerca da postura ou do próprio caráter do defensor, o cerceamento de defesa mostra-se evidente, especialmente através da compreensão do mecanismo de trabalho daqueles que advogam teses perante o Tribunal do Júri (acusação e defesa).

Ora, mas como a valoração do caráter dos atores processuais pelo juiz-presidente pode cercear a força defensiva?

Aristóteles, em sua famosa obra A Retórica, explica com clareza: “Há três tipos de persuasão supridos pela palavra falada. O primeiro depende do caráter pessoal do orador; o segundo, de levar o auditório a uma certa disposição de espírito; e o terceiro, do próprio discurso no que diz respeito ao que demonstra ou parece demonstrar. A persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do orador, quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito. (…) Não é verdadeiro, como supõem alguns autores em seus tratados sobre retórica, que a honestidade pessoal revelada pelo orador em nada contribui para seu poder de persuasão; longe disso, pode-se considerar seu caráter, por assim dizer, o mais eficiente meio de persuasão de que dispõe”.

Importante repisar que a condição dos componentes do Conselho de Sentença, juridicamente leigos, lhes leva incondicionalmente a atribuir ao magistrado figura de autoridade representativa do justo e do correto, sendo inegável que a postura deste pode levar à parcialidade daqueles.

Logo, quando o juiz-presidente, ocupando diante dos jurados, a posição que ocupa, conspurca o caráter pessoal do orador diante do Conselho de Sentença, automaticamente reduz sua principal arma: a persuasão.

Contudo, a redução mostra-se ainda mais grave quando realizada em desfavor da defesa. Não assim o dizemos por atuarmos na bancada defensiva, mas porque, nos termos da Constituição Federal de 1988, apenas à defesa é garantida a plenitude, visto que, do lado oposto encontra-se a máquina do estado com possibilidades exponencialmente maiores do que o hipossuficiente réu.

Assim sendo, reduzida a capacidade defensiva e dando inconsciente viés condenatório aos jurados, o juiz-presidente inviabiliza, inclusive, a continuação do julgamento, visto que se neste cenário a defesa não consegue ser ampla, muito menos plena será. Portanto, acaba o magistrado por impedir que aquele digno tribunal alcance garantias constitucionais que lhe são asseguradas, dentre elas a plenitude da defesa.

Autores

  • Brave

    Advogado Criminalista, com principal foco em Tribunal do Júri. Bacharel em Direito pela Faculdade do Pará. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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