Opinião

Modulação substitui com vantagens a Súmula 343 do Supremo

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18 de novembro de 2017, 5h43

Segundo a Súmula 343 do STF, já por nós ampla e insistentemente criticada, não é cabível ação rescisória com base no artigo 966, V, do CPC, quando, à época da prolação da decisão que se pretende rescindir, a jurisprudência era controvertida.

As súmulas 343 e 400, a nosso ver, são aparentadas, e ambas ofendem de modo inadmissível os princípios da igualdade e da legalidade.

Vejamos o porquê: estabelece o artigo 5º, II, da CF: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Trata-se, como se sabe, da formulação, adotada pelo legislador constituinte brasileiro, para o princípio da legalidade.

O princípio da isonomia se encontra no caput do mesmo artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)”.

Os princípios acima mencionados foram transcritos em ordem diferente daquela em que se encontram tratados no texto constitucional propositadamente, porque é esta a ordem em que se compuseram os argumentos que a seguir se exporão.

Observe-se que na Constituição vigente se demonstrou extrema preocupação com a igualdade. Basta dizer que no caput do artigo 5º o constituinte ainda inclui, entre os direitos invioláveis, o próprio direito à igualdade[1].

O princípio da legalidade se consubstancia na regra segundo a qual ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer a não ser em função de previsão legal.

O princípio da isonomia se constitui na ideia de que todos são iguais perante a lei, o que significa que a lei deve tratar a todos de modo uniforme e que correlatamente as decisões dos tribunais não podem aplicar a mesma lei de forma diferente a casos absolutamente idênticos, num mesmo momento histórico. Por que todos são iguais, na verdade, perante o Direito.

Diz-se que se realizar concretamente o princípio da igualdade significa se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Na verdade, a principal função do princípio da igualdade é a de evitar “previsões discriminatórias injustificadas”. Assim, discriminar o consumidor ou o trabalhador, para protegê-lo, não é desrespeitar regra que diz que ambos devem receber tratamento isonômico, já que estão sendo “favorecidos” porque são, presumivelmente, a parte “mais fraca”.

É digna de nota a preocupação do legislador de 2015, expressa no novo CPC, com a disciplina dos regimes de julgamento de ações idênticas: criou-se, por exemplo, o IRDR e se aprimorou o regime, já existente, de julgamento de recursos repetitivos (especial e extraordinário).

Na verdade, o princípio da isonomia é aquele segundo o qual a lei (= o direito) deve atingir a todos, e, quando isso não ocorrer, a discriminação não pode ser feita arbitrariamente, sendo vantajosa ou desvantajosa para os atingidos.

Deve haver, portanto, possibilidade de se justificar racionalmente o porquê da discriminação. Deve existir uma correlação racional entre os discriminados, tipo de discriminação e a razão de esta ter sido feita.

Aqui cabe formular novamente a questão: que sentido tratar diferentemente alguém com a regra da inatacabilidade da decisão, pela via rescisória, que foi atingido por um entendimento a respeito de certa norma jurídica, que restou alterado, única e exclusivamente porque à época em que foi prolatada a decisão haveria, a respeito do entendimento da norma, “jurisprudência conflitante? A nosso ver, esse critério não justifica a distinção feita pela súmula.

A vinculação da constatação da existência da correlação racional entre o fator escolhido pela norma como discriminante e a própria discriminação deve ser feita segundo valores, notadamente aqueles sob forma de princípios constitucionais. Por isso é que é constitucional a reserva de vagas para negros em universidades, mas é inconstitucional a existência de um clube recreativo só para negros.

Assim, admitir que sobreviva decisão que consagrou interpretação hoje considerada, pacificamente, incorreta pelo Judiciário é prestigiar o acaso. Explicamos: isso significa dizer que serão beneficiados com a decisão que lhes favorece, ainda que posteriormente seja considerada incorreta, aqueles que tiveram a “sorte” de participar de determinada ação, no polo passivo ou ativo, num momento em que havia, ainda, divergência nos tribunais quanto a qual seria a interpretação acertada da lei, a solução correta a ser dada àquele caso.

Dizer que: a lei é uma só (necessariamente vocacionada para comportar um só e único entendimento, no mesmo momento histórico e nunca mais de um entendimento simultaneamente válido), mas as decisões podem ser diferentes, porque os tribunais podem decidir diferentemente, não tem sentido. Seria essa circunstância imune ao controle da parte pela via da ação rescisória?! Pode haver duas ou mais decisões, completamente diferentes, a respeito do mesmo (mesmíssimo!!) texto, aplicáveis a casos concretos idênticos, ambas consideradas aceitáveis pelo sistema, e ainda que já se tenha estabelecido qual seria a decisão correta?

A Súmula 343 do STF é parente da Súmula 400 do mesmo tribunal. A Súmula 400 diz que não cabe ao STF corrigir interpretações dadas ao direito objetivo pelos tribunais inferiores, se essas forem razoáveis. Trata-se de súmula que, pura e simplesmente, autorizava o STF a abrir mão da sua função: dizer a última palavra a respeito da Constituição Federal e do Direito (antes da Constituição Federal de 1988).

A Súmula 343 deve ter o mesmo destino que acabou por ter a Súmula 400, hoje muito mais raramente invocada pelos membros dos tribunais superiores.

Em conformidade com a linha de argumentação até agora desenvolvida, é evidente que, para nós, a regra do não cabimento da rescisória em função do critério trazido pela Súmula 343 não tem sentido.

Diferentemente pode ocorrer se se decidir pela preservação da decisão que se pretende rescindir em função de outras razões, de outros critérios, que afastem a necessidade de respeito à isonomia, mas por outros fundamentos diferentes da mera circunstância de a jurisprudência ser desencontrada na época da prolação da decisão que se pretende rescindir. Esses outros valores ligam-se ao princípio da confiança e à necessidade de que o direito proporcione previsibilidade.

Compreende-se a utilização dos resultados gerados pela aplicação da Súmula 343 em certas hipóteses, como a retratada no RExtr. 590.809/RS – 2014[2]. Trata-se de extenso acórdão em que se pretendeu rescindir acórdão que acompanhou jurisprudência do próprio STF (portanto, pauta de conduta confiável, à época).

Nesse acórdão, abordam-se valores que apontariam para o não cabimento da ação rescisória, mencionando-se, para isso, a Súmula 343. Não foram, entretanto, os pressupostos de incidência da Súmula 343 que levaram à sua aplicação! Ao contrário, já que aqui se trata de decisão proferida com base em entendimento pacificado do STF, que, depois, se quis rescindir. Ou seja, a jurisprudência não era controvertida à época em que foi proferida a decisão.

Assim, caso não se quisesse realmente admitir a rescisória (como se fez no acórdão ora citado), mais acertado teria sido fazer-se a modulação dos efeitos da mudança e não o recurso à vetusta e infeliz Súmula 343, mesmo antes de haver previsão expressa desse instituto no CPC de 2015.

2. Alteração da jurisprudência
O que significa a mudança da jurisprudência? O que significa a alteração do entendimento a respeito do direito posto?

Não nos parece, como já afirmamos, que a essa situação se deva dar, exatamente, o mesmo tratamento que se dá à alteração da lei, afirmando-se que a alteração da jurisprudência, pura e simplesmente, nenhum efeito tem sobre as situações que foram decididas anteriormente.

A razão de ser de o sistema permitir a oscilação da jurisprudência, ou seja, permitir que haja decisões diferentes, de tribunais diferentes, e que os próprios tribunais alterem posição que já haviam firmado, só pode ser dar chance para o aprimoramento do sistema. A mudança da jurisprudência só se pode justificar se for entendida como um avanço, como uma “melhora”. Afinal, uma das duas (ou das três) posições deve ser tida como correta, e, para que se justifique a possibilidade existente no sistema no sentido de os tribunais alterarem suas posições, só tem sentido considerar-se correta a última posição. Pois o tribunal muda seu entendimento “até acertar”.

Portanto, sempre pensamos que aqueles que foram atingidos por decisão judicial proferida em certo período de tempo em que o entendimento jurisprudencial era X podem ter sua situação alterada, pela via da ação rescisória, quando esse entendimento (a respeito da mesma regra posta) tenha-se alterado para Y. Por que se pressupõe que X é o entendimento correto.

Quando a lei muda, quer-se que certas situações, às quais a lei diz respeito, sejam resolvidas diferentemente. Mas quando se altera a interpretação que se deva a certo texto de lei, como, por exemplo, o que se pode dizer é que se terá, finalmente, “acertado”.

Lei mal interpretada é lei ofendida, não cumprida, desrespeitada. Por isso é que sustentamos, em casos como esse, ser possível o manejo da ação rescisória, com base no artigo 966, V do CPC.

Admitir, como regra geral, a não rescindibilidade das decisões tidas por equivocadas pela nova posição firmada por um tribunal superior, porque há excessivas oscilações, seria cometer um erro para corrigir outro.

Nossa posição não significa, em absoluto, que as decisões transitadas em julgado que se tenham baseado em orientação diferente da atual percam automaticamente sua validade. Como dissemos antes, nascem casos que, a nosso ver, são de rescindibilidade.

Nem sempre, todavia. Como se verá subsequentemente, casos pode haver em que outros valores, tais como os protegidos pelo princípio da confiança e a necessidade de que o direito não surpreenda as partes, proporcionando previsibilidade, recomendem seja mantida a decisão proferida à luz do entendimento jurisprudencial superado. É o de que trataremos abaixo.

3. Preservação de outros valores
Em alguns casos, todavia, pode parecer aos tribunais mais correto preservar a decisão rescindenda, em nome de outros valores.

Para preservar a situação daqueles que foram afetados por decisão com base em posição jurisprudencial já superada, hoje a lei traz a solução da modulação.

Trata-se de instituto que se traduz, como se verá com mais vagar no subtítulo 4, na possibilidade de os tribunais decidirem expressamente, quando alteram a orientação antes seguida, a respeito de aspectos temporais, territoriais etc. ligados à “eficácia” da decisão. Com isso quer-se dizer que os tribunais podem, por exemplo, dizer que só vão decidir com base no novo entendimento a partir do ano seguinte, ou a partir daquele momento etc.

Se se quer, realmente, prestigiar o princípio da confiança e da segurança jurídica, a modulação é instrumento que se presta a fazê-lo de forma extremamente satisfativa.

Explicamos: se os tribunais entendem que há razões para preservar as decisões, transitadas em julgado, que foram tomadas à luz da posição que anteriormente era considerada a correta, podem, com base na modulação, não admitir a ação rescisória.

Mas não é só: podem (devem) passar a decidir com base no novo entendimento, agora considerado acertado, apenas os processos derivados de fatos que ocorreram já à luz do novo entendimento.

Assim, se evita o indesejável efeito retroativo da mudança da jurisprudência, nos casos em que haja valores que recomendem que a situação anterior seja mantida.

Explicamos: se A deixa de recolher certo tributo, porque o STF entende que o tal tributo não incide na atividade que A realiza, e, de repente, esse mesmo tribunal passa a entender que o tal tributo incide, à luz do mesmo texto de lei, deve usar este novo entendimento apenas para decidir processos oriundos de casos fáticos posteriores à alteração de posição. Caso contrário, A será julgado com base num padrão normativo que não existia quando praticou sua conduta: praticou sua conduta em conformidade com o Direito.

Hoje se reconhece, abertamente, que o Judiciário exerce função normativa. Portanto, deve haver regras de Direito intertemporal para alterações de posição dos tribunais, principalmente, superiores. Essas regras podem e devem ser construídas a partir do instituto da modulação.

A modulação não pode servir única e exclusivamente para evitar ações rescisórias. É instituto muito mais eficiente do que a Súmula 343 e deve preservar a situação não só daquele que já foi afetado por decisão judicial transitada em julgado, com base em orientação jurisprudencial superada, mas também aquele que agiu com base naquilo que, à época, era o direito: a lei, interpretada pelos tribunais superiores, à luz da doutrina.

Voltando ao exemplo: se A não recolheu certo tributo à luz da orientação pacificada à época, e, repentinamente, a jurisprudência se altera, muito provavelmente o Fisco começará a cobrar A pelos tributos não pagos. Quando o conflito entre A e o Fisco chegar ao Judiciário, não deve ser decidido à luz da nova posição, mas daquela que havia na época da conduta de A, por causa do princípio da confiança. Para isso, deve ser usada a modulação.

Deu-se, propositadamente, um exemplo de Direito Tributário, porque este é um ramo do Direito em que muito frequentemente a modulação deve ser feita, quando da alteração de posicionamento dos tribunais superiores.

Já nos manifestamos no sentido de que os princípios que criam segurança jurídica no Direito Tributário devem ser respeitados pela jurisprudência, que, de rigor, não deve se alterar. Se isso acontecer, a modulação, no formato proposto, é imperiosa.

Nossa posição, é, portanto, pelo cabimento de rescisória, desde que não haja modulação.

Se modulação houver, essa não pode ter o condão, apenas, de evitar a rescisória. Entendemos que essa deve ser feita de molde a evitar que a nova posição adotada afete não só situações em que tenha havido processos e trânsito em julgado, mas também aqueles em que o indivíduo agiu de boa-fé, em absoluta conformidade com o Direito “em vigor”, com a pauta de conduta tida por correta.

A modulação não pode desempenhar única e exclusivamente papel de jurisprudência defensiva.

4. Sobre a modulação
Admitir-se a ação rescisória quando há mudança da jurisprudência é medida que se impõe, a nosso ver, como regra geral, para que se respeite a isonomia.

No entanto, como vimos, o princípio da isonomia deve ser compreendido e aplicado também no contexto de outros valores e princípios.

Então, não se deve negar que, muitas e muitas vezes, outros valores devem ser preservados, a ponto de poder afastar a necessidade de se respeitar a isonomia.

Muito se tem escrito sobre a função normativa do Poder Judiciário. Hoje, é comum que se tenha consciência no sentido de que o juiz, em diversas medidas, cria Direito. Portanto, é ator coadjuvante na formação das normas jurídicas: nas pautas de conduta.

Sob essa ótica, não se podem fazer vistas grossas à imperiosidade de que, por vezes, aquele que agiu de acordo com certa pauta de conduta (norma jurídica) seja poupado: por isso é que o legislador de 2015, sensível a essa realidade, criou o artigo 927, parágrafo 3º, in verbis: “§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Vê-se, pois, a necessidade, sentida pelo legislador de, em face de (i) alteração de jurisprudência dominante do STF e de tribunais superiores, (ii) mudança de entendimento firmado em julgamento de IRDR e de recursos (especial ou extraordinário) repetitivos modular os efeitos da nova decisão, à luz do interesse social e da segurança jurídica.

Que efeitos são esses?

São tanto os efeitos que da decisão emanam em relação às próprias partes, quanto os efeitos irradiados para fora do processo, para além do universo das partes. São os efeitos que se reconhecem a uma decisão quando nela se vê um precedente.

Então, a modulação significa a possibilidade de se situarem esses efeitos da decisão no tempo e no espaço, de acordo com ambos os valores acima referidos: interesse social e segurança jurídica.

Vê-se, pois, que a modulação substitui com vantagens a Súmula 343. Primeiro, seus fundamentos são razoáveis: preservação de segurança jurídica, resposta adequada ao princípio da confiança. Não é, como se quer com a Súmula 343, querer-se fazer crer que a decisão estaria “correta” só porque teria sido proferida num momento histórico em que ainda se discutia qual deveria ser a tese jurídica adotada, a partir do sentido da norma se viesse a adotar. A Súmula 343 elege critério não jurídico e tampouco razoável para sujeitar a decisão à rescindibilidade: o “acaso” de a discussão existir, ou não, quando da prolação da decisão.

Aliás, de rigor, o contrário é que deve gerar a não rescindibilidade: a decisão rescindenda estar em absoluta consonância com a jurisprudência pacificada de um Tribunal Superior.

A modulação é instituto concebido expressamente para concretizar, nos casos em que se entende adequado prevalecer o princípio da confiança (= segurança jurídica), pode obstar o cabimento da rescisória.

Entretanto, a modulação permite, como se viu, que se faça muito mais que isso. Pode-se até julgar certo caso X de acordo com entendimento jurisprudencial que havia à época em que ocorreu o caso X, mesmo que esse entendimento já esteja superado no STJ ou no STF.

Assim, pois, que a modulação é instituto versátil, flexível, que se presta, de modo muito mais completo a realizar concretamente a segurança jurídica.


[1] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 1, p. 26.
[2] Rel. min. Marco Aurélio, j. em 22.out.2014.

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