Opinião

Candidatura avulsa trará maior oxigenação ao poder político

Autor

  • Marcelo Figueiredo

    é advogado consultor jurídico professor associado dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito Constitucional e Direito Constitucional Comparado da PUC-SP.

17 de novembro de 2017, 5h35

No Brasil onde historicamente sempre houve um enorme desprezo pela vontade popular o tema das candidaturas avulsas deveria, ao menos ser objeto de maiores debates e reflexões pela sociedade.

Por aqui, como em muitos outros Estados, a representação dos cidadãos sempre foi insuficiente e seletiva no exercício do poder estatal.

Apesar da Constituição Federal de 1988 alcunhada de “cidadã”, dispor que o Brasil é um Estado Democrático de Direito que tem por fundamento a cidadania, (artigo 1º, inciso II), e que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”, pouquíssimas foram as iniciativas populares e consultas realizadas desde 1988.

Como se sabe o caminho a ser percorrido pelo “povo” para propor projetos de lei (iniciativa popular) é cheio de percalços. Há necessidade de pelo menos a adesão de 1% do eleitorado nacional, além da adesão de 0,3% do eleitorado de pelo menos cinco estados da federação. 1% do eleitorado brasileiro equivale hoje a aproximadamente 1,5 milhão de pessoas.

Talvez por isso mesmo, e por outras questões operacionais ligadas a coleta e conferência de todas essas assinaturas não é uma tarefa fácil apresentar e concretizar projetos de iniciativa popular.

Afirma-se que em pouco tempo programas de computação poderão diminuir sensivelmente essas dificuldades. Esperemos que a tecnologia ajude a cidadania brasileira que é carente de apoio e fomento.

Como se sabe, apenas quatro projetos de lei de iniciativa popular, desde 1988 foram apresentados, a saber: a) caso Daniella Perez; b) projeto que combate à compra de votos, (Lei 9.840/1999); c) projeto que criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2005) e d) o projeto de lei complementar 135/2010, a conhecida Lei da Ficha Limpa.

Pouco importa aqui discutir o conteúdo de tais leis. Basta registrar que nenhuma dessas quatro iniciativas efetivamente logrou chegar ao final como “popular” porque a Câmara de Deputados alegou não ter condições de verificar se as milhões de assinaturas constantes da proposição eram autênticas.

Deixemos de lado aspectos formais ou procedimentais por um momento, para nos concentrarmos na substância.

Sem dúvida alguma foi muito positiva para a cidadania brasileira o resultado obtido. Afinal tais projetos com todos os percalços chegaram a bom termo. Foram “recepcionados”, acolhidos pelo Legislativo brasileiro e de um modo ou de outro, tornaram-se leis. Tiveram a energia popular sua impulsão.

Respeitou-se em última análise a vontade popular, o que no Brasil já é um ganho extraordinário.

Sigamos adiante.

Não há dúvida que todo partido político deseja chegar ao poder para fazer valer a sua plataforma e programa político. É legítimo que assim seja. Mas também é verdade que a representação política em todo o mundo sofre um enorme desgaste de credibilidade devido a inúmeros fatores.

No mundo contemporâneo os modelos de representação política concebidos nos séculos precedentes já não atendem plenamente a complexidade da modernidade.

Os movimentos das ruas, a insatisfação popular, a corrupção aponta claramente para o desgaste, senão para o esgotamento do sistema clássico de representação política, tal como concebido.

Não há dúvida que não há democracia sem partidos políticos. Há enorme dificuldade em todos os países, sobretudo os continentais, como é o caso do Brasil, conceber sistemas de aproximação da vontade popular à vontade estatal para a produção do Direito.

Por outro lado, razão assiste a Joaquim Falcão[1] quando ensina:

“Neste sentido, representação é eleição, e eleição é monopólio dos partidos. Tanto que candidaturas avulsas independentes não são permitidas no Brasil até o dia de hoje. Embora já sejam em muitos outros países. Aqui, a representação partidária inclui toda a representação política. O que está por detrás e dá sentido a esta ambição monopolística dos partidos são duas crenças básicas. A crença de que a sociedade política é igual à sociedade civil. Ou seja, por mais diferenciados e conflitantes que sejam os múltiplos interesses da sociedade civil, são todos passíveis de serem captados, organizados, defendidos e representados pelos partidos políticos”.

Ocorre que hoje o Direito brota de diversas fontes que transcendem o Direito Estatal.

Basta lembrarmos o direito internacional, o direito supranacional, a lex mercatoria, a lex sportiva, etc. Há uma pluralidade de fontes em diversos níveis e dimensões que se entrecruzam no tecido jurídico o que por si só bastaria para abrirmos nossas mentes para novas formas de participação social e popular em nossos Estados -nacionais.

O volume de assuntos e temas postos à consideração diária da cidadania é imenso e complexo. É verdadeiramente impossível que os chamados “representantes populares” deem conta de toda essa complexidade e que consigam filtrar e processar as necessidades populares.

Não temos resposta ou solução a esse problema, mas parece óbvio que toda e qualquer iniciativa que aperfeiçoe ou ao menos procure inserir mais atores nesse cenário complexo e múltiplo parece positiva em linha de princípio.

Assim devemos ao menos nos dar o direito de experimentar novos caminhos, abrindo a possibilidade de novos atores no cenário político nacional, abrindo novos caminhos nesta direção.

Levantamento feito pela Rede de Informações Eleitorais[2] integrada pelos Estados Unidosa, Canadá e México e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), revela que o Brasil alinha-se, ao lado da África do Sul, Argentina, Uruguai, Suécia, entre outros, no grupo de 9,68% dos 217 países do mundo que não adotam nenhum tipo de candidatura avulsa em seus pleitos.

Por outro lado, 4 em cada 10 países permitem que pessoas sem filiação partidária disputem pelo menos cadeiras legislativas em nível local ou nacional, casos da Alemanha, Japão, Itália, Reino Unido. Em 37,79% dos países, as candidaturas avulsas valem até mesmo para Presidente da República, como nos EUA, França, Chile, Irã e a superpopulosa democracia da Índia.

A Constituição brasileira resguarda o pluripartidarismo, bem como exige como condição de elegibilidade, dentre outras, a filiação a um partido político. A regra vem disciplinada na legislação a exemplo do Código Eleitoral, da Lei 9.096/95 e na Lei 9.504/97.

O Tribunal Superior Eleitoral, em várias oportunidades, manifestou-se sobre o assunto, afastando a possibilidade de candidaturas desvinculadas de agremiações eleitorais. Afirmou: “O sistema eleitoral vigente não prevê candidaturas avulsas desvinculadas de partido, sendo possível concorrer aos cargos somente os filiados que tiverem sido escolhidos em convenção partidária, nos termos dos artigos 7º ao 9º da Lei 9.504/07” (Ag. Reg. no Resp. 2243-58.2010.618.0000, Rel. Min. Carmen Lúcia).

Afirma-se que a possibilidade de candidaturas avulsas está a depender de emenda constitucional como já ocorreu na PEC 41/11 que previa a candidatura avulsa no âmbito municipal, para o Executivo e Legislativo, mas derrotada no Senado Federal.

Duas linhas de argumentos são brandidas pelas correntes favoráveis e contrária à sua adoção.

Os favoráveis defendem que os partidos políticos perderiam o “monopólio” do exercício do poder; que seria uma forma de expressão das lideranças populares; mais um remédio para a falta de credibilidade dos partidos políticos a fortalecer toda a democracia.

Os contrários argumentam com o enfraquecimento dos partidos políticos, com a proibição inserida no ordenamento jurídico, com a dificuldade da governabilidade pois a articulação entre o Executivo e o Parlamento se realizaria individualmente, e não por intermédio de lideranças; e, ainda possibilitaria um grande número de candidatos inclusive os aventureiros e o abuso do poder econômico.

Somos favoráveis a experiência das candidaturas avulsas, desde que os empecilhos jurídicos atuais sejam afastados. Não acreditamos que haja qualquer dificuldade insuperável à boa governabilidade com sua adoção. Hoje, também são eleitas pessoas aventureiras pelo sistema partidário.

Não desconhecemos a possibilidade da existência de experiências negativas com o passar do tempo na adoção de candidaturas avulsas. Alega-se que, com o tempo, o eleito seria absorvido por todos os vícios existentes no sistema partidário.

Mas daí a proibir ou negar a possibilidade da experiência, vai larga distância.

É verdade que como iniciativa pioneira nesse campo, poderia começar de forma mais tímida, seja no âmbito estadual e municipal, seja nas três esferas da federação brasileira, desde que mediante uma cota minoritária e por um período de tempo experimental, a ser debatido na sociedade, 10 ou 15 anos, por exemplo.

Cremos que ao contrário do enfraquecimento dos partidos, a iniciativa traria maior oxigenação ao poder político com representantes extraídos dos diversos segmentos e movimentos populares que se articulariam para a eleição daqueles candidatos mais talhados ao exercício do poder, por sua liderança e experiência em seus campos de atuação.

A experiência não teria o condão de abalar o sistema político proporcional brasileiro ou sua estrutura tradicional que já anda muito mal.

O advogado Rodrigo Mezzorno tentou ser candidato a prefeito do Rio de Janeiro, em 2016, mas teve registro negado porque não tinha filiação partidária.

A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal e com a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso aguarda julgamento. Até o momento, aceitou-se que a matéria tem repercussão geral com a adesão dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux. No sentido contrário posicionaram-se Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

A Procuradoria Geral da República (ARE 1.054-490-RJ) emitiu alentado parecer lavrado pelo subprocurador-geral da República, Odim Brandão Ferreira em 1º de outubro de 2017 e aprovado pela procuradora geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge.

Nele, opinou pelo não conhecimento do recurso extraordinário, ou, no caso superada a preliminar, por seu provimento.

O recurso extraordinário, no mérito, é fundado nos artigos 102, III, a da CR, e na violação dos artigos 1º, II, III e V; 4º, II, 5º, XX, e §§ 1º e 2º, da CR. Aduz ainda, afronta dos artigos 23 a 29 do Pacto de São José da Costa Rica; artigos 25 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 27 da Convenção de Viena.

Em sua conclusão final o parecer afirma:

“Apesar da relevância dos partidos políticos para o processo democrático, o artigo 6º, §, 4º, II, da CR não inclui os partidos na cláusula de eternidade da Constituição de 1988. Ao contrário, nesse aspecto da organização social brasileira, a Constituição só declarou a salvo de mudanças, o “voto direto, secreto, universal e periódico”. Logo, não parece haver incompatibilidade entre a norma internacional aludida e as restrições e emendas constitucionais ou à incorporação do pacto aludido na ordem brasileira. Daí que os partidos representados no Congresso Nacional abriram mão, validamente, da função de organizações intermediárias exclusivas entre governantes e governados, ao terem aprovado o Pacto de São José. Nessa medida, o pedido dos autores parece procedente”.

As premissas lançadas no parecer da PGR são discutíveis. Acreditamos, com André de Carvalho Ramos[3], que a adoção pelo STF da teoria dos dois estatutos (supralegal e constitucional) dos tratados merece revisão.

Como os votos da minoria do STF demonstram, a hierarquia constitucional de todos os tratados de direitos humanos (e não somente os aprovados pelo rito especial) atende melhor a interpretação em conjunto dos dispositivos constitucionais, em especial do o artigo 1º, inciso III, e o artigo 5º, § 2º , além de ser mais um passo na consolidação do Estado Democrático de Direito (artigo 1º caput), e da afirmação dos direitos de todos, superadas as desigualdades sociais e regionais que ainda assolam o país.

Já passa da hora do STF abrir as portas de um diálogo construtivo com a interpretação dos Tribunais Internacionais, inclusive com a CIDH.

Sem discutir, portanto, as premissas exegéticas do aludido parecer, concordamos com sua conclusão.

Não se trata assim de saber se o sistema de registros por partidos nem de candidaturas avulsas é ou não mais restritivo à luz da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas sim de reconhecer a necessidade de modificar o sistema jurídico nacional — pelos meios postos à disposição em nossa Constituição Federal — para acolher as candidaturas avulsas como mais uma experiência a ser vivida pela sofrida sociedade brasileira.

Por fim lembramos que há existe no Brasil a democracia direta por intermédio de seus mecanismos acima lembrados. Não há inovação quando falamos em candidaturas avulsas, mas tão somente seu aperfeiçoamento por mais uma modalidade.

Acreditamos que a democracia partidária e democracia direta não são de nenhum modo excludentes. Vale a experiência. Esperemos que o Brasil ouça as vozes das ruas.


[1] Joaquim Falcão, “Democracia Concomitante”, Revista da AASP, São Paulo, Outubro de 2017, página 37.

[2] Vide http://aceproject.org

[3] André de Carvalho Ramos, “Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional”, 5ª Edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 2015, página 313.

Autores

  • Brave

    é advogado e consultor jurídico. Professor Associado de Direito Constitucional da PUC-SP. Presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas- ABCD e Vice-Presidente da Associação Internacional de Direito Constitucional. Presidente da Escola de Liderança e Cidadania da OAB-SP.

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