Direito Comparado

Pós-graduação em Direito no Brasil: o universal pelo regional

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

15 de novembro de 2017, 7h00

Spacca
1. Formação jurídica: uma equação complexa
Após uma sequência de mais de 50 semanas de colunas sobre a formação de um jurista em alguns países do mundo, encerrei a série com um balanço sobre os diferentes modelos. Uma das conclusões desse repasse crítico está em que não há modelos certos ou errados, bons ou ruins. Cada um deles traz consigo o gérmen de suas próprias contradições e é influenciado pelas condições históricas, sociais, econômicas e culturais do local onde ele é aplicado. Em algumas realidades, é perceptível a ação dos legal transplants, das recepções e da “colonização”, além de elementos modelares que foram pensados de modo original e autóctone. Há transplantes bem-sucedidos. Existem desvios de rota. Modelos que se estruturam como mélanges e outros que conservam elevado grau de pureza.

O certo é que a maior parte dos problemas identificados em minhas pesquisas decorre da má recepção de modelos estrangeiros ou por efeito de deficiências estruturais de cada país. Quanto a este último aspecto, pode-se dizer objetivamente que o meio influencia profundamente a eficácia dos modelos de formação jurídica. Associam-se ao meio nesse papel de determinação do sucesso do modelo a maior ou menor quantidade de recursos destinados às instituições de ensino (e sua gestão, evidentemente), a representação social (e a valorização profissional) do docente e um elemento imaterial, que é difícil de ser conceituado, mas que pode ser qualificado como a “tradição”.

Essa conjugação de elementos e fatores é muito interessante e poderia servir para um estudo autônomo da formação dos juristas. Veja-se o caso da Alemanha. O sucesso do modelo alemão combina orçamentos modestos e bem administrados, representação social e remuneração dos docentes em padrões elevados, além da imaterial “tradição”. Para além disso, a Alemanha é o centro criador de um modelo de formação. Ela não padece dos problemas da má recepção, como se deu, por exemplo, no caso japonês, que importou acriticamente a experiência norte-americana e vive a pior crise da história de suas faculdades e profissões jurídicas.

Na pesquisa publicada na ConJur, procurou-se recortar o objeto de maneira transversal sob diversos enfoques: geográficos, linguísticos, de famílias jurídicas, históricos e econômicos. O estudo considerou as realidades de Angola, Colômbia, Chile e Rússia, com idêntico interesse às experiências de França, Alemanha e Estados Unidos, a título de exemplo.

Gostaria hoje, como uma espécie de posfácio da pesquisa, dar ênfase a um elemento parcelar do estudo: a pós-graduação em Direito. Em todas as colunas, fez-se referência ao modo de organização, aos requisitos formais e materiais e à estrutura dos cursos de mestrado e de doutorado, onde havia, de todos os países estudados. Retoma-se agora essa questão sob um ângulo diferente: a experiência comparada pode orientar ou servir de modelo para a pós-graduação brasileira?

2. Pós-graduação e internacionalização
A pós-graduação insere-se hoje em um contexto internacional e de internacionalização. Com as escusas pelo trocadilho, ele se justifica por ser expressivo. No mundo contemporâneo, não se pode imaginar a pós-graduação alheada do contexto internacional. Essa é uma característica ainda mais intensamente perceptível nas chamadas ciências duras, que se prevalecem de uma universalidade de linguagem e de métodos, que é convidativa ao que se poderia chamar de uma pancientificidade, com o perdão pelo neologismo.

Em relação às ciências dúcteis, dentre essas o Direito (para os que nele reconhecem um caráter científico), a inserção no contexto internacional é dolorosa e complexa. Nos versos de Fernando Pessoa, essa contradição fica muito bem posta: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. E, com maior precisão, ele eternizou estes outros: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa”.

Para o Direito, essa luta constante entre o universal e o regional integra a suprema contradictio de uma ciência que, por muitos séculos, se prevaleceu de um idioma comum, o latim, mas que, ao menos desde o século XIX, se tem fragmentado em centenas de línguas. O inglês, o latim de nosso tempo, é um sucedâneo. Mas não conseguiu, nem de longe, alcançar o papel unificador que outrora exerceu o latim. Tradicionais e importantíssimas revistas de Direito Civil da Alemanha, da França e da Itália são ainda hoje preponderantemente editadas nos respectivos idiomas nacionais. Os textos, ao menos em Direito Civil, de revistas inglesas e norte-americanas têm pouco impacto em países de civil law, dada a assimetria de tradições jurídicas. É óbvio que esse quadro vem-se alterando, particularmente em áreas como o Direito Constitucional e a Teoria do Direito, com forte tendência a que esse modelo seja prevalente a médio prazo.

Quanto à internacionalização, ela tem servido de elemento para aferir a eficiência e a competitividade dos cursos de pós-graduação em quase todas as áreas. No Direito, isso não é diferente. Internacionalizar pressupõe circulação de pesquisadores, publicações coletivas com autores de diferentes nacionalidades, congressos, redes de pesquisa e periódicos abertos a textos de outros idiomas. Seria ingênuo pensar que essa internacionalização não se revele um conceito muita vez mal compreendido. Circulação de estudantes, por exemplo, tem autonomia semântica. Fazer eventos no exterior não se confunde com eventos internacionais. Nada (ou quase nada) disso é, porém, detectado pelos meios quantitativos de aferição dessa internacionalização. Ela se mensura, a mais das vezes, por critérios tão abstratos e pouco controláveis em termos de mérito que produzem externalidades que começam a ser criticadas.

Ainda aqui a internacionalização não subsiste sem alguns dos elementos que foram identificados como determinantes do êxito de modelos de formação jurídica. Um deles é o fluxo contínuo de recursos que permitam a circulação de pesquisadores, a integração de pesquisas, o acesso a grandes bancos de dados e de repositórios (hoje preponderantemente eletrônicos) e a participação (ou a organização) de eventos que congreguem investigadores nacionais e estrangeiros.

3. Pós-graduação em Direito na realidade de um país capitalista periférico
A pós-graduação em Direito no Brasil transformou-se de modo radical nos últimos 15 anos. A expansão dos cursos de graduação, fenômeno que só se observa (com muito mais modéstia) na Rússia e na Índia, criou um “mercado de formação de docentes”. De um instrumento de diferenciação profissional ou de formação de uma carreira docente profissionalizada e bem remunerada, como se dá na Alemanha e em Portugal, nossos cursos de mestrado e doutorado paulatinamente têm se convertido em exércitos auxiliares para a constituição de professores aos cursos de graduação em Direito.

É óbvio que esse diagnóstico ignora os centros de excelência que ainda se vocacionam para essa formação qualificada em termos internacionais e de internacionalização. Mas esses dois vetores (internacionalidade e internacionalização) servem hoje como um farol ou um fator de controle qualitativo dos cursos de pós-graduação em Direito, quaisquer que sejam esses.

O sistema brasileiro de pós-graduação em Direito ultrapassa o número de cem cursos de mestrado e doutorado, contando já com alguns de caráter profissional. Ainda assim, o número de mestres e doutores é baixo em comparação com países capitalistas centrais. E, como um fenômeno tipicamente brasileiro (mas não exclusivamente, ao estilo da China, da Rússia, de Angola e da Colômbia), os mestres e doutores concentram-se nos grandes centros. E, em um recorte sobre as regiões do país, eles também se radicam nas zonas mais ricas e desenvolvidas do país.

A expansão dos últimos 15 anos, que ganhou impulso com a chegada massiva de cursos privados (ainda que a maioria deles deficitários), enfrenta agora um período de escassez econômico-financeira tanto no setor público quanto no setor privado. Os parâmetros de sucesso dos modelos de pós-graduação, na perspectiva comparada, ressentem-se da necessidade de recursos (ou de uma boa gestão destes). No Brasil contemporâneo, a escassez dos primeiros (os recursos) tende a revelar a ausência da segunda (a boa gestão).

A experiência brasileira de pós-graduação em Direito é um projeto cuja formulação deita suas raízes nos anos 1970. Sua consolidação e sua expansão atingiram elevados níveis de amadurecimento. Esse modelo, contudo, apresenta sinais de fadiga em razão dos câmbios ocorridos na sociedade brasileira, na graduação em Direito e no papel do jurista na contemporaneidade. Os desafios externos, que se ligam à internacionalização, devem conviver com as exigências internas, que passam pela solidariedade inter-regional, a pesquisa científica (com as limitações próprias de um país como o Brasil) e pela preservação das peculiaridades do Direito em uma sociedade desigual e hipercomplexa.

Em modelos com características aproximadas com as do Brasil, não há parâmetros de simetria com a forma e a feição de nossa pós-graduação em Direito. Os chineses optaram por um modelo fortemente internacionalizado. Os russos, em sentido contrário, apostaram nas especificidades nacionais. Em ambos os casos, não há, como aqui, carreiras jurídicas com o nível de força político-institucional e de penetração social. Modelos como o chileno e o colombiano, por suas dimensões, não se prestam a comparações dessa envergadura. Dentre os países europeus, a estrutura das carreiras docentes é incomparável com o Brasil. O elemento hierárquico e a centralidade da figura do catedrático, salvo exceções, não é transponível para a realidade local.

A formulação de um modelo de pós-graduação em Direito para o Brasil, em sua nova fase, requer outro tipo de abordagem. Os versos de Fernando Pessoa não podem servir de escudo para os desafios da internacionalização. As características de uma cultura jurídica de tradição continental, mas latina e periférica em termos econômicos, também exigem um olhar diferenciado para nossas próprias contradições.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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