Tribuna da Defensoria

Defensoria precisa se perceber como política pública: parte 2

Autores

14 de novembro de 2017, 10h39

Há alguns meses, neste espaço[i], propusemos o debate sobre a necessidade de se entender a Defensoria Pública para além do aspecto puramente institucional, analisando-a como principal esforço do Estado brasileiro no contexto das políticas públicas de acesso à Justiça. Naquele momento, abordamos uma experiência na comarca de Rio Grande (RS), avaliando indicadores relativos à prisão preventiva, mediante análise de impetrações e decisões em Habeas Corpus.

Hoje, de outro lado, pretendemos insistir na importância da discussão proposta, investigando alguns dados relativos à atuação na área cível, especificamente nas ações de saúde, as quais, como notório, refletem boa parte dos esforços de atendimento da Defensoria, com distinto impacto social e até mesmo econômico para os entes públicos dos quais se exige a implementação de políticas ligadas à área.

De início, esclarecemos que os dados avaliados dizem respeito à atuação nas Defensorias Públicas de Jaguarão (RS), sendo delimitado o período compreendido entre os dias 1° de março e 19 de dezembro de 2016. A base de dados foi composta a partir de informações existentes nas petições iniciais ajuizadas e foram sistematizadas pelos estagiários da Defensoria de Jaguarão, a partir de referenciais que estabelecemos.

Especificamente, narramos que foram ajuizadas 199 ações judiciais, não havendo, por ora, qualquer notícia de improcedência. O patamar de ajuizamento reflete uma média de 19,9 ações por mês.

Dos pedidos formulados, 126 foram em favor de mulheres e 73 em benefício de homens, o que resulta em uma proporção de 63,32% de assistidas para 36,68% de assistidos. Aferidas sem distinção de sexo, 154 pessoas (77,38%) recebiam até um salário mínimo, 26 até dois salários mínimos (13,06%), 18 não possuíam qualquer renda fixa (9,04%) e 1 percebia mais de 3 salários mínimos (0,50%).

Quanto ao objeto do pedido, 104 eram pedidos de exames, 12 de cirurgias, 6 de sessões de fisioterapia, 3 de consulta com fonoaudiólogo, 20 consultas com médicos especialistas, além de 54 requerimentos de medicamentos, dos quais 53 eram de uso contínuo.

Dentre diversas ilações possíveis e sem pretender atribuir rigoroso nível de cientificidade à análise, a qual tem finalidade sobretudo argumentativa, podemos observar que há elevado nível de ajuizamento de ações de saúde em Jaguarão, principalmente considerando-se que se trata de uma cidade com população inferior a 30 mil habitantes, de modo que se mostra extremamente preocupante o nível de litigiosidade na matéria. De outro lado, importante destacar o desempenho exitoso da instituição, o que revela a eficiência do serviço prestado e a credibilidade junto ao Poder Judiciário, a qual se revela fundamental para o desempenho da missão defensorial, como já observamos em outros textos.

Possível notar também, a exemplo do que já foi apontado por Fiorenza Zandonade Carnielli em estudo inédito sobre a Defensoria[ii], que a instituição é acessada especialmente por mulheres, que no exame aqui realizado respondem por cerca de 2/3 dos atendimentos. Evidente que tal questão merece, igualmente, maior aprofundamento, já que a Defensoria configura espaço de cidadania fundamental para uma fração nada desprezível da sociedade que historicamente teve desprestigiados seus direitos e que, por meio da instituição, busca vê-los afirmados.

No que diz respeito à renda dos assistidos, vemos que o mito de que a Defensoria teria se esquecido dos pobres e passado a se dedicar à classe média não tem qualquer base empírica, além dos conhecidos preconceitos e escusos interesses corporativistas. Precisamente, mais de ¾ dos atendimentos são destinados a pessoa com renda de um salário mínimo e quase 10% são prestados a pessoas em situação próxima à indigência. Um único caso supera o parâmetro tradicional de atendimento no Rio Grande do Sul (3 salários mínimos), encaixando-se na hipótese de vulnerabilidade circunstancial[iii], que tem de ser — e é — a exceção em nosso cotidiano.

Delimitando-se o objeto do pedido, temos aqui uma, para nós, ilustre surpresa, no sentido de que o maior volume de atendimento trata de questões ligadas a exames, especialmente tomografia e ressonância magnética, e não propriamente de medicamentos. Tal constatação, por certo, poderia direcionar o Poder Executivo no sentido de envidar esforços para solucionar estas questões, que teriam como efeito imediato a qualificação do serviço de saúde e também a redução da tão questionada intervenção jurisdicional no planejamento e execução de políticas públicas. Essa verificação ainda tem relevância, no plano jurídico, para eventual providência de natureza coletiva a fim de, por outra via, alcançar a melhoria da política pública de saúde, sem que haja a necessidade de uma centena de ações judiciais por semestre.

Especificamente quanto aos medicamentos, chama a atenção que, dos 54 casos, apenas um não era de uso contínuo, o que evidencia falha grave no serviço de saúde, eis que não se trata de remédios de uso ocasional.

Analisados, portanto, os dados apresentados, concluímos que o diagnóstico do atendimento da Defensoria Pública é apto a promover não só ajustes internos, seja a partir da compreensão da demanda, como também medidas jurídicas mais amplas (como ações coletivas), mas, em especial, fomentar a modificação de outras políticas públicas que direta ou indiretamente são afetadas pela atuação institucional. Ou seja, a par de ser uma política pública de acesso à justiça relevantíssima, percebe-se aptidão para, a partir do próprio diagnóstico, permitir ajustes e evoluções em políticas públicas sociais correlatas, como saúde, educação, habitação etc.


i https://www.conjur.com.br/2017-jan-24/tribuna-defensoria-defensoria-publica-perceber-politica-publica

ii CARNIELLI, Fiorenza Zandonade. A cidadania e a sua Instituição: um estudo de comunicação pública sobre a Defensoria do Rio Grande do Sul. 2016. 138f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2016.

iii COSTA, Domingos Barroso da. GODOY, Arion Escorsin de. Educação em Direitos e Defensoria Pública: Cidadania, Democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva. Curitiba: Juruá, 2014.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!