Intensa repercussão vem causando a ação judicial dita como proposta pelo Rio Doce e referente ao desastre ambiental de Mariana. Como rotineiro no cenário jurídico, alardes e discussões ganharam projeções que se envolveram em verdadeira abstração, em uma projeção desvinculada do próprio processo judicial. Ao invés de centrar-se na ação judicial em si, vários debates estão sendo deslocados para questões ligadas ao biocentrismo, à conformação normativa da Índia, da Colômbia ou da Bolívia.
As abordagens jurídicas em relação ao desastre ambiental de Mariana recorrentemente sofrem de déficit processual. E como déficit processual me refiro a uma contínua projeção de posicionamentos que simplesmente desconsideram estágios processuais e situação concreta da dinâmica imprimida de resposta e gestão desenvolvidas no caso. Há uma perda de crítica situada para assunção da abstração descomprometida com a realidade vivenciada.
É nesse cenário que se situa a romantizada ação dita por proposta pelo Rio Doce. E digo romantizada porque a ação é repleta de poemas e lirismo. O presente artigo visa combater esse déficit de concretude, analisando criticamente não teses de titularidade ou paradigmas jurídicos. O que se analisa é a ação em si.
A ação dita como ajuizada pelo Rio Doce possui os autos 1009247-73.2017.4.01.3800, tendo sido distribuída junto à 6ª Vara Federal de Belo Horizonte. A primeira curiosidade que se levanta em relação à ação judicial é a ausência de qualquer empresa no polo passivo. Embora a ação remeta constantemente à poluição ambiental e ao desastre ambiental, somente situa no polo passivo a União e o estado de Minas Gerais. O contraste é perceptível. Como uma ação que se propõe a uma ampla tutela ecológica sequer indica poluidores ambientais do rio que afirma ser o autor?
É ponto de nota que a ação fixa como autora a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, não propriamente o Rio Doce. Mas não faz somente isso. A Bacia é indicada como representada pela Associação Pachamama, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sediada na Ponte dos Silveiras, Colônia Cascata, 5º Distrito de Pelotas, Rio Grande do Sul. Em trajeto rodoviário, Pelotas fica a cerca de 2.100 Km de Mariana. O artigo 5º, inciso V, alínea ‘b’, da Lei 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública, dispõe que a associação autora deve incluir entre suas finalidades institucionais a tutela ambiental objeto da ação. Como a ação foi proposta em nome do “Rio”, a associação sentiu-se desobrigada a abordar a questão em sua inicial e assim justificar como uma associação do Rio Grande do Sul se legitima para uma ação ambiental em Minas Gerais.
Outro ponto interessante é que embora o autor da ação seja a Bacia, aspecto algum da Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos é abordado. Lado outro, ao longo da peça, o “Rio” argumenta que o Brasil não está cumprindo a Política Nacional sobre Mudança do Clima, ou seja, apoia-se na Lei 12.187/09. Complexo vincular o desastre ambiental de Mariana com a emissão de gases do efeito estufa. Mais, os pedidos desenvolvidos na ação não são relacionados estritamente com a Bacia e menos ainda com algum caso concreto específico, recaem em generalidade normativa. Os pedidos são: a) a instituição do cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de desastres; b) a elaboração do Plano de Prevenção a Desastres de Minas Gerais.
Em síntese. Uma associação do Rio Grande do Sul, afirmando-se representante da Bacia do Rio Doce, efetiva uma ação que não pede nada para o Rio Doce, pede um plano de desastres em Minas Gerais e seu desenho de pedido é similar a pleitos de ação de inconstitucionalidade por omissão. A par disso tudo, a comunidade jurídica e acadêmica começa a discutir se bens ambientais possuem titularidade ou não para ajuizamento de ações, em implantes ou migrações artificiais de legislações alienígenas.
A questão central posta em preocupação é a tomada da ação tematizada sem situá-la em perspectiva ambiental concreta que lhe seja pertinente. O Direito Ambiental vê-se aqui sujeitado a uma funcionalidade meramente simbólica, instrumental, que em verdade ameaça-lhe. A resistência a uma utilização simbólica, à tomada do Direito Ambiental pelo reconhecimento ideológico, ergue-se como uma necessária ancoragem das normas ambientais e seus desideratos subjacentes. Resistir ao uso simbólico do Direito Ambiental justifica-se em face do risco de perda de aderência socioambiental da norma em sua concretização.
O reconhecimento ideológico é um aparente reconhecimento, engendra-se em uma mecânica contrária à emancipação na medida em que distorce e compromete o bem jurídico que aparentemente expressaria proteção. O reconhecimento ideológico exerce uma pseudotutela ambiental na medida em que sua expressão de exercício é simbólica, aparente, irreal.[i] Identificar o reconhecimento ideológico e sua dimensão meramente simbólica, não efetiva da emancipação e da proteção jurídica, demanda uma consideração de reconstrução normativa que se funde em um crivo avaliativo da realidade.
Tematizações e desenvolvimentos críticos ambientais não podem ser desconectados da realidade judicial posta em avaliação crítica e reconstrutiva na abordagem conceitual. O reconhecimento ideológico reforça a dimensão de resistência social diante de discursos ecológicos e promove a negativa de reconhecimento da proteção ambiental. Além disso, compromete a técnica processual e a funcionalidade jurídica no alcance da efetivação das próprias normas que se endereçam à proteção ambiental e reparação de danos.[ii] A ação em questão está distante do alavancar paradigmático que se pretende extrair ao problematizar o exercício da tutela ambiental no direito comparado.
Referências bibliográficas:
KOKKE, Marcelo. Conflitos Intergeracionais: uma matriz para análise dos confrontos socioambientais, cultuais e jurídicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
BOSSELMANN, Klauss. Direitos Humanos, Ambiente e Sustentabilidade. RevCEDOUA. Ano XI, nº 21, 2008, p. 9-38.