A importância da criminologia na investigação criminal
14 de novembro de 2017, 7h05
Ocorre, entretanto, que não se pode (ou melhor, não se deveria) pensar o sistema processual penal e o (sub)campo investigativo criminal dissociado do saber criminológico (crítico).
De antemão, registre-se o básico: não é possível falar em a criminologia. Existem diversas (ou diferentes) criminologias, cada qual com os seus fundamentos políticos e abordagens teóricas sobre o crime e o criminoso ou, então, sobre os processos de criminalização e o criminalizado.
Conforme Salo de Carvalho, há uma “pluralidade de discursos sobre o crime, o criminoso, a vítima, a criminalidade, os processos de criminalização e as violências institucionais produzidas pelo sistema penal”[1].
Nesse sentido, a partir dos critérios diferenciadores etiológico e labeling, inclusive nas concepções micro e macroestruturantes, Peter-Alexis Albrecht apresenta a seguinte divisão sistemática a respeito dos discursos ou das teorias criminológicas sobre a criminalidade: a) etiológico-individualizante; b) etiológico sócio-estrutural; c) labeling; e d) labeling teórico-socialmente orientado[2]. Outras classificações, ainda, poderiam ser mencionadas.
De modo reducionista, tem-se que a criminologia tradicional, de cunho etiológico, enxerga a criminalidade enquanto realidade ontológica e explicável de modo causal, enquanto que a criminologia crítica parte do paradigma do controle (ou da reação) social.
A criminologia tradicional foi (e ainda é) importante instrumento de “explicação” da criminalidade e, portanto, de reforço do caráter eficientista da intervenção penal. Foi concebida como um saber instrumental e auxiliar para a aplicação do Direito Penal no “combate à criminalidade (e ao criminoso)”. Dizia-se que era preciso conhecer a origem do crime para conseguir extirpá-lo do meio social.
A virada crítica, no entanto, que marca a década de 1970, pretende superar todo esse conhecimento científico construído e alimentado para o fortalecimento da penalização. Sustenta que a criminologia não deve ser um saber justificante da dogmática jurídico-penal, e sim desvelador do funcionamento concreto do sistema criminal. O seu objetivo não corresponde à histórica racionalização punitiva, e sim à problematização desse tipo de saber/poder construído e operado por meio das “ciências criminais”[3].
Muito embora não se tenha aqui pretensão de aprofundamento a respeito do assunto tampouco espaço suficiente para especificar as características de cada uma dessas vertentes criminológicas, imperioso registrar que essa passagem da criminologia liberal para a criminologia crítica implicou: a) o deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas, estruturais e funcionais, que se acham na origem dos fenômenos de desvio; e b) o deslocamento do interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e institucionais mediante os quais se criam e se aplicam definições de desvio e de criminalidade, bem como se realizam processos de criminalização[4].
Sublinhe-se que a denúncia incessante da criminologia crítica a respeito, por exemplo, da seletividade e da estigmatização que percorre os três momentos funcionais do sistema penal — produção de normas (criminalização primária), aplicação das normas/investigação preliminar e processo penal (criminalização secundária) e execução das penas ou medidas de segurança[5] — seria fundamental para uma compreensão e tentativa real de minimização da dor gerada no e pelo sistema penal.
É justamente esse tipo de conhecimento criminológico — problematizador da dogmática e facilitador da política criminal na direção de alternativas possíveis à redução dos danos causados pelas violências privadas (delito) e públicas (abuso dos poderes penais)[6] — que nos falta.
Sem qualquer exagero, é preciso considerar de fato a necessidade de ruptura com as permanências criminológicas positivistas enquanto ponto central à transformação da realidade experimentada atualmente no campo da Justiça criminal. Somente um tipo de pensamento crítico em torno do controle social do desvio e da criminalidade seria capaz de diminuir o histórico autoritarismo do sistema penal em ambientes formalmente democráticos[7].
Em suma, acredita-se, de modo sincero, que apenas por meio de uma profunda denúncia criminológica (crítica) seria possível estabelecer outra sistemática de Justiça criminal, que estivesse menos comprometida com o ilusório e maniqueísta discurso de “extermínio do crime” e mais preocupada com a preservação das vítimas de todas as formas de violência.
[1] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 40-41.
[2] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro/Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2010, pp. 40-59.
[3] BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 23: “Assim, a criminologia e a política criminal surgem como eixo específico de racionalização, um saber/poder a serviço da acumulação de capital”.
[4] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Colaboração de Emilio Santoro. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013, pp. 159, 160.
[5] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Colaboração de Emilio Santoro. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p. 161.
[6] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 74.
[7] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. 01 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 385 – 386.
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