Estado da Economia

Financiamento por crowdfunding gera impactos sociais e jurídicos

Autores

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Ivan Borges Sales

    é bacharel pela FDUSP. Advogado especialista em Direito Tributário e pesquisador na área de litígios na nova economia. Fundador e diretor do Instituto de Direito Economia Criativa e Artes.

12 de novembro de 2017, 7h00

Novas formas de se relacionar em mercado muitas vezes demandam do Direito positivo novas regras e da doutrina jurídica um esforço de compreensão e adaptação.

A tecnologia tem papel importante nesse jogo de impor desafios e adaptações. Os estudiosos do Direito vêm-se à frente da empreitada de compreensão dos aspectos técnicos envolvidos nessas novas tecnologias – o quanto se teve que estudar entre a diferença da internet e dos serviços que se valem deste meio é um bom exemplo.

Também relevante é o esforço na qualificação jurídica desses novos fatos, ou seja, a tentativa doutrinária e jurisprudencial de estabelecer naturezas jurídicas para novos fatos em busca da resposta sobre a aplicação de determinadas regras, de outras de distinto âmbito normativo ou até mesmo da constatação de lacunas legais.

Uma das questões mais curiosas desses desafios jurídicos de compreensão e adaptação aos novos fatos é que certas regras, perfeitamente alinhadas finalisticamente com os setores que pretendem regular, parecem, por vezes, revelar-se não perfeitamente cabíveis quando se tenta submeter novos fatos sob o seu domínio.

Fiquemos com o exemplo do direito do consumidor e a possibilidade de responsabilização solidária por parte de todos que participam da oferta do produto ou serviço (em ambientes virtuais isso pode se revelar um tanto quando despropositado).

Gostaríamos de tratar no texto de hoje sobre o tema crowdfunding, objeto de estudo em evento organizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo há poucas semanas, sob a organização do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes (IDEA)[1].

O crowdfunding é um bom exemplo de meio tecnológico inovador. Trata-se de uma forma de financiamento coletivo, que, a despeito de ser uma prática já bem arraigada na sociedade, hoje se beneficia da internet para ampliar seu campo de abrangência econômica. Todavia, não se ignora que essa ampliação promovida pela internet convive com outros tantos elementos de ordem cultural, ideológica e, sobretudo, comportamental.

Uma questão colocada por Paul Valéry em 1928 revela-se cada dia mais contundente: “O que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” O dia-a-dia com os modernos meios tecnológicos de comunicação proporcionam inovações que, de um plano ideal, cultural e ideológico, acabam moldando a forma como nos representamos e interagimos.

O crowdfunding, como meio inovador de agregação de interesses, deve muito de sua vertiginosa expansão à crise econômica de 2008, momento em que as pequenas iniciativas (artistas, pequenos empreendedores e empresas em fases iniciais de desenvolvimento) sofreram com a ausência de fontes de investimento para o início de seus projetos.

Se de início a suposta ausência de organização central nas iniciativas em rede poderia indicar um provável insucesso dos meios de agregação de interesses, o crowdfunding revelou-se como um grande desmistificador do comportamento de massas na tomada de decisões econômicas. Um paradoxo dentro da estrutura econômica de grandes players financeiros.

Ao utilizar a capacidade de comunicação praticamente ilimitada da internet, pessoas, empresas e iniciativas em geral conseguiram levantar, pelas modalidades da doação, do investimento, do pagamento/recompensa e do empréstimo, cifras na casa dos bilhões de dólares.

Por outro lado, o poder concedido pela internet para que projetos atinjam milhões de apoiadores é diretamente proporcional à mudança de concepção sobre atuação e objetivos econômicos e sociais pretendidos. Seja no Brasil ou nos demais países, as plataformas de financiamento coletivo já representaram meios de agregação de aportes financeiros eficazes para modificações sociais.

Cite-se, apenas como exemplo, que um dos cases de maior sucesso em nosso país não foi o financiamento de um jogo de vídeo game ou de um disco de uma banda, mas, sim, o projeto “Jornada pela Democracia”, inserido diretamente no contexto da crise política e do impeachment ocorrido no ano de 2016.

Desse meio de financiamento também decorrem expectativas econômicas que não podem ser qualificados como qualquer coisa de insignificantes. Relatório do Banco Mundial, ainda no ano de 2013[2], já estimava que, nos países em desenvolvimento, os financiadores dos crowdfundings injetarão cerca de US$ 96 bilhões por ano até 2025.

Embora inserida nesse contexto, a realidade brasileira é bem mais modesta. A título de exemplo, o Catarse, maior plataforma do segmento no Brasil, atingiu a cifra de R$ 32 milhões após quatro anos e meio de sua fundação, algo em torno de 0,1% daquilo que é operado mundialmente. Todavia, o pequeno mercado brasileiro revela oportunidades de incentivo e de exploração sustentável de financiamentos coletivos para uma ampla gama de interessados.

Considerando que o financiamento coletivo é voltado a projetos, em sua grande maioria, incipientes e promovidos por pequenas e médias empresas, políticas de estímulo e intervenção nesse tipo de investimento tendem apenas a reforçar características da própria economia nacional. Não é pouco lembrar que a pequena iniciativa no Brasil – micro e pequenas empresas – tem impulsionado o saldo positivo da geração de empregos.

Dos meses de janeiro a agosto deste ano (2017), as micro e pequenas empresas geraram 326.909 novos postos de trabalho, enquanto as médias e grandes empresas demitiram 182.416 pessoas[3].

Em vista de aspectos tão expressivos, fica clara a responsabilidade das plataformas de crowdfunding na implementação de disposições reguladoras e normativas como verdadeiros organizadores e estimuladores econômicos. De fato, serão esses os grandes players que terão a capacidade de regular as relações mais próximas entre financiadores e financiados.

O Estado, por seu lado, tem papel primordial na construção e adequação de instrumentos jurídicos que concedam segurança, incentivo e intervenção indireta e, por que não, direta nesse mercado que, como citado acima, vai muito além de iniciativas produtivas e de capital. O mero resvalar desse tipo de iniciativa em questões de índole social e política gera uma figura híbrida de interesses, um espaço de financiamento que exige novas formas de pensar a democracia e a economia em campo expandido.

O Direito, por isso mesmo, não pode ser colocado como elemento insípido na relação, estruturas normativas devem, sim, compor, com cada vez mais razão, os elementos evolutivos decorrentes do financiamento coletivo, ainda que sujeitas à mesma incerteza de causa ou efeito.

Esse caminho já começou a ser trilhado. Cite-se, por exemplo, a regulação promovida pela recente Instrução 588 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por meio da qual se definem critérios de segurança para a poupança popular nos investimentos do tipo equity crowdfunding.

A posição complementar das normas jurídicas pode ser colocada lado a lado com as inovações que, dentro do plano ideário, ideológico e cultural, permitem o desenvolvimento adequado dessa forma de financiamento por meio de instrumentos indutores. É pensar o Direito como mecanismo de correlação entre valores, objetivos e limites na conformação de estruturas econômico-sociais, uma função da norma já bem trabalhada pela doutrina do Direito Econômico.

Não muito distante da perspectiva do crowdfunding, está, também, a recente alteração da legislação federal para a previsão sobre a figura do Investidor Anjo. A Lei Complementar 155/2016 – que altera a Lei Complementar 123/2006 –, para além de regular a figura, levantou regras claras de aporte, que, nessa espécie de investimento, passam a não integrar o capital social da empresa investida. Soma-se a isso a posterior e recente regulação pela Receita Federal (IN 1.719/2017) a respeito da tributação sobre os ganhos do investidor, embora esta última tenha sido objeto de críticas efusivas.

Ainda assim, cite-se a necessidade de regulação ou, melhor, de compreensão dos próprios contornos contratuais, organizacionais e procedimentais do financiamento coletivo. Trata-se da necessidade de verdadeiro implemento e implantação da tecnologia jurídica (isso mesmo, aquela que existe e se desenvolve há, pelo menos, dois mil anos) na elaboração de mecanismos de governança, antecipação de crises e resolução de disputas ou de elaboração de modelos contratuais simples, acessíveis e claros.

A vocação de canal de comunicação e troca massificada para essa espécie de relação econômica já levanta uma miríade de hipóteses de conflitos possíveis entre investidores, investidos, plataformas e agentes de pagamento, representando um verdadeiro desafio para os aparatos jurisdicionais contemporâneos. Por isso mesmo, o desenvolvimento de mecanismos de segurança e certeza nas relações travadas dentro das plataformas de financiamento, dado o amplo espectro de atuação, é outro ponto fundamental e deve estar sob a responsabilidade do Estado tanto quanto da inciativa privada.

Não por outra razão, as grandes plataformas mundiais de crowdfunding adotam políticas claras de governança e resolução de conflitos, protagonizando um papel essencial no desenvolvimento desse mercado. Tais atuações são todos exemplos claros dos mecanismos jurídicos necessários para os impactos econômico-sociais a que está vocacionado o crowdfunding.

Dentre os grandes desafios regulatórios, encontra-se, sem dúvida, a modalidade de crowdfunding denominada crowddebt, ou o que ficou conhecido por modalidade de empréstimo. Nesse caso, plataformas organizam sistemas automatizados de micro e médio crédito entre pessoas físicas ou pessoas físicas e empresas para a concretização de projetos.

Embora a primeira tentativa de implantação desse tipo de modalidade no Brasil seja do ano de 2010, inclusive, anterior ao Catarse (citado acima), o projeto foi obstado por regulações protetivas do Banco Central. Regulações que, guardadas as suas razões de segurança do sistema financeiro, sustentam um estrangulamento das iniciativas que dependem de financiamentos bancários, via de regra, remunerados a taxa de juros de dois dígitos ao mês.

Não mais simples são os desdobres tributários das diversas operações realizadas nesse ambiente, que vão da tributação pelo ISS da prestação de serviços da plataforma, eventuais alcances da tributação sobre doações (ITCMD, quando se tratar de valores superiores às comuns regras de isenção), tributação da renda, da receita bruta (de intermediários e fornecedores) e até de ICMS quando houver operação mercantil.

Ou seja, tem-se aqui o que se alertou acima, a tentativa de correta qualificação jurídica das transações ocorridas nesse ambiente para a determinação de possíveis campos de tributações e os sempre presentes conflitos em matéria tributária (entre municípios, entre municípios e Estados, para ficarmos nos casos mais corriqueiros e indesejáveis).

Desafios também estarão presentes em matéria contratual e até mesmo de propriedade intelectual. Adicionalmente, tem-se a questão da aplicação ou não da responsabilidade solidária do direito do consumidor entre plataforma (agente intermediador) e os adquirentes de produtos financiados coletivamente.

Enfim, são inúmeros os desafios a serem enfrentados pelo Estado para que todos os pontos positivos dessas novas modalidades de financiamento se tornem realidade. Desafios que, se não forem bem entendidos pelo direito, farão com que aquilo que ainda não existe no Brasil, sequer venha a, de fato e satisfatoriamente, existir.

Autores

  • Brave

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Brave

    é bacharel pela FDUSP. Advogado especialista em Direito Tributário e pesquisador na área de litígios na nova economia. Fundador e diretor do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!