Dívida duvidosa

Para produtores rurais, Refis do Funrural causará nova guerra judicial

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8 de novembro de 2017, 6h07

O Congresso Nacional está prestes a desencadear nova guerra judicial envolvendo o Funrural. A Comissão Especial para análise da medida provisória do Refis Rural aprovou o texto da MP nesta terça-feira (7/11), com mais de 300 emendas. Com isso, deu passo importante para transformar a negociação de dívidas do Funrural em lei. O problema é que ninguém sabe se essas dívidas podem mesmo ser consideradas devidas, ou se já foram derrubadas pelo Judiciário. E empresas do agronegócio já se preparam para ajuizar ações e evitar o pagamento de débitos que consideram inexistentes.

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Refis do Funrural parcela e dá descontos em dívidas já declaradas inconstitucionais pelo Supremo, defende associação de produtores rurais.

É mais um imbróglio resultante das complicadas relações entre os Três Poderes no Brasil. Entre 2010 e 2011, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a exigência do Funrural de produtores rurais empregadores, mantendo só a incidência sobre a receita bruta de produtores rurais sem empregados. Em março deste ano, no entanto, a corte tomou nova decisão sobre o mesmo assunto, declarando constitucional o Funrural de produtores rurais, revendo os posicionamentos de sete anos atrás.

No julgamento de março, venceu o voto do ministro Alexandre de Moraes. Ele explicou que as decisões de 2010 e 2011 foram tomadas em recurso sem repercussão geral reconhecida e que o Senado não retirou as leis do ordenamento jurídico. O inciso X do artigo 52 da Constituição Federal diz que, se o Supremo declarar inconstitucional uma lei numa ação de controle difuso, como são os recursos extraordinários, é o Senado quem tem de editar uma resolução declarando a lei nula e impedindo sua execução. O placar foi de seis a cinco.

O acórdão do julgamento de março foi publicado no dia 26 de setembro deste ano. Duas semanas antes, no dia 13, o Diário Oficial da União publicou a resolução do Senado aplicando os precedentes antigos do Supremo.

Instalou-se o problema: o STF não modulou os efeitos das decisões de 2010 e 2011, o que deu efeitos retroativos à declaração de inconstitucionalidade do Funrural. Como a decisão só se aplicava aos casos concretos, diversas empresas foram à Justiça pedir a inexigibilidade do tributo, e conseguiram — a sistemática de pagamento do Funrural é de sub-rogação, ou seja, o comprador dos produtos é quem retém os valores e os repassa à União. Isso também foi declarado inconstitucional pelo Supremo.

Janela de oportunidade
Com a resolução do Senado, a decisão do Supremo passou de retroativa apenas ao caso concreto a retroativa e aplicável a todas as empresas e produtores rurais do país. É o que defende a Associação Nacional de Defesa dos Pecuaristas e Produtores da Terra (AndaTerra), que já prepara ações judiciais. Segundo a entidade, o Funrural não pode mais ser cobrado.

A preocupação da AndaTerra é com a combinação da decisão de março do Supremo e a MP que criou o Refis Rural. A medida provisória dá descontos na dívida, nos juros e nas multas relacionados ao Funrural, em troca do pagamento parcelado. O governo anunciou “renúncia fiscal” de R$ 5,5 bilhões, e a oposição fala em R$ 18 bilhões.

Mas, segundo os produtores rurais, não haverá renúncia, porque a dívida não existe. Em outras palavras, o governo disfarçou de benefício fiscal a exigência de um tributo já declarado inconstitucional pelo Supremo e retirado do ordenamento jurídico pelo Senado.

Sem pai
“A medida provisória é no mínimo inoportuna”, comenta o tributarista Fábio Pallaretti Calcini, especialista em agronegócio e colunista da ConJur. “A prorrogação do prazo de adesão ao parcelamento não se dá por benesse do governo, mas por frustração. Ninguém está aderindo. Ninguém pretende parcelar e ter descontos numa dívida que não é sua, ainda mais numa situação dessas.”

A situação a que Calcini se refere é a quantidade de perguntas sem resposta deixadas pela decisão de março do Supremo. Por exemplo, se for reconhecida a dívida, quem deve pagá-la? O Supremo declarou o regime de sub-rogação inconstitucional, e em 2001, quando foi editada uma lei para regulamentar a incidência de contribuição social sobre receita bruta, caso do Funrural, de produtores rurais, não houve menção a esse sistema.

Calcini explica: o sistema em que o contribuinte é o produtor, mas quem faz o pagamento do tributo é o comprador dos produtos, é inconstitucional, mas nada foi posto no lugar. Daí a pergunta: quem paga a dívida?

No tempo
De todo modo, os argumentos a favor da inexistência do débito são fortes, segundo Fábio Calcini. O que existe são duas decisões unânimes do Supremo e uma resolução do Senado que as aplica em todo o território nacional. Do outro lado, uma decisão por maioria apertada que deixou uma série de questões em aberto, a julgar pelos 11 embargos de declaração opostos ao acórdão desde que ele foi publicado.

Muitos deles pedem a modulação dos efeitos da decisão de março. O tributarista Igor Mauler Santiago, também colunista da ConJur, é signatário de um deles. Em seu espaço na revista, ele defendeu duas razões para que o Supremo module os efeitos de sua decisão: a virada na jurisprudência e o “insuportável impacto econômico e social da retroação”.

Para o advogado, a retroação dos efeitos da decisão de março deste ano “seria um golpe mortal” no agronegócio, “o mais dinâmico setor da economia nacional”. Os efeitos poderiam ser sentidos, segundo Mauler, no PIB, na balança comercial e no emprego. Segundo ele, o agronegócio responde por 23,6% do PIB do Brasil e de 20% de toda a força de trabalho, formal e informal. Já na balança comercial, o setor responde por 85% das exportações.

“Cumpre ressaltar, ainda, que se trata de contribuintes que dão ao Estado muito mais do que dele recebem, o que reforça a legitimidade do pleito excepcional de modulação”, concluiu o tributarista, em texto publicado no dia 18 de outubro deste ano.

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