Garantias do Consumo

É importante produzir pesquisas empíricas em Direito do Consumidor no Brasil

Autor

  • Amanda Flávio de Oliveira

    é sócia-fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre e especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

8 de novembro de 2017, 7h00

Spacca
Muito se comentou, em artigos jurídicos produzidos nas últimas semanas, a respeito da decisão do comitê do Prêmio Nobel em conceder o prêmio de Economia deste ano a Richard Thaler, um dos expoentes da chamada Economia Comportamental. O fato já é, em si, digno de nota. Antes tema restrito aos jornais com viés econômico ou destinados a assuntos gerais, a simples repercussão da premiação em textos com conteúdo jurídico já demonstra algum interesse ou curiosidade pelo assunto, em outras palavras, uma abertura, mesmo que ainda incipiente, a outras disciplinas e suas possíveis contribuições para o Direito.

Não é a primeira vez que a escola da Behavioral Economics (Economia Comportamental, em português) é agraciada com esse reconhecimento. Ainda no ano de 2002, o prêmio foi conferido a Daniel Kahnemann, exatamente por pesquisas produzidas no âmbito dessa escola, que pretende utilizar elementos de Psicologia Comportamental para a melhor compreensão do processo de tomada de decisão (econômica) pelos indivíduos. Ao agregar elementos que permitem uma melhor compreensão das características de expressão da racionalidade humana, por descrever e sistematizar padrões de comportamento humanos que destoam do ideal de atuação conforme seu próprio interesse, a Economia Comportamental fornece insights relevantes para a própria produção de normas jurídicas ou de políticas públicas.

A propósito do tema, parece evidente a todo aquele que se debruça sobre suas contribuições a constatação de que, no campo jurídico, a matéria em que a Behavioral Economics melhor se amolda consiste, exatamente, na disciplina jurídica da proteção do consumidor, especialmente à teoria construída no Brasil. Ao deparar-se com a principal premissa da escola, a chamada racionalidade limitada, imediatamente o estudioso do Direito do Consumidor brasileiro é levado a traçar paralelos e identificar convergências com o princípio basilar do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da vulnerabilidade. Sem sombra de dúvidas que a construção teórica conhecida como “racionalidade humana limitada” oferece valiosíssimas bases empíricas de confirmação do princípio da vulnerabilidade do consumidor e pode propiciar a construção de abordagens normativas realmente eficazes e que visem compensar essa condição. Não se desenvolverá mais aqui o tema, o que já foi feito em texto anterior publicado neste mesmo espaço. Fato é que, apesar de todo o sucesso global atribuído às constatações obtidas pela Escola da Economia Comportamental, ela ainda goza de pouco prestígio e muita resistência pelos juristas brasileiros vocacionados para a defesa do consumidor.

Talvez essa resistência se explique pelo próprio modelo de teoria jurídica que se faz no Brasil, ou, essencialmente, em países de civil law, em que o Direito praticamente confunde-se com a lei e em que problemas como as consequências, os efeitos ou os fins do Direito são considerados metajurídicos ou a ele alheios[1]. Ou talvez a resistência resida no fato de que essa escola desenvolveu-se a partir dos estudos de Law and Economics, tido por muitos como uma abordagem essencialmente pautada pela compreensão de um Estado mínimo, o que denota incompreensão e desconhecimento a seu respeito[2].

Nesse cenário de resistências, talvez o primeiro passo de convergência a se dar deva se encontrar na sensibilização dos juristas nacionais para a importância de se empreender pesquisas empíricas em Direito no Brasil, se não interdisciplinares, o que seria o mais desejável, ao menos dentro dos limites da própria dogmática jurídica. Conhecer o tipo de demanda consumerista de maior incidência nos tribunais e se ela tem se alterado no tempo, descobrir se há divergências entre as questões consumeristas postas aos tribunais em diferentes regiões do país e descrever o crescimento ou a diminuição de demandas envolvendo responsabilidade do fornecedor em detrimento de demandas envolvendo cláusulas contratuais são exemplos de trabalhos ainda a serem produzidos no país[3].

Uma feliz iniciativa oficial no campo da produção empírica em Direito no Brasil encontra-se na publicação, pelo Conselho Nacional de Justiça, do relatório Justiça em Números, já em sua 14ª edição[4]. Reiteradamente, em todos os anos, destaca-se nesses relatórios o altíssimo percentual de demandas consumeristas nos Juizados Especiais nacionais em relação às demandas em geral, volume esse que não se repete em sua grandiosidade nos demais órgãos dos tribunais, embora nesses também encontre referências relevantes. Poucos são os estudiosos do Direito do Consumidor brasileiros que conhecem esses dados. Tampouco se debruça adequadamente sobre eles, propondo soluções, levando-os em consideração. Em um cenário de amplo acesso à informação autorizado pela popularização da internet e constatando-se a produção crescente de dados por parte das instituições oficiais brasileiras, por meio das técnicas de Business Intelligence (B.I), é inaceitável que não se verifique, sempre que o pesquisador se proponha a produzir texto acadêmico em Direito, com distanciamento e objetividade, a própria realidade jurídica inerente ao tema em estudo.

Uma outra manifestação preocupante da falta de intimidade do pesquisador de Direito (não apenas do Direito do Consumidor) com a pesquisa empírica no Brasil reside no fato de que não raro se depara com trabalhos acadêmicos (monografia, dissertação ou tese de doutorado) em que seu autor claramente inicia a sua elaboração com o propósito deliberado de se comprovar a hipótese (ou aquilo que o pesquisador desde sempre achava)[5]. Embora os manuais de metodologia de produção de trabalho acadêmico em Direito evidenciem, de modo geral, a importância de se ter um problema, uma hipótese, de testá-la e de, eventualmente, refutá-la, a defesa apaixonada de um ponto de vista em um trabalho acadêmico o fragiliza e acaba por não contribuir para o desenvolvimento sólido da própria dogmática.

Reitera-se, em conclusão, que o ideal seria, valendo-se dos ensinamentos propiciados pela Law & Economics ou a Behavioral Economics, que se produzisse mais pesquisas empíricas no Brasil e que elas ocorressem no campo interdisciplinar. Sem sombra de dúvidas, contribuições da Economia e da Psicologia permitiriam auxiliar na identificação dos efeitos das normas jurídicas, das consequências de sua aplicação ao caso concreto, entre outras informações inegavelmente úteis para fins de análise de eficácia do Direito. Especificamente no âmbito do Direito do Consumidor, pesquisas dessa ordem seriam hábeis a identificar se uma dada iniciativa legislativa, por exemplo, é capaz de conduzir ao efeito de bem-estar desejado ou se toda regulação que se imagina pró-consumidor efetivamente enseja maior bem-estar dessa categoria de sujeitos.

Na produção acadêmica em Direito do Consumidor feita no Brasil, sistematicamente desenvolvem-se teorias ou soluções a partir de interpretações possíveis das normas, dos princípios ou da Constituição em confronto com os casos ou dos problemas concretos que se apresentam. Essa forma de abordagem por certo foi relevante na fase inicial de afirmação do direito social, mas se corre o risco de se esgotar suas forças. Acredita-se, sinceramente, que o melhor resultado, na fase atual de efetividade do direito, envolva considerações sobre a capacidade das soluções normativas ou regulatórias desenhadas para a consecução dos objetivos desejados. Mas enquanto não se admite isso com muita tranquilidade, espera-se que, ao menos, os acadêmicos estejam atentos ao contexto jurídico real, e isso necessariamente passa pela pesquisa empírica, ainda que dentro dos muros do próprio Direito.


[1] Desenvolvi melhor o tema em OLIVEIRA, Amanda Flávio de. O Direito da Concorrência e o Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
[2] Essencial, a esse título, a leitura de: THALER, Richard H. & SUNSTEIN, Cass R. Libertarian Paternalism. The Americain Economic Review, vol. 93, n. 2, Papers and Proceedings of the One Hundred Fifteenth Annual Meeting of the Americain Economic Association, Washington, DC, January 3-5, 2003 (May, 2003), pp. 175-179.
[3] O grande entusiasta da produção de pesquisas empíricas em Direito e leitura obrigatória para todos os que se interessam pela temática é Thomas Ullen: Ulen, Thomas S., A Nobel Prize in Legal Science: Theory, Empirical Work, and the Scientific Method in the Study of Law. University of Illinois Law Review, Vol. 2002, No. 4. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=419823 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.419823.
[4] Confira em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros
[5] Segundo Maria Tereza Leopardi Mello, não haveria, dessa forma, diferença entre um trabalho acadêmico em Direito e um parecer jurídico. MELLO, Maria Tereza Leopardi. O Direito, a pesquisa empírica e a Economia. In: PORTO. Antonio Maristrello e SAMPAIO, Patrícia. Direito e Economia em dois mundos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, pp. 145-155.

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