Contas à Vista

Decretos de contingenciamento e de desinvestimento são "cheques em branco"?

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7 de novembro de 2017, 7h03

Spacca
No decorrer deste 2017, há tanta pressa em reduzir o tamanho do Estado brasileiro que algumas medidas têm sido tomadas ao arrepio da Constituição de 1988 e sem o devido debate circunstanciado com a sociedade.

A bem da verdade, a pressa aparenta soar reclamo de governabilidade em face da crise econômica e das suas repercussões fiscais, como se houvesse a possibilidade de majoração da discricionariedade do Executivo apenas por força da alegação abstrata de motivos de fato controversos, independentemente de haver permissivo legal específico para cada estratégia adotada.

Ocupo-me, nesta coluna de hoje, especialmente do contraste entre os Decretos nº 8.961 e 9.188, ambos do corrente ano, que cuidam respectivamente do contingenciamento na programação orçamentário-financeira da União e do desinvestimento de ativos pelas sociedades de economia mista federais.

A rota adotada tanto em um, quanto no outro é semelhante: ato infralegal de autoria do Presidente da República delega atribuições profundamente sensíveis a instâncias inferiores do Executivo federal, cuja validade, contudo, reclama lei específica e obediência aos ditames constitucionais que as regem.

Passemos, pois, ao exame de alguns aspectos dos decretos mencionados, a começar pelo decreto de contingenciamento, onde se dá – na concretude da execução orçamentária – a definição das reais prioridades alocativas do Estado em nosso país.

O que salta aos olhos, em uma análise acurada sobre o decreto onde o governo federal promove a fixação dos limites de empenho e de pagamento para fins de programação financeira e de cronograma mensal de desembolso, é que a autoridade que detém a chave do cofre não segue as detidas balizas constitucionais sobre as chamadas “despesas obrigatórias”.

Digo isso porque, no artigo 2º, parágrafo 6º do Decreto 8.961/2017, há um verdadeiro cheque em branco para que o(a) Secretário(a) do Tesouro Nacional altere o fluxo de pagamentos das despesas obrigatórias, cujo impacto[1] para os pisos de custeio da saúde e educação simplesmente tem o condão de definir a base de cálculo real a que tais direitos estarão submetidos a partir de 2018, na forma do artigo 110, inciso II do ADCT. Não fosse extremamente trágico, nós nos daríamos apenas por assustados com a informação de que há o severo risco de rolagem – como restos a pagar – de montante superior a R$40 bilhões do gasto mínimo federal em saúde para o campo das promessas não cumpridas, já que não há margem fiscal no teto global da União (dado pela Emenda 95/2016) para quitá-los em 2018 ou mesmo até 2036.

O problema é tão sério que o próprio relatório resumido de execução orçamentária (disponível neste link) fez constar expressamente um déficit proporcional de aplicação pela União no seu piso em saúde de quase R$10 bilhões, no acumulado até setembro[2]. Isso sem falar no saldo já volumoso de restos a pagar já computados no piso federal em saúde em anos anteriores, mas ainda pendentes de processamento e quitação (R$ 8,6 bilhões), tampouco sem incluir o montante de despesas não consideradas isolada e tecnicamente como “obrigatórias” (R$ 28,7 bilhões), ainda que essas componham o conceito de “ações e serviços públicos de saúde” para os devidos fins de aplicação mínima a que se refere o artigo 198, parágrafo 2º da Constituição.

Temos, portanto, uma distorção fiscal que pode colapsar o financiamento federativo do SUS e isso passa pela “liberdade” de a STN liberar o fluxo de pagamento das suas dotações já empenhadas.

Na educação, há também um saldo considerável de restos a pagar (superior a R$11 bilhões) sem margem fiscal para quitação neste 2017 e quiçá também não exista horizonte de pagamento para os próximos 19 anos…

Eis o que venho chamando de precatorização do piso de custeio da saúde e que tende a se alastrar para o custeio das instituições federais de ensino superior e tecnológicas, excetuadas desse processo de falta de lastro financeiro para quitação tão somente as despesas com a folha.

Em tempos de propalada (seletiva?[3]) austeridade fiscal, invoco a célebre construção do Ministro Ayres Britto feita na ADI 4048, segundo a qual a lei orçamentária seria, abaixo da Constituição, a lei mais importante da República, para infelizmente dela divergir. Tamanho é o nível de descolamento entre os ditames constitucionais e a realidade das políticas públicas que ouso dizer: o decreto de contingenciamento tem sido faticamente mais importante do que a Constituição e a lei de orçamento, haja vista o horizonte que o Teto Fiscal vintenário, tal como previsto no ADCT pela Emenda 95/2016, impõe ao Brasil. Ora, nada mais importante do que saber o que, na crueza dos números financeiros, será pago ou simplesmente deixará de ser realizado, em rota de adiamento sem programação de data que admita contemporização com o calendário das demandas sociais por efetividade dos ditames constitucionais…

Vale lembrar, a propósito, que as disposições introduzidas pelo “Novo Regime Fiscal” não constituirão obrigação de pagamento futuro pela União, conforme estabelece o art. 112, inciso I do ADCT. Ou seja, há uma suspensão temporária (chego a suspeitar de um “Estado de Sítio Fiscal”) da eficácia de direitos e programas extremamente relevantes que podem por a perder, dentre outras agendas nucleares, nada menos que o Sistema Único de Assistência Social – SUAS[4] e quase toda a trajetória histórica de investimento (porque de investimento, na realidade, é que se trata) na produção do conhecimento científico de base[5].

Ao lado desse grande “cheque em branco” dado à Secretaria do Tesouro Nacional, a título de controle do fluxo de pagamentos, foi erigida genericamente, no artigo 1º, parágrafo 3º do Decreto nº 9.188/2017, a autorização da alienação total de ativos das empresas estatais, sobretudo no que se refere ao patrimônio físico, direitos e participações mobiliárias, diretas ou indiretas, das sociedades subsidiárias e controladas de sociedades de economia mista.

Ora, um simples decreto, a pretexto de “estabelece[r] regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a adoção de regime especial de desinvestimento de ativos pelas sociedades de economia mista federais”, estaria a permitir que tais entidades da administração indireta promovam estratégias de transferência para terceiros do domínio de todas, repito, TODAS “as unidades operacionais e os estabelecimentos integrantes do seu patrimônio, os direitos e as participações, diretas ou indiretas, em outras sociedades”.

O nível da discricionariedade pretendida em tal processo de “desinvestimento” pode colocar em xeque a própria existência da empresa estatal como uma entidade autônoma, sem que tenha havido sua extinção formal por lei. No caso das sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, há também o risco de não se ter a adequada avaliação para fins de desafetação dos seus bens móveis e imóveis vinculados à própria continuidade de tais serviços.

Todas as variáveis em jogo indicam haver sérias desconformidades jurídicas nessa busca desenfreada pela majoração da liberdade decisória no contingenciamento ao longo do ciclo orçamentário da União e no desinvestimento genérico com a alienação in totum de ativos das empresas estatais, tal como evidenciadas nos respectivos decretos sob exame.

Obviamente não são admissíveis tais estratégias, ainda que se invoque argumentos de “discricionariedade técnica”, já que não há fundamento técnico que se justifique em si mesmo e a própria ciência admite a refutabilidade de suas respostas aos problemas do mundo da vida. Aceita-se um argumento como plausível cientificamente porquanto se abra a construção dos seus pressupostos à análise de todos quantos queiram testá-lo. Ou seja, mesmo o discurso econômico, pretensamente científico, é um discurso aberto/ poroso ao controle de terceiros interessados. Some-se a isso o influxo indispensável da legalidade, que não pode ser preterida por disposição de vontade do Chefe do Executivo em seus decretos, os quais são, por definição, inferiores e adstritos às leis que lhes regem.

Em raciocínio limítrofe, se há liberdade para analisar subjetivamente ―conveniência e oportunidade, não se está a cumprir – de forma objetiva e motivada – regras técnicas que balizariam a adoção de determinada conduta na liberação do fluxo de pagamentos das despesas obrigatórias ou no programa de desinvestimento das empresas estatais. Eis, aliás, a razão pela qual é preciso refutar, por exemplo, a afirmação[6] do Presidente do Banco Central de que tal instituição já goza, na prática, de independência (sinônimo de discricionariedade absoluta?), quando, à toda evidência, nosso ordenamento não a prevê.

Atrás da seara de pretensões técnicas racionalmente indiscutíveis, escondem-se, por vezes, movimentos inconstitucionais. Nesse sentido, não se pode olvidar a questão de como, em contextos que se pretendem democráticos, pode acabar resultando em tirânica ou mesmo paternalista a assimilação do papel de uma classe econômica sacerdotal que determina parte significativa dos rumos de uma comunidade, sem elucidar – para todos os interessados – os processos de decisão e as opções político-normativas segundo as quais tais rumos são definidos.

De minha parte, como cidadã e inquieta defensora dos direitos fundamentais que reclamam, por bem ou por mal, atuação positiva do Estado, reitero que os decretos de contingenciamento e de desinvestimento das empresas estatais não são, nem podem ser “cheques em branco”.

Se admitirmos isso ou nada fizermos para impugnarmos tamanha discricionariedade, ao arrepio das nossas balizas jurídicas, certamente nos deixaremos governar por autoridades econômicas que negam cumprimento à Constituição, a pretexto de estarem amparadas, pasmem, por decretos…


[1] Como já suscitado em https://www.conjur.com.br/2017-abr-25/contas-vista-minimos-minorados-iminencia-congelamento-20-anos
[2] Conforme se lê na página 35 do RREO federal, no exame da execução orçamentária acumulada até setembro de 2017, o déficit proporcional no piso federal da saúde é de –R$9,761 bilhões.
[3] Não há restrição fiscal para renúncias de receitas, atendimento a emendas parlamentares e demais acatamentos típicos do fisiologismo fiscal, como se pode ler, por exemplo, em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,custo-de-denuncias-contra-temer-alcanca-r-32-1-bi,70002059125 e https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/10/31/estudos-apontam-perdas-de-r-1-tri-em-renuncia-fiscal-com-leilao-do-pre-sal.htm
[4] O que está em debate é uma redução de até 97% nas dotações disponíveis para a assistência social, como se pode ler em http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2017/setembro/menos-um-direito-corte-orcamentario-inviabiliza-programa-de-assistencia-social e http://www.valor.com.br/brasil/5182733/orcamento-de-2018-reduz-verba-do-bolsa-familia
[5] Os cortes em ciência e tecnologia em 2017 chegam a 44% e podem prosseguir em 2018, com nova queda de outros 15%, como se pode ler em http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,cortes-na-ciencia-ameacam-o-futuro-do-brasil-dizem-ganhadores-do-nobel,70002021809 e https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/04/19/corte-no-orcamento-da-ciencia-e-tecnologia-e-criticado-em-audiencia
[6] Como se pode ler em http://www.valor.com.br/financas/5183279/banco-central-ja-tem-independencia-de-fato-sustenta-ilan

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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