Academia de Polícia

Delegado pode e deve aferir convencionalidade das leis

Autores

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

7 de novembro de 2017, 9h30

Spacca
Caricatura Ruchester Marreiros e Henrique Hoffman [Spacca]Sabe-se que o delegado de polícia age stricto sensu em nome do Estado[1], integrando carreira jurídica[2] e exercendo função essencial à Justiça.[3] Pela natureza e relevância de suas atribuições, a autoridade de Polícia Judiciária deve dominar o ordenamento jurídico não apenas nacional, mas também internacional. Isso engloba, portanto, tanto as normas constitucionais (incluindo tratados internacionais de direitos humanos aprovados com quórum de emenda constitucional — artigo 5º, §3º da CF) quanto as normas infraconstitucionais, sejam supralegais (tratados internacionais de direitos humanos aprovados sem quórum de emenda constitucional) ou legais (leis e tratados internacionais em geral).[4]

Ocorre que nem sempre a legislação ordinária guarda compatibilidade vertical com a Constituição e com os tratados internacionais, razão pela qual deve ser realizado o controle dessas normas com base nos referidos parâmetros. Daí se falar em controle de constitucionalidade e de convencionalidade, respectivamente.

Diferentemente do controle de constitucionalidade, cujo estudo vem de longa data, o controle de convencionalidade é assunto novo. Discutido apenas recentemente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,[5] foi sistematizado pela doutrina brasileira de forma pioneira pelo professor Valerio Mazzuoli.[6]

O controle de convencionalidade consiste na análise da harmonia das normas internas em face das normas internacionais. Pode ser classificado em: a) internacional (externo, definitivo), quando exercido por órgão internacional (especialmente órgãos da ONU e Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso brasileiro); e b) nacional (interno, preliminar), quando efetuado por órgão nacional, subdividindo-se em concentrado (STF) ou difuso (qualquer magistrado ou órgão administrativo).

O parâmetro no controle de convencionalidade externo é a norma internacional (principalmente o Pacto de São José da Costa Rica, no caso do Brasil), enquanto o objeto do controle é a norma nacional, independentemente da hierarquia interna. Vale lembrar que não só a Convenção Americana de Direitos Humanos é paradigma para o controle de convencionalidade, mas qualquer tratado internacional de direitos humanos, como se depreende do entendimento da Corte IDH[7] e da própria redação do Pacto de São José da Costa Rica (artigo 64.1).

Importante pontuar que no controle de convencionalidade deve-se ter em conta não somente o tratado internacional, mas também a interpretação dada a ele pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, intérprete última da Convenção Americana de Direitos Humanos e detentora da última palavra quanto aos direitos humanos ali positivados.[8]

Todavia, ao contrário do que muitos imaginam, o controle de convencionalidade nacional não é menos importante do que o internacional. Na verdade:

o controle de convencionalidade internacional é apenas coadjuvante ou complementar do controle oferecido pelo Direito interno, como destaca inclusive o segundo considerando da Convenção Americana, que dispõe ser a proteção internacional convencional “coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos”.[9]

Nessa esteira, o controle nacional deve obedecer à interpretação elaborada pelo controle internacional. É preciso que ambas as esferas de controle interajam e se influenciem reciprocamente, permitindo o diálogo entre o Direito Interno e o Direito Internacional.[10]

Pois bem. A Corte IDH possui jurisprudência expressa no sentido de que a obrigação de controlar a convencionalidade das normas internas é dever não só dos juízes, mas também de outros órgãos do Estado, nos limites de suas atribuições:

Quando um Estado é parte em um tratado internacional como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, incluídos seus juízes, estão a ele submetidos, o qual os obriga a velar a que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam diminuídos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e fim, pelo que os juízes e órgãos vinculados à administração da Justiça em todos os níveis têm a obrigação de exercer ex officio um “controle de convencionalidade” entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas respectivas competências e das regras processuais correspondentes, e nesta tarefa devem levar em conta não somente o tratado, senão também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.[11]

Claro que nem todo órgão administrativo possui essa missão, mas apenas aqueles que concentram relevantes poderes estatais capazes de atingir diretamente (por autoridade própria) o núcleo da franquia de liberdades dos cidadãos. O Tribunal Internacional já sinalizou, quanto ao órgão administrativo competente, que:

(…) ditas características não só devem corresponder aos órgãos estritamente jurisdicionais, senão que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também às decisões de órgãos administrativos. Toda vez que em relação a essa garantia corresponder ao funcionário a tarefa de prevenir ou fazer cessar as detenções ilegais ou arbitrárias, é imprescindível que dito funcionário esteja facultado a colocar em liberdade a pessoa se sua detenção for ilegal ou arbitrária.[12]

Ideia semelhante é encontrada nas Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Criança e do Adolescente (Regras de Pequim – Resolução 40/33 da ONU), que estabelece que, na regra segundo a qual um juiz, oficial ou organismo competente deve considerar a liberação, está abrangida a autoridade policial.

Nesse panorama, o delegado de polícia é, na dicção da Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 7.5), outra autoridade autorizada por lei a exercer função judicial, tendo a atribuição de analisar juridicamente os fatos ocorridos aplicando a lei ao caso concreto, ainda que em juízo de cognição sumária.[13] Fácil perceber que a Polícia Judiciária tem a importante missão de assegurar que as investigações criminais se mantenham em sintonia com um país democrático, projetando-se o delegado de polícia como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos.[14]

Daí o preciso ensinamento de Valerio Mazzuoli:

Certo, portanto, é que tanto a Polícia Federal quanto a Polícia Civil têm o dever de aplicar as garantias previstas nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil no exercício de suas funções, da mesma forma que também devem destinar aos cidadãos (investigados, detidos etc.) todas as garantias estabelecidas pela Constituição Federal. Assim, não há dúvida ter a Polícia Judiciária papel importante a desempenhar na defesa dos direitos humanos, à luz tanto da Constituição Federal quanto dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados e em vigor no Brasil. (…)

A Polícia Judiciária não só pode como deve aferir a convencionalidade das leis no caso concreto, sugerindo que sejam invalidados os dispositivos legais que violem tratados de direitos humanos em vigor no Estado ou o bloco de convencionalidade (costumes internacionais relativos a direitos humanos, sentenças e opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos etc.). Poderá o Delegado de Polícia, assim, detectar a inconvencionalidade de norma interna que inviabilize, v. g., a efetivação de uma garantia amparada pelo sistema internacional de proteção de direitos humanos.[15]

A cautelaridade da atuação do delegado de polícia é evidente. A autoridade de Polícia Judiciária relativiza a todo momento direitos fundamentais manu propria, a exemplo da liberdade (prisão em flagrante), da propriedade (apreensão de bens) e da intimidade (requisição de dados). Ou seja, as decisões da autoridade policial repercutem nos bens jurídicos mais caros ao cidadão, e por isso mesmo afetam as circunstâncias do indivíduo e com isso o próprio eu.[16]

Com efeito, a análise de convencionalidade pela Polícia Judiciária é sempre difusa, no caso concreto. O delegado de polícia não retira a norma inconvencional do ordenamento jurídico, mas apenas deixa de aplica-la (fazendo incidir outra norma, esta sim convencional) ao tomar a decisão fundamentada para preservar direitos fundamentais dos envolvidos. Deve ser afastada pela autoridade policial a fonte normativa de menor garantia, sendo efetivada portanto a de maior proteção em nome do princípio pro homine.[17]

Outrossim, ao detectar uma norma inconvencional, é dever do delegado de polícia tomar decisão fundamentada deixando de aplicá-la (o que não significa sua expurgação do ordenamento jurídico, repita-se). Na sequência, para garantir o rápido controle judicial, deve a autoridade policial remeter cópia do procedimento (incluindo a decisão motivada) ao juiz em exíguo lapso temporal de 24 horas, por analogia (artigo 3º do CPP) com o prazo da remessa de cópia do auto de prisão em flagrante (artigo 306, §1º do CPP) e do envio da decisão de concessão de medidas protetivas de urgência (artigo 12-B, §1º da Lei 11.340/06 conforme Projeto de Lei 7/14 aprovado pelo Congresso).

O magistrado deve decidir também com celeridade, em prazo de 48 horas, analogicamente à decisão de fiança (artigo 322, parágrafo único do CPP) e de medidas protetivas de urgência (artigo 18 da Lei 11.340/06). Assim poderá manter o entendimento ou adotar posição diversa, em harmonia com o estatuído no artigo 7.6 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Isso significa que a deliberação do delegado de polícia sobre a convencionalidade ou não da lei, a par de sua enorme importância, não é definitiva, mas dotada de precariedade, como toda medida de caráter cautelar, em exercício de um juízo de valor de cognição sumária, tendo em conta que será revisada a posteriori pela instância judicial.

Em outras palavras, diante de gritante afronta a Constituição, tratados internacionais de direitos humanos e conjunto de decisões interpretativas da Corte IDH, ou seja, malferido o bloco de convencionalidade, a autoridade policial não deve aplicar a lei violadora, mas aquela que se encontra de acordo com o arcabouço normativo.

Nenhuma perplexidade causa essa constatação. Diuturnamente o delegado de polícia faz análises técnico-jurídicas (artigo 2º, §6º da Lei 12.830/13) nesse viés, como por exemplo ao negar a incomunicabilidade do investigado. Apesar de autorizada pelo artigo 21 do CPP, a não comunicabilidade do preso viola a Constituição, que veda a incomunicabilidade mesmo em Estado de Defesa (artigo 136, § 3°, IV), e assegura a comunicação ao juiz, à família ou à pessoa indicada (artigo 5°, LXII), bem como a assistência da família e de advogado (artigo 5°, LXIII). A restrição fere de morte também as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela – regra 92). Se ninguém espera que o delegado de polícia aplique irracionalmente regras como esta, não faz sentido defender a aplicação de outras normas nonsense.

Tampouco gera espanto a aferição da inconvencionalidade de leis realizada por outros órgãos administrativos, tais como Ministério Público quando deixa de denunciar por fato que supostamente configura desacato, ou Defensoria Pública quando postula a obrigatoriedade da participação da defesa na investigação policial. As atuações não são definitivas e não subtraem o controle judicial.

No que tange ao controle difuso de convencionalidade, a Corte IDH não o limita a pedido expresso das partes em um caso concreto. Na verdade determina a analise a compatibilidade das leis de ofício sempre que detectar a violação a um tratado internacional de direitos humanos de que o Estado seja parte.[18]

Nessa esteira, reconhecer o dever de detectar a inconvencionalidade das leis por uma carreira jurídica como a do delegado de polícia, que lida diariamente com mitigação de direitos dos cidadãos, nada mais é do que seguir os ditames interpretativos da Corte IDH e da melhor doutrina internacionalista.

Aliás, sabendo que a omissão na realização do controle de convencionalidade pode acarretar a responsabilidade internacional do Brasil,[19] a proatividade da autoridade de Polícia Judiciária em detectar inconvencionalidades, não aplicar a lei absurda e submeter o caso imediatamente ao juiz é a providência que melhor atende ao sistema de proteção de direitos humanos.

Entender o contrário criaria verdadeira zona de exceção na fase de investigação criminal, como se a etapa pré-processual constituísse bolha imune à incidência dos tratados internacionais de direitos humanos. Equivaleria a inverter o trapézio normativo e subjugar as normas internacionais que o Brasil se obrigou a respeitar.

Em conclusão: a aferição da convencionalidade das leis pelo delegado de polícia no caso concreto, mais do que um poder aleatório conferido ao cargo, consubstancia-se garantia do cidadão.


1 STJ, RMS 43172, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 22/11/2013.

2 STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007; art. 2º da Lei 12.830/13.

3 NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 178.

4 Conforme atual orientação do STF (RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 05/06/2009), ainda que contrariando a classificação doutrinária majoritária no Direito Internacional.

5 Embora a nomenclatura tenha sido utilizada no Caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala (Sentença de 25/11/2003), a Corte IDH abordou a obrigatoriedade de controle interno somente no Caso Almonacid Arellano e Outros vs. Chile (Sentença de 26/09/2006).

6 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: RT, 2009.

7 Corte IDH, Caso Gómez Palomino vs. Peru, Sentença de 22/11/2005.

8 Corte IDH, Caso Almonacid Arellano e Outros vs. Chile, Sentença de 26/09/2006; Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, Sentença de 24/11/2010.

9 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 4.ed. São Paulo: GEN/Método, 2017, p. 169.

10 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 358.

11 Corte IDH, Caso Gelman vs. Uruguai, Sentença de 24/02/2011.

12 Corte IDH, Caso Jesus Vélez Loor vs. Panamá, Sentença de 23/11/2010.

13 BARBOSA, Ruchester Marreiros. Função de Magistratura da Autoridade de Polícia Judiciária. In: HOFFMANN, Henrique. et al. Polícia Judiciária no Estado de Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 64.

14 HOFFMANN, Henrique. Polícia Judiciária e Garantia de Direitos Fundamentais. In: HOFFMANN, Henrique. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 6.

15 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 4.ed. São Paulo: GEN/Método, 2017, p. 464/469.

16 Na famosa expressão de Ortega y Gasset.

17 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.146.

18 Corte IDH, Caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso vs. Peru, Sentença de 24/11/2006.

19 Corte IDH, Caso Cabrera García e Montiel Flores vs. México, Sentença de 26/11/2010.

Autores

  • Brave

    é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers, do Supremo, da Escola da Magistratura do Paraná e de Mato Grosso, da Escola do Ministério Público do Paraná e da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná. Mestrando em Direito pela Uenp e autor de livros e palestrante. www.henriquehoffmann.com

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    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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