Direito e Economia

"Rumo ao colapso, Judiciário brasileiro privatiza ganhos e socializa custos"

Autor

6 de novembro de 2017, 5h42

O mundo dos negócios está exigindo uma nova postura do Poder Judiciário, pois os jurisdicionados não querem mais a simples a interpretação de textos legais na análise dos seus casos: passaram a exigir que os julgadores conheçam o mercado nos quais suas empresas se inserem.

Esta "revolução silenciosa" é apontada pelos estudiosos da Análise Econômica do Direito (AED), que pode ser definida como a aplicação da teoria econômica e dos métodos econométricos no exame da formação, da estrutura, dos processos e dos impactos do Direito e das instituições legais.

Uma boa mostra de como este movimento se articula se deu no X Congresso Anual da Associação Brasileira de Direito e Economia, em Porto Alegre, promovido pela Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE).

Entre os palestrantes do evento estava o advogado e professor Ivo Gico Júnior, sócio da banca Gico, Hadmann & Dutra Advogados, com sede em Brasília-DF.

Palestrante no Brasil e no exterior sobre temas diversos, em especial versando sobre a Análise Econômica do Direito, ele é autor e editor de vários livros, incluindo Cartel: Teoria Unificada da Colusão e O Jurista que Calculava.

Em entrevista à ConJur, ele explicou como o Judiciário brasileiro tende ao colapso por privatizar os ganhos e socializar os custos. 

Ivo Gico Júnior é doutor em Economia pela Universidade de Brasília e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestre pela Columbia Law School (James Kent Scholar) e especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasiliense de Ensino e Pesquisa (IBEP).

Ele dá aulas no mestrado e no doutorado do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), onde leciona Direito Regulatório, Direito Concorrencial e Direito dos Contratos.

Leia a entrevista:

ConJur — É possível afirmar que a crítica econômica, que se dá pela apuração de custos, complementa a crítica jurídica, que analisa a legalidade das condutas humanas?
Ivo Gico Jr. Eu diria que são complementos perfeitos. É impossível resolver todos os problemas apenas com critério de legalidade. Aliás, se fosse possível, o Judiciário não seria a bagunça que se vê hoje. O fato é que, em inúmeros casos, o Judiciário precisa escolher entre as interpretações possíveis. É muito comum, no caso concreto, a mesma lei ser interpretada de forma ‘‘a’’ e de forma ‘‘b’’, sem muito ‘‘truque’’, sendo linguisticamente honesto. Eu chamo isso de ‘‘a hermenêutica das escolhas’’. O problema é que o jurista não foi treinado para escolher, porque ele só sabe interpretar texto. Não tem instrumental para escolher entre as interpretações possíveis. Esta escolha precisa levar em conta as consequências sociais. Nós, da Análise Econômica do Direito, temos o ferramental para ajudar a entender as consequências das escolhas. Então, eles são complementos perfeitos entre legalidade e consequencialismo.

ConJur — O senhor teria um exemplo prático, emblemático, deste consequencialismo?                                                                                        
Ivo Gico Jr.
Uma das questões que a gente trabalha muito é a função social e o Judiciário. No Brasil, privatizamos os ganhos e socializamos os custos. Isso leva ao colapso da nossa civilização. Exemplo clássico disso é que, quando se ajuda, com privilégios, um indivíduo, pode-se prejudicar o grupo, gerando resultados contraintuitivos e contrários ao que se desejava no início. Vamos pegar o caso de um juiz que se recusa a despejar um inquilino idoso e doente porque ele não pôde pagar o aluguel. O juiz invoca o que a gente chama de ‘‘supertrunfo jurídico’’ — o princípio da dignidade da pessoa humana —, ‘‘barco’’ que cabe absolutamente qualquer coisa. Ele diz para o dono do imóvel: ‘‘Olha, o seu interesse no seu apartamento é meramente econômico’’. Isso é um grande erro. Jurista acha que econômico significa dinheiro. Resultado de falta de estudo. Aí, ele diz: ‘‘Como o seu interesse no apartamento é meramente econômico, eu vou botar o interesse que eu acho superior, chamado dignidade da pessoa humana, e não vou deixar você despejá-lo’’. Em lugar nenhum da Constituição está dito isso. A propriedade privada é um direito fundamental e está protegida tanto no artigo 5º quanto no artigo 170 da Constituição. Ou seja, nos capítulos dos Direitos e Garantias Fundamentais e da Ordem Econômica e Financeira. Mas o juiz vai esconder isso, porque ele não pode reconhecer que a propriedade é um direito fundamental. Por quê? Porque este reconhecimento impede o argumento dele. Enfim, ele decidiu que não despejará o idoso porque o idoso é um… idoso. Aquele idoso está protegido, mas o grupo formado de pessoas que têm apartamento para alugar — muitas, inclusive, idosas — sairão perdendo. No caso dos idosos, aquele imóvel significa renda extra, para complementar a aposentadoria.

ConJur — Qual é a consequência?                                                                     
Ivo Gico Jr. Estas pessoas agem racionalmente. Se vivem da renda deste apartamento e não podem despejar idoso inadimplente, serão mais seletivos ao alugar para alguém, preterindo outros. Pronto! Esta decisão jurídica acaba de criar a exclusão dos idosos do mercado de aluguel. Ou seja, no afã de proteger apenas um indivíduo, a decisão jurídica colocou em perigo o grupo que mais precisa de proteção, que não tem dinheiro para comprar uma casa e precisa morar de aluguel. Esta é a essência da injustiça que o Judiciário brasileiro perpetua quando se recusa a aplicar a lei e a ordem para proteger grupos específicos, gerando resultados completamente contraditórios ao que desejava no começo. Mas os juízes não foram treinados a pensar em consequências. Com a vitória de um idoso, houve privatização do ganho. E com a derrota de todos os demais idosos, houve a socialização do custo.

ConJur — O senhor diz que a AED emprega, principalmente, modelos mentais e ferramentas analíticas típicas da Economia para a discussão de temas jurídicos. Poderia citar alguns conceitos centrais da Microeconomia?                                                                                             
Ivo Gico Jr. Existem alguns conceitos absolutamente simples que mesmo o homem médio consegue aceitar. O primeiro deles é que as pessoas, na média, se comportam de forma racional, buscando o melhor para o interesse delas. O segundo conceito básico é que as necessidades humanas são, praticamente, infinitas. Nós queremos absolutamente tudo. Aliás, todo mundo quer tudo, e isso é um problema. O terceiro conceito fundamental é o da escassez dos recursos, o que significa dizer que não dispomos de recursos suficientes para satisfazer as necessidades humanas de todo o mundo. Então, os seres humanos, racionalmente agindo, vão disputar estes escassos recursos. E esta é a consequência dos três primeiros conceitos — que é a concorrência. Nós concorremos por tudo na vida: por boas esposas, bons maridos, bons postos de trabalho etc., assim como o país concorre com outras nações pelos nossos produtos.

ConJur — Tudo o que transita pelo universo do Direito pode sofrer o escrutínio da Economia?                                                                                
Ivo Gico Jr.
Eu diria o contrário. O Direito é a arte do conflito. Só existe o Direito porque os seres humanos, em algum momento, entram em conflito. Aí, entra o Direito, para trazer a paz social. O conflito necessariamente decorre do fato de que não é possível satisfazer ambas as partes ao mesmo tempo. É preciso fazer escolhas. O conflito que o Direito deve resolver decorre, na prática, da escassez de recursos, porque se não houvesse escassez não teria o conflito. Então, todos os problemas jurídicos que levam a um conflito — que é a essência do Direito — podem ser analisados do ponto de vista da metodologia da Economia, que nada mais é do que a ciência que estuda como os seres humanos se comportam diante de recursos escassos.

ConJur — Como as noções de maximização de eficiência, utilidade e pragmatismo podem ajudar os empresários a decidir melhor, já que são os agentes que arriscam o seu capital?                                                          
Ivo Gico Jr.
O empresário é um tomador de risco. Como todos nós, quer atingir seus objetivos de vida, quer satisfazer as necessidades de sua família. Então, ele opta por empreender na tentativa de alcançar estes objetivos. Quando vai empreender, ele precisa levar em consideração não apenas se tem um bom produto mas se compreende o espaço institucional onde está inserido. Ou seja, ele precisa saber se o produto é ou não regulado pelos órgãos de governo, se o consumidor compreende o que está comprando, se é adequado ao consumo humano etc. Então, muitas vezes, o pessoal da escola de Administração está focado no produto em si e não presta atenção no aspecto jurídico do empreendedorismo. Desconsiderar a legislação e as conformidades gera custos ocultos para os empresários. Então, ele pode tomar melhor as decisões de negócios se conhecer bem o seu produto, o mercado e as regras.

ConJur — Os advogados que usam estas ferramentas atendem melhor a clientela do Direito Empresarial? Como isso se dá na prática do seu dia a dia?                                                                                                                  
Ivo Gico Jr.
No escritório, incentivamos nossos oito advogados a ter dupla formação. Entendemos que o Direito nos leva até determinado ponto. Para atender bem um cliente empresarial, hoje em dia, é preciso entender com funciona o negócio. E, aí, não adianta saber apenas hermenêutica. É preciso saber de Economia, de Contabilidade, de Administração, de Marketing. Então, nós incentivamos uma abordagem interdisciplinar do Direito Empresarial, para atender melhor o cliente empreendedor. Os advogados mais antigos, como os empresários, tendem a achar que o advogado é aquela pessoa que fica escondida num canto escuro, cheio de livros. Que alguém chega nele, faz uma pergunta e recebe uma boa resposta. Isso é visão antiga do advogado, um tradutor de regras tiradas de livros antigos. Veja que todo o advogado gosta de tirar foto próximo de livros.

ConJur — Qual o perfil do advogado moderno?                                          
Ivo Gico Jr.
O advogado moderno é aquele que ajuda o cliente a estruturar o próprio negócio, que participa da tomada de decisões, que consegue ajudar o cliente a formar uma árvore de decisões, levando a compreensão do que é melhor ou pior para os negócios.

ConJur — É possível calcular a probabilidade de procedência de uma ação judicial? Ou de uma chance de conciliação extrajudicial?           
Ivo Gico Jr. Em tese, teoricamente falando, diria que não só é possível como relativamente fácil. Mas há um problema. Calcular a chance de êxito de um processo é função diretamente relacionada à segurança jurídica. Quanto maior a segurança jurídica, maior previsibilidade do ordenamento jurídico. Quanto mais previsível o ordenamento jurídico, maior a sua capacidade de prever como o sistema judicial vai reagir a uma determinada demanda. Ou seja, quanto mais evoluirmos para o estado de direito, previsível e com segurança jurídica, mais segurança. Quanto menos segurança jurídica, menos previsibilidade: logo, mais difícil a estimativa. Nos Estados Unidos, hoje, há escritórios com grandes sistemas de big data (o imenso volume de dados analisados para a obtenção de insights que levam a melhores decisões e direções estratégicas) que conseguem estimar em até 70% as chances de êxito de uma determinada demanda. Isso promove uma alocação mais eficiente dos recursos no Judiciário. Ou seja, eles só levam para o Judiciário aquilo que tem chance. No Brasil, este exercício, por enquanto, é impossível.

ConJur — Então, a segurança jurídica é um capital? Se sim, como pode ser defendido ou maximizado neste cenário de insegurança e caos judicial?                                                                                                              
Ivo Gico Jr.
A segurança jurídica é um capital tão importante para o desenvolvimento econômico quanto capital humano, como o capital físico e todas as outras formas de capital. A grande verdade é que segurança jurídica significa previsibilidade das regras. Ou seja, que eu sei como me comportar no futuro e também como o Judiciário se comportará. Diante desta informação, a parte pode adotar um comportamento de conformidade, para não ter problemas jurídicos — aderindo ao famoso compliance. Ou, então, as partes vão emular antecipadamente o que o Judiciário faria, entrando em acordo, diminuindo os conflitos. Isso permite um maior investimento. Investir é abrir mão hoje de um recurso para colher frutos no futuro. Quanto mais seguro, menor o custo do investimento. Quanto mais inseguro, maior o custo. Bem-vindo a um aspecto jurídico do Custo-Brasil!

ConJur — Promover uma política pública sem este cálculo pode resultar num desastre, não?                                                                                         
Ivo Gico Jr.
Vou lhe devolver a questão com outra pergunta: você se submeteria a uma cirurgia com um cirurgião cego num quarto escuro,  de olhos vendados?

ConJur — Obviamente, ninguém se submeteria a isso…                            
Ivo Gico Jr.
Perfeito. Isso é o Judiciário fazendo política pública. Você tem um profissional formado em interpretação de texto, assoberbado com mais de 6 mil processos por ano, com uma equipe composta de pessoas que só sabem interpretar texto, tendo de salvar pessoas desesperadas, o tempo inteiro. Sem tempo, recurso, nem ferramental para tomar uma única escolha de política pública. Então, a possibilidade de o Judiciário fazer boas políticas públicas é tão grande quanto chance. Se você está disposto a colocar a sua vida na mão de um cirurgião que vai te operar por chance, não tem por que achar problema. Agora, quem prefere um cirurgião com os meios adequados, recursos e com conhecimento de intervenção cirúrgica, fica apavorado com a circunstância.

ConJur — Aponte um exemplo…
Ivo Gico Jr.
Os pedidos judiciais de uma substância que, segundo dizem por aí, pode vir a ter bons resultados contra o câncer. Não existe nenhum resultado científico ou clínico que demonstre segurança do uso do produto nem a efetividade dos seus resultados. Ou seja, não se sabe se ele é seguro ou eficaz. Mas, como tem monte de gente morrendo e não existe remédio para a doença, no desespero de salvar os seus entes queridos, a pessoa vai ao Judiciário pedir que o governo banque a tal substância. O juiz, que não quer dormir com um peso na consciência, prefere conceder — mesmo sem chances de resultado — ao invés de, simplesmente, aplicar a lei. O problema é que se todos os juízes agirem assim, simultaneamente, estaremos alocando mal os escassos recursos da saúde. Em vez de gastarmos com remédios e tratamentos que trarão, com certeza, efeitos terapêuticos, estaremos desperdiçando recursos para poucas pessoas, em detrimento da grande massa, ou para tratamentos completamente ineficazes. Isso é uma tragédia.

ConJur — O senhor acha que a Constituição de 1988 trouxe excesso de direitos, onerando em demasia quem tem a obrigação de pagá-los?  
Ivo Gico Jr.
Sendo justo, não acho que isso é culpa da Constituição. A Constituição é muito boa, com um texto muito claro. Ocorre que, a partir de 1998, o Judiciário, conscientemente ou não, passou a mudar a interpretação da Constituição. Tomou para si, desde então, cada vez mais poderes e responsabilidades que, em última instância, são do Poder Legislativo. É o ativismo judicial. Então, insatisfeito com o estado, o Judiciário, numa posição de poder, entendeu que lhe cabia ocupar este espaço. Fazer política pública mesmo. Fazer escolhas que deveriam ser feitas por pessoas que eu e você elegemos. Isso causa um conflito que tem levado à sobreutilização do Judiciário. Ninguém quer um Judiciário assim. 

ConJur — O acesso livre ao Poder Judiciário, pelo instituto da justiça gratuita, seria um exemplo de decisão em que o legislador não pesou bem as consequências?  
Ivo Gico Jr.
Certamente, a justiça gratuita, hoje, no Brasil está sendo abusada. A justiça gratuita deveria ser usada pelos pobres. Pobre que não tem acesso à Justiça deveria ter subsídios, não pagando os custos do processo. Todo o resto da população que tem condições deveria pagar por este serviço público do mesmo jeito que paga por água, luz etc. No entanto, a lei não diz que quem pedir automaticamente ganha. O Judiciário diz isso. Toda vez que um juiz tenta colocar limites, exigindo provas de necessidade do subsídio, as cortes superiores dizem o contrário: ‘‘não precisa, basta a parte alegar necessidade’’. Obviamente, isso gera um comportamento oportunista. Imagine as pessoas enviando um e-mail para as empresas que fornecem água e luz: ‘‘olha, eu sou pobre, portanto, não pagarei mais a minha conta’’. E isso fosse suficiente. Quantas pessoas mandariam este e-mail? É isso o que acontece com a justiça gratuita: basta mandar um e-mail dizendo que é pobre, que não pode pagar, e acabou a brincadeira.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!