Processo Familiar

Lei brasileira permite responsabilizar os pais por danos causados ao nascituro

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é advogado professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD) doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).

5 de novembro de 2017, 9h30

Spacca
O dano, como sabemos, consiste em uma lesão a um interesse juridicamente protegido, quer seja a destruição ou deterioração de uma coisa inanimada, quer seja a ofensa à integridade física ou moral de uma pessoa. Na relação paterno-filial os pais podem provocar danos à integridade física e moral dos filhos, a exemplo do castigo imoderado, do cárcere privado e do abuso sexual, que são ofensas à dignidade humana susceptíveis de reparação[1].

Na relação gestante-nascituro, os danos mais comuns são o dano genético e o dano pré-natal.O dano genético pode ser compreendido como uma agressão aos genes do nascituro que tenha afetado o seu genoma e provocado consequências que impossibilitem, dificultem ou reduzam a qualidade de vida da pessoa nascida, podendo resultar de contaminação por substâncias tóxicas ou radioativas ocorrida durante a gravidez (teratógenos) ou ainda da condição hereditária de ambos os pais.[2]

Pessoas portadoras de determinados fatores de risco possuem maior potencial de conceberem filhos com malformação genética[3]. Por isso, a lei exige dos colaterais de terceiro grau exame médico preventivo para que possam contrair matrimônio entre si (Decreto-Lei nº 3.200/41). Mulheres com idade mais avançada, para engravidar, precisam de cuidados médicos muito maiores do que aquelas mais jovens[4]. Algumas doenças são transmissíveis dos pais para o filho. Em muitas situações, existe tratamento e o risco pode ser evitado[5]. Em outras, é a gravidez que deve ser evitada. O contrário seria admitir que alguém pudesse realizar um projeto parental para satisfação de suas exclusivas e egoísticas aspirações, sem qualquer preocupação com a saúde e a qualidade de vida do filho a ser gerado.

Sabendo ou devendo saber dos fatores de risco, os pais mostram-se negligentes quando deixam de procurar um especialista antes da gravidez, para realizar o histórico clínico do casal. A conduta responsável e esperada, no caso, é consultar um profissional para ter o aconselhamento genético, de modo a evitar a concepção de um filho com malformação congênita[6].

O dano pré-natal, por sua vez, é causado exclusivamente por fatores ambientais, normalmente condutas inapropriadas ou imprudentes adotadas pela gestante durante a gravidez, expondo a risco o nascituro. Entre as mais comuns, podemos mencionar a ingestão de determinadas substâncias, como é o caso da cocaína, do fumo e do álcool, aptas a prejudicar o desenvolvimento ou a comprometer a saúde do nascituro, ou ainda interferir negativamente na qualidade de vida após o seu nascimento.

Silma Mendes Berti, em sua acurada pesquisa, refere-se a estudos científicos comprobatórios de que “o consumo de cocaína pela mulher, durante a gravidez, pode causar diversas complicações: contrações uterinas prematuras, abortos espontâneos; diretamente, no feto, foram comprovados, dentre outros males, o retardo no crescimento, anomalias congênitas, malformações cardíaca e urogenital e anomalias nos membros. Os estudos comprovam ainda que uso de cocaína pode provocar o nascimento de crianças com cérebros deformados em decorrência de lesões hemorrágicas (…) Os efeitos do álcool não são menos perniciosos. O consumo de álcool comporta um risco elevado de malformações congênitas, associada a retardo de crescimento, disfunção do sistema nervoso central, malformações faciais e cardiopatias congênitas. A síndrome do alcoolismo fetal é considerada importante causa de malformações congênitas e retardos mentais (…) O fumo é outra droga que inquieta. Em mulheres que fumam durante a gravidez constatam-se, além de outros males, partos prematuros e principalmente nascimento de crianças de baixo peso”[7].

Uma indagação que habitualmente arrosta esse tema é saber se as técnicas tradicionais, em matéria de responsabilidade civil, são suficientes e adequadas à reparação desses novos danos, ocorrentes no âmbito das relações materno-filiais. Em outras palavras: o fundamento da responsabilidade civil será o mesmo quando a vítima do dano for o nascituro e o agente causador a mãe e gestante?

Entendo que sim. A gravidez e a maternidade certamente constituem os maiores privilégios concedidos pela natureza ao ser humano do sexo feminino. Aceitá-las requer sacrifícios e ciência dos escolhos ao longo de uma jornada de nove meses. Máximo bônus, sumo ônus. O que implica, para a mãe, abster-se de muitos direitos em favor do filho que espera e, acima de tudo, reconhecer que os conflitos gerados na relação mãe e filho, enquanto gestante e nascituro, devem razoavelmente pender para o inerme, o vulnerável, o incapaz de se defender ou de clamar por socorro e que não pediu para nascer[8].

Todos os direitos inerentes à pessoa humana, nascida ou concebida, devem ser tutelados dentro do núcleo familiar, sobretudo nas relações materno-filial, e a quebra de quaisquer desses direitos poderá caracterizar dano moral indenizável. O Código Civil de 2002 trouxe norma específica e genérica de tutela dos direitos da personalidade, consubstanciada no artigo 12[9].O dispositivo versa sobre os mecanismos de tutela dos direitos da personalidade, tanto na prevenção e cessação da lesão quanto na reparação dos possíveis danos daí advindos. Abriu-se aqui a possibilidade de cumulação dessas medidas com pedido de perdas e danos e com quaisquer outras sanções previstas em leis especiais[10].

Finalmente, resta saber se o nascituro poderá deduzir essa tutela contra a genitora e gestante, enquanto nascituro, ou se o filho poderá deduzir posteriormente a tutela contra os pais por danos causados durante a vida intrauterina ?

A resposta é afirmativa. Não vemos como se possa estabelecer qualquer tipo de restrição, salvo aquelas previstas em lei e referentes à capacidade e legitimidade processuais. Fora disso, não existe óbice a que o filho, nascido ou nascituro, possa valer-se de todas as medidas para defesa de seus direitos da personalidade, incluindo a pretensão de reparação civil.

O filho nascido e maior ou emancipado poderá deduzir de forma autônoma a pretensão de reparação civil contra a mãe, tão logo alcance a plena capacidade civil (CC, art. 197, II). Enquanto incapaz, o filho nascido só poderá propor a ação representado ou assistido.

Já o nascituro tem legitimidade para propor a ação através do outro representante legal, no caso o pai, ou de curador especial. A curatela do nascituro pressupõe a prévia interdição ou destituição do poder familiar da gestante[11].

Também nada pode obstaculizar ao Ministério Público, como legitimado extraordinário, à luz da dicção final do artigo 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis, combinado com o artigo 201, incisos III e VIII do ECA,[12] propor as medidas pertinentes para fazer cessar a ameaça contra a integridade biofísica do feto[13], aí incluídas, entre outras, a destituição do poder familiar, a interdição e a internação compulsória e provisória da mãe, para interromper a ingestão de substâncias ou prática de condutas que coloquem em risco a vida e à saúde do nascituro ou ainda para compelir a gestante a se submeter a tratamento médico necessário à garantia dos direitos do concepto.

Ao nascituro vítima do dano genético ou do dano pré-natal, como a qualquer outro membro da família, não pode ser subtraído o direito à reparação integral tão somente porque o agente causador foi a sua própria mãe. O ordenamento jurídico brasileiro não alberga imunidade ou inimputabilidade à gestante que, de forma culposa ou dolosa, ocasionar qualquer espécie de dano ao nascituro. A doutrina da imunidade parental, muito aplicada nos países de common law até meados do século passado e segundo a qual a preservação da harmonia familiar deveria se sobrepor a toda e qualquer compensação eventualmente devida pelos pais aos filhos, encontra-se em franco declínio[14].

É preciso, apenas, demonstrar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil: a ação ou omissão que viola direito, ligada, pelo nexo causal, ao dano à integridade física ou psíquica do nascituro. Só não haverá que se falar, por ausência de previsão legal, em responsabilidade objetiva. A investigação da culpa em sentido lato é fundamental. Mister identificar no fato concreto qual foi a ação ou omissão negligente ou imprudente da gestante que violou direito do nascituro, demonstrando sua ligação com o dano, bem como a inexistência das excludentes clássicas de responsabilidade civil, como o estado de necessidade, a força maior e a culpa exclusiva de terceiro.

 


[1] Cf. BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 122.

[2] Os chamados teratógenos são agentes ambientais que, agindo na gestante, tornam-se passíveis de acarretar malformação congênita no nascituro. São produtos com elevado potencial de lesar células do embrião e provocar alteração em seus cromossomos.

[3] “Quando um ou os dois membros do casal são portadores de uma anomalia genética ou conceberam um filho com uma doença de transmissão hereditária, a gravidez é igualmente classificada de alto risco. A gravidade destes antecedentes varia segundo o tipo de problema. Em alguns casos, como acontece com a fibrose cística, a fenilcetonúria e a talassemia, o problema apenas se manifesta quando os dois pais são portadores da anomalia genética que o provoca, mesmo que nenhum dos dois seja afetado, algo que é muito comum. Todavia, noutros casos, basta que um dos dois pais seja portador da anomalia genética, independentemente de ser ou não afetado pela anomalia genética, para que a gravidez seja considerada de alto risco, como por exemplo, em caso de coreia de Huntington e osteogénese imperfeita. Deve-se igualmente fazer referência à especificidade da hemofilia e de outras doenças provocadas por anomalias no cromossoma sexual X, pois costumem ser portadoras destas anomalias genéticas, o problema afeta quase exclusivamente os filhos do sexo masculino”. (Disponível em: http://www.medipedia.pt/home/home.php?module=artigoEnc&id=747#sthash.AeCRjusU.dpuf. Acesso em: 30/01/2015)

[4] Estudos médicos demonstram que as mulheres acima de 35 anos, regra geral, não deveriam conceber, em razão dos riscos de malformações no concepto. Segundo Tânia Schupp Machado, a gravidez é considerada de risco depois dos 35 anos, uma vez que a probabilidade de conceber um filho com síndrome de Down (um dos maiores problemas na idade avançada) e do procedimento invasivo para fazer o diagnóstico é de um em cada 300 casos. (Disponível em: http://drauziovarella.com.br/mulher-2/gravidez-apos-os-35-anos/ Acesso em: 30/01/2015)

[5] Observa Giorge André Lando que “determinados danos genéticos podem ser evitados pelos progenitores. Ao planejar uma gravidez, os futuros pais devem procurar um profissional especializado em genética para realizar a anamnese (história clínica) minuciosa do casal para verificar se existe a possibilidade de os pais transmitirem genes que causarão anomalia no filho que pretendem ter. O geneticista irá fazer o aconselhamento genético e relatar aos progenitores a respeito dos riscos de ocorrência de malformação. Portanto, a anamnese e o aconselhamento genético são medidas preventivas no sentido de identificar o potencial de danos, tentar sanar o problema quando possível ou mesmo orientar pela não gravidez, em razão da elevada probabilidade de causar danos ao nascituro”. (Tese cit.)

[6] Podemos afirmar, tomando por empréstimo a oração de Giorge André Lando, que “a violação dos direitos descritos nos artigos 196, 227 e 229 da Constituição Federal, e artigo 4.º da Lei n.º 8.069/90, quando cometidos pelos genitores, ao se negarem a procurar um profissional de saúde para saber sobre as possibilidades de causar dano genético a sua futura prole, configura uma conduta voluntária e omissiva e, verificada a ocorrência de dano, observa- se que todos os pressupostos estão presentes para a responsabilização civil dos pais”. (Op. cit.)

[7] BERTI, S. M. . Responsabilidade civil pela conduta da mulher durante a gravidez. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. v. 5, p. 141-142. Colhe-se do estudo de Giorge André Lando que “crianças nascidas de mães alcóolatras apresentam um padrão comum de alteração característica, conhecida como Síndrome Alcóolica Fetal (SAF), trazendo como alterações: um grupo de anomalias craniofaciais (principalmente microcefalia, fendas palpebrais encurtadas, achatamento da região central da face e pregas epicantais), disfunção do SNC (hiperatividade, déficits de atenção, retardo mental e dificuldade de aprendizagem) e, por fim, atraso do crescimento pré-natal e/ou pós-natal . (Responsabilidade civil da gestante por condutas prejudiciais à saúde do nascituro. Tese de doutorado apresentada perante a Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP, sob a orientação da Professora Fernanda Tartuce).

[8] Reforça esse entendimento o “princípio do melhor interesse da criança e do adolescente”, cujas raízes estão fincadas na doutrina da “proteção integral”, a abranger, segundo propugnamos, não só a criança nascida, mas igualmente o nascituro, inclusive por sua especial fragilidade e vulnerabilidade, a demandar, com ainda mais premência do que a criança nascida ou o adolescente, a proteção integral dos pais para que possa nascer e bem desenvolver suas potencialidades.

[9] Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

[10] Cf. nosso Código Civil Anotado.Inovações comentadas artigo por artigo. São Paulo: Método, 2005.

[11] Com o objetivo de resguardar os direitos do nascituro, o art. 1.779 do CC/2002 prevê a nomeação de curador especial ao concepto, se o pai falecer ou for desconhecido e a mãe grávida tiver sido interditada ou destituída do poder familiar. Ou ainda se ambos os pais forem destituídos poder familiar. A nomeação do curador não está relacionada aos bens que porventura a criança venha a receber por sucessão ou doação depois de nascida. O principal dever do curador é garantir ao nascituro seu nascimento com vida e saúde. Após o nascimento com vida, a curadoria do nascituro será extinta e, permanecendo a mãe, ou ambos os pais, destituídos do poder familiar, será nomeado tutor para a criança.

[12] Art. 201. Compete ao Ministério Público: (…)III – promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do poder familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude; (..) VIII – zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis;

[13] Já decidiu o STJ, em ação proposta pelo Ministério Público para pleitear, em favor de menor, o fornecimento de medicamento, que “o direito à saúde, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria”.( REsp n° 716512, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux). Em outra demanda, em que o Ministério Público atuou em defesa de interesses mediatos do nascituro, assim decidiu o STJ: PROCESSUAL CIVIL. GESTANTE. ESTADO CRÍTICO DE SAÚDE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO INDISPONÍVEL.1. A demanda envolve interesse individual indisponível na medida em que diz respeito à internação hospitalar de gestante hipossuficiente, o que, sem sombra de dúvidas, repercute nos direitos à vida e à saúde do nascituro e autoriza a propositura da ação pelo Ministério Público.2. "Tem natureza de interesse indisponível a tutela jurisdicional do direito à vida e à saúde de que tratam os arts. 5º, caput e 196 da Constituição, em favor de gestante hipossuficiente que necessite de internação hospitalar quando seu estado de saúde é crítico. A legitimidade ativa, portanto, se afirma, não por se tratar de tutela de direitos individuais homogêneos, mas sim por se tratar de interesses individuais indisponíveis" (REsp 933.974/RS, Rel. Min.Teori Albino Zavascki, DJU 19.12.07).3. Agravo regimental não provido.(AgRg no REsp 1045750/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/06/2009, DJe 04/08/2009)

[14] Segundo o princípio da imunidade parental (parental immunity doctrine), os filhos não podem acionar seus pais, nem os pais podem acionar seus filhos, por responsabilidade civil, na vigência do poder familiar. O princípio foi descoberto pela jurisprudência estadunidense em 1861 a partir do caso HEWLETT v. GEORGE, onde a Corte assentou que enquanto os pais detiverem os deveres de cuidado, assistência e controle e os filhos os respectivos deveres contrapostos, nenhuma pretensão de reparação civil poderia ser deduzida. Baseia-se na política pública de manutenção da paz e da harmonia familiar, além de prevenir o comprometimento do exercício da autoridade parental que poderia advir pelo receio dos pais de serem processados pelos filhos. A proteção das crianças contra eventual violência dos pais seria exercida exclusivamente pelo Estado, por meio do Direito Penal. (Cf. HOLLISTER, Gail D. “Parent-Child Immunity: A Doctrine in Search of Justification”. Fordham Law Review. Volume 50 | Issue 4 Article 1. 1982)

 

Autores

  • é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp), doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFa), diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB).

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