Limite Penal

É possível não bancar o "pato" e pressupor a inocência?

Autor

3 de novembro de 2017, 7h05

Spacca
Como em tudo na vida, prepare-se para o pior: parta do pressuposto de que o juiz irá condenar o acusado. Sempre. Preste atenção na sua atitude e comportamento para verificar se, e principalmente quando, é possível inverter o jogo[1]. A espera de um milagre é próprio de amadores. Será preciso antecipar possíveis pontos de virada[2] em que o julgador possa ser fisgado ou abatido em sua pressuposição inicial, ou seja, a oportunidade de um giro na ressignificação por meio de uma oportunidade de recontextualização.

As armadilhas cognitivas[3] operam a partir da premissa legal de que o acusado deve ser tratado como inocente — que deveria ser observada — e que pode ser invertida justamente porque os agentes processuais julgam durante todo o tempo, não raro, adornados pela mentalidade inquisitória[4]. O trabalho da defesa é o de entrar no jogo processual ciente de que o jogo processual penal, em geral, é viciado, porque os magistrados e agentes em geral procuram razões para condenar, quando deveriam inverter a lógica e ter por base de ação e cognição o pressuposto da inocência.

É interessante anotar que a dificuldade em não se estabelecer um pensamento que parta da presunção de inocência (processo penal) ou do benefício da dúvida (vida social) é intrinsecamente humana: ironicamente, pede-se, então, um serviço divino quando se fixou que o agente público deve considerar inocente até prova efetiva em contrário aquele que é acusado — porque humana (e injusta) é a atitude da precipitação em condenar, ou, o "olho mau", julgando a partir do que nem exista[5]. Quando sustento, na recomendação do juiz Holmes, que se deve pensar como um bad man[6], é porque a interação se dá no contexto dessa realidade humana, e, para antecipar consequências, preciso saber como o oponente/interlocutor pode pensar. Portanto, essa atitude de pensar condenando a todo tempo todos é, demasiadamente, humana: a dizer, nossa estrutura cognitiva é inquisitória, e isso é característica que a civilização e a educação que a possibilita sempre lutaram para contornar. No Direito Penal, há a baliza legal, mas que depende de adesão subjetiva de cada agente processual.

Na vida social, parte-se senão de uma mentalidade inquisitória, em que se julga em desfavor e maliciosamente a todo tempo, e por vezes uma certa habilidade narrativa acabe criando realidades — não por outro motivo a mídia criou um produto que vende. Atua oferecendo informações para alimentar essa característica humana inquisitória e violenta. A metáfora da caça às bruxas retrata uma atitude paranoica que escamoteia o princípio da presunção de inocência, para instaurar o princípio da presunção de culpa: in dubio pro hell[7]. Deixar de ser um “pato”, na visão que proponho, não quer dizer desconsiderar a presunção de inocência, e sim operar em pensamento mais complexo, no qual teremos a incidência de duas variáveis, a saber, a necessidade de presumir inocente e a realidade de que o outro possa manipular. São instâncias que atuam de lugares e em contextos diversos: à primeira têm de corresponder meus atos práticos; a segunda funciona como uma instância metacognitiva, circundante de todas as demais, consistente no pensamento que analisa o pensamento, percebendo a todo momento qualquer raciocínio em que a presunção de inocência seja burlada, mas se movendo no contexto da realidade do humano.

Assim, a estrutura da Teoria dos Jogos fornece essa instância, sem derrotar a matriz de presunção de inocência. E isso não é ensinado em cursos de Direito, de modo que a capacidade de análise a partir de perspectivas multidisciplinares não é formada. Quando se fale em visão paralática (Slavoj Zizek e Fabiano Oldoni), quer-se dizer uma atividade em que não exista soluções absolutas em tempo integral, mas uma variação polifônica que se modifica à medida em que novas premissas e lugares se apresentem. Costuma-se "visualizar" o ato de pensar em um único plano; aqui falo de uma atividade que se espraia em inúmeros planos, cada um concedendo a grandeza prevalecente do momento; o fator tempo faz diferença e pode ressignificar. A questão do bad man é que a compreensão da realidade é que não pode ser limitada, embora nela o magistrado tenha uma linha de atuação que deve balizar seu comportamento, e que é necessária para limitar sua própria tendência humana ao pensamento inquisitório — nesse desenho é possível atuar numa aproximação maior da ausência de erro. Portanto, o raciocínio que presume a inocência é de esforço mais difícil, porque ele é contrário à nossa “natureza”. E, para aqueles que gostem de aproximar a condenação a uma atividade divina, percebe-se que na atitude inquisitória o juiz irmana-se, e atua o humano criminoso em todos nós, o injusto, o manipulador, o autoritário. Assim, percebe-se que a presunção de inocência passa a ser atributo sobre-humano, nesse sentido o divino, e o ofício do advogado, aquele que se aproxima da figura mítica.

Essa foi a opção civilizatória tomada na Constituição, e essa é a pedra de toque de um Estado Democrático de Direito. A escolha feita é fundamental, pois o preço de um inocente preso não paga o de possíveis culpados soltos, até porque estes, se continuarem nessa trilha, podem ser pegos mais adiante; um inocente preso, porém, é de um preço impagável e de custos intoleráveis.

Dar-se conta de que a tendência é a condenação pode ser um ganho porque altera a postura de passiva para ativa. Praticamente o único momento em que o jogo pode virar é o da audiência de instrução e julgamento, em que o contato com a prova produzida autoriza o giro de sentido, a mudança do curso significante. Sem um plot point, a condenação se confirma. Alguns poderão dizer: e a presunção de inocência? No que respondo: em que mundo vocês vivem? De Pollyanna (personagem do livro homônimo em que tudo, ainda que não esteja bem, sempre tem um lado positivo, as pessoas são todas boas e o mundo, por suas lentes cor-de-rosa, é o melhor possível — não por acaso o nome do processo em que isso se tornaria possível é o “jogo do contente”).

Cada jogo processual em sua singularidade constrói significados convergentes/divergentes com os padrões coletivos, descritos pelo paradigma prevalecente. A plataforma normativa do jogo sofre as contingências humanas dos jogadores, ávidos à satisfação de suas recompensas.

O modo como se pergunta e o contexto em que é formulada exige a capacidade de leitura dinâmica da interação processual e das posições de vantagem e desvantagem probatória em face da conduta a ser provada, além do fundamental: saber o ponto em que continuar a indagar é inútil. Obtida a vantagem, é o momento de parar[8].

Quando se ouve um relato, desde o princípio, pelos mais variados motivos, empresta-se certo grau de credibilidade. Pode ser uma desconfiança ou crença inicial que, no decorrer do depoimento, a partir do modo com que se desenvolve, consolida-se ou se afasta. O fenômeno dialoga com o que se denomina de dissonância cognitiva, isto é, sempre teremos um julgamento inicial a se confirmar. A mentalidade inquisitória[9], em geral, seduzida pelo desejo de condensação, vasculha os fragmentos de sentido advindos dos autos e se vale da ambiguidade para o fim de confirmar a certeza que se tem — pré-concebida e condenatória. Isso porque somos humanos.

A abordagem estética do desenho do jogo processual situado (tempo/espaço/contexto/jogadores) exige que se adote uma perspectiva dinâmica dos momentos de atribuição de sentido. O que temos são fragmentos (informações) do mundo trazidos para o ambiente processual e com o qual se estabelecem narrativas consolidadas pelo poder de estabelecer a versão prevalecente (Calvo Gonzalez, Lenio Streck, André Karam Trindade). Isso porque é no dispositivo do processo singularizado habitado por jogadores humanos, com DNA e mapa mental diferenciados, que os sentidos acontecem. O acontecimento é da ordem do singular, e o processo deveria ser o mecanismo pelo qual se poderiam construir sentidos coletivos a partir do contraditório sobre os fragmentos de informação, desde a produção válida, passando pela articulação das cadeias argumentativas, culminando na atribuição de significância em alegações finais e decisão.

Mas o tempo do processo é paradoxal: ao mesmo tempo em que o ritmo se acelera no tocante à apreensão informacional, mais reflexão é exigida. O tempo, contudo, impede a existência de maturação em face das respostas imediatas. O resultado é a sedução pelas respostas previamente dadas em que os sentidos estão atrofiados.

A tendência de necessitar de respostas imediatas contracena com a ausência de “paciência cognitiva”, pela qual a certeza razoável transforma a dúvida em significante do estorvo — objetiva-se a satisfação rápida de mais um processo resolvido —, a questão é que a forma como o processo penal se estruturou faz com que se tenha a sensação de ter trabalhado quando se condenou, e inocula, despersonaliza o acusado, que é dissolvido enquanto sujeito sob essa alcunha, os autos e aparato tornam fácil condenar, não há mecanismos práticos para suscitar uma cognição com base na presunção de inocência — os gatilhos são todos contrários.

O processo como procedimento em contraditório[10] deveria ser o dispositivo aberto e colaborativo para o lançamento de pretensões de verdade verificáveis, estabelecidas ao final, diante da respectiva motivação. Entretanto, as variações de sentido são aterradas em nome das certezas preliminares, no que se denomina de dissonância cognitiva. E isso é muito humano. A atitude conservadora da consonância cognitiva[11], fortemente influenciada pelas primeiras impressões, evidencia a resistência às discrepâncias que precisam ser poderosamente significativas para alterar o curso das certezas pressupostas.

O processo não é só atribuir sentidos a qualquer tempo, justamente por precisar submeter as primeiras impressões aos “chutes/golpes” do contraditório, para somente então se confirmar. Quando a flecha do contraditório é relegada à função performática[12], no fundo, inexiste processo. Longe de legitimidade, obtém-se mera legitimação. Somente os jogadores, especialmente os defensivos, podem fazer a diferença. Mas para isso será preciso se preparar e fazer perguntas “matadoras” no momento exato, capacidade que pode ser inata, e também aprendida. O problema é quando o sujeito é ingênuo demais para entender o que não se passa e acredita que essa condição humana não atue nos agentes públicos.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
[2] https://www.conjur.com.br/2017-mar-17/limite-penal-inverter-linearidade-acusatoria-plot-point-interacao-narrativa.
[3] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara, 2018. Quem desejar mais informações sobre o livro e descontos pode escrever para [email protected].
[4] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[5] https://www.conjur.com.br/2017-set-30/diario-classe-porta-tribunal-historia-criam-realidades.
[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Para entender a delação premiada pela Teoria dos Jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico. Florianópolis, Empório Modara, 2017. No prelo.
[7] KHALED JUNIOR, Salah Hassan; ROSA, Alexandre Morais da. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[8] CAROFIGLIO, Gianrico. El arte de la duda. Trad. Luisa Juanatey. Madrid: Marcial Pons, 2010, p. 21-24.
[9] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
[10] FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: CEDAM, 1994.
[11] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara, 2018.
[12] HABERMAS, Jürgen. Acción comunicativa y razón sin transcendencia. Trad. Beatriz Vianna Boeira. Barcelona: Paidós, 2002; Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1 e 2; BRITTO, Cláudia Aguiar Silva. Processo Penal Comunicativo: Comunicação Processual à luz da Filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2014. A Teoria da Ação Comunicativa parte da estrutura de que quem argumenta presume que ela pode ser justificada em quatro níveis: a) o que é dito é inteligível, por regras semânticas compartilhadas; b) o conteúdo do que é dito é verdadeiro; c) o emissor justifica-se por certos direitos sociais ou normas que são invocadas no uso do idioma; d) o emissor é sincero no que diz, não tentando enganar o receptor. Em suma, não pode ser uma comunicação distorcida. DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e consenso em Habermas: A teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. Florianópolis: UFSC, 2005.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!