Ideias do Milênio

"Hoje, os mesmos agentes da KGB fazem trabalho de censores da época soviética"

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3 de novembro de 2017, 12h19

Entrevista concedida pela jornalista Yevgenia Albats ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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O mundo lembra os 100 anos da revolução que marcou o fim da Rússia imperial dos czares, e volta a analisar também a herança da união das repúblicas socialistas soviéticas, que só desmoronou em 1991. Há quem pense que na nova Rússia capitalista tudo mudou, mas não falta quem conteste essa ideia, gente como a jornalista Yevgenia Albats, que começou na profissão ainda nos anos soviéticos, acompanhou as mudanças e hoje segue como uma das raras jornalistas independentes na Rússia de Vladimir Putin.

Putin, aliás, fez carreira na estrutura de poder do país a partir da KGB, o temido serviço de informações do Estado comunista.

Editora-chefe do The Moscou Times, uma ilha de jornalismo crítico em um mar e mídia dominado por aliados de Putin,Yevgenia diz não ter medo de exercer a profissão denunciando o que acha que precisa ser denunciado. Em uma recente passagem por São Paulo, onde participou do Festival Piauí GloboNews de Jornalismo, a repórter investigativa falou ao Milênio.

Marcelo Lins — Você é jornalista há bastante tempo já e trabalhou em duas Rússias diferentes: a Rússia da era soviética e a Rússia da era capitalista. Quais foram as principais mudanças que você vivenciou na profissão, no jornalismo, nessas duas Rússias e o que não mudou?
Yevgenia Albats —
A União Soviética e a Rússia atual são dois mundos distintos. Na União Soviética, eu não podia escrever sobre nada além de pautas científicas. Eu escrevia sobre ciência, não era filiada a nenhum partido. Na União Soviética só havia um, o Partido Comunista, mas nunca fui ligada a um partido, então não havia como eu construir uma carreira. Mas eu escrevia sobre microfísica, astrofísica e sobre o desenvolvimento do universo. Era muito interessante. Em todos os jornais da época havia um censor, um homem que ficava numa sala especial onde havia um monte de livros, e esses livros detalhavam sobre o que você não podia escrever. Não se podia escrever o nome das famosas poetas Anna Akhmatova e Marina Tsvetaeva.

Não se podia escrever, como eu não pude quando estava escrevendo sobre um voo espacial… O coração de um dos astronautas passou do lado esquerdo para o direito. Não pude escrever sobre isso. Praticamente tudo era proibido.

A partir de 1987, a censura foi abandonada na União Soviética e, quando o sistema ruiu, 1991, surgiu um grande espaço livre no qual quase todo mundo podia escrever sobre o que quisesse. O problema era que os jornalistas soviéticos tinham sido treinados como robôs da propaganda. Eles não sabiam fazer o trabalho de verdade. Isso foi um problema e, além disso, havia o problema da corrupção. Como acontece na América Latina, jornalistas são corrompidos quando os novos ricos querem comprar uma linha na revista, um parágrafo no jornal ou a revista e o jornal inteiros. Nesse aspecto, o jornalismo russo se tornou muito mais livre – a censura não existia mais –, no entanto, depois de 2014, quando Putin anexou parte do território ucraniano, a Crimeia, ele impôs uma máquina rígida de propaganda a todas as redes de TV…

Marcelo Lins — É uma máquina de propaganda que lembra a daquela época? Igualzinha.
Yevgenia Albats —
Igualzinha. Os mesmos agentes da KGB fazem o mesmo trabalho que os censores faziam quando de fato se chamavam censores. De certa forma, na época soviética era feito de uma forma mais honesta. Portanto, hoje, há muito poucos veículos independentes. Basicamente um jornal, o Novaya Gazeta, uma rede de TV a cabo, Dozhd, uma revista semanal, The New Times, da qual eu sou editora. E basicamente é isso. E uma estação de rádio, a EkhoMoskvy, que pertence à maior empresa russa, mas que está conseguindo manter uma política editorial independente. Basicamente isso.

Marcelo Lins — É preciso ter coragem ou é uma questão de como se age e você não vai mudar por causa desse cenário, uma vez que já trabalhou em ambientes piores?
Yevgenia Albats —
Você simplesmente faz. Para aqueles de nós que acreditam que o povo russo tem o direito constitucional à informação, tentamos fornecer a maior quantidade de informação possível a despeito do tipo de punição que podemos receber. Na verdade, ao contrário da União Soviética, quando havia três opções – ser preso, ser morto e perder o emprego –, na Rússia de hoje há duas opções: perder o emprego e ser morto. De certa forma, é mais fácil. Portanto, a minha reposta é sempre a mesma: a escolha é minha. Eu escolhi escrever sobre a política russa. Eu poderia escrever sobre flores, mas não sei fazer isso. E adoro escrever sobre política russa.

Marcelo Lins — Hoje em dia, qual é o poder que a velha KGB tem na nova Rússia?
Yevgenia Albats —
Infelizmente, o maior erro aconteceu no início dos anos 1990, quando a Rússia iniciou as reformas pós-comunismo. Os reformistas não conseguiram eliminar a instituição mais punitiva e poderosa da União Soviética, sua polícia política, que era conhecida como KGB. Hoje ela se chama FSB e é praticamente igual, e oficiais graduados da KGB controlam a maioria das esferas da sociedade russa. Cerca de 50% daqueles que estão na liderança do país são oficiais da KGB, cerca de dez são CEOs das maiores empresas russas. Isso começou com a Rosnefte continuou com outras. Há agentes da KGB nas telecomunicações, nos bancos, no setor financeiro em tudo que tem a ver com petróleo e gás. Tudo é controlado pelos oficiais da KGB. Essa organização não tem nenhum respeito pelos direitos humanos nem pelas liberdades pessoais. É estatizante por natureza e muito conspiratória por natureza, vê inimigos e procura inimigos por toda parte. Como na União Soviética, os Estados Unidos voltaram a ser o inimigo número 1, e esse tipo de mentalidade, na qual se está constantemente procurando inimigos e é preciso encontrar inimigos, senão, por que deve ser pago…

Marcelo Lins — Mesmo se for preciso criá-los.
Yevgenia Albats —
Exatamente. Todo mês?

Marcelo Lins — Do seu ponto de vista, de alguém que trabalha com a informação, que tipo de avaliação a maioria da população russa faz da revolução soviética?
Yevgenia Albats —
Do ponto de vista histórico, a Rússia rural se industrializou rapidamente durante o regime soviético, nas décadas de 1920 e 1930. Isso é verdade. Em apenas duas décadas, a União Soviética construiu um Estado industrial imenso. Só que o preço desse Estado poderoso foi pago com 56 milhões de vidas. 56 milhões de pessoas morreram vítimas da revolução russa e da guerra civil que se seguiu. Sete milhões de camponeses foram mortos no processo das reformas comunistas que não tiveram sucesso na agricultura e depois, na Segunda Guerra Mundial. Um total de 56 milhões de pessoas. E nós ainda estamos pagando o preço. Temos falta de mão de obra exatamente porque gerações inteiras foram mortas durante essa grande experiência comunista.

Marcelo Lins — Como você vê o papel da Rússia no mundo hoje? Ela quer ser uma concorrente dos Estados Unidos? Algo diferente? Aponta para outro caminho?
Yevgenia Albats —
Acho que é muito difícil comparar a União Soviética à Rússia atual. A União Soviética tinha uma ideologia, uma espécie de culto religioso comunista. Essa ideologia ou religião era muito atraente para os pobres de todo o mundo. Como resultado disso, a União Soviética exercia o soft power em diversos países da América Latina, em muitos países da África pobre, na Ásia, em partes da Europa. Nada parecido existe hoje. A Rússia atual não tem nenhum grande aliado. Aliás, se Putin conseguiu alguma coisa, foi conquistar inimigos em todo o planeta. O Estado russo não tem aliados nem na nossa região do mundo, o mundo pós-soviético, nem nas antigas repúblicas comunistas, nem na Europa mais e por aí vai. Isso é uma infelicidade, no entanto reflete a mentalidade medíocre dos oficiais graduados da KGB. Aliás, a educação que eles receberam foi muito ruim e seu foco em achar um inimigo mudou e afetou sua capacidade de enxergar a seu redor e de fazer escolhas racionais. Portanto é impossível comparar. É por isso que acho uma nova Guerra Fria impossível. A Rússia não tem mais o soft power, aquela atração religiosa que o comunismo inspirava. Isso acabou. E acho que nunca mais ressurgirá.

Marcelo Lins — O que você acha que é verdade e mentira sobre tudo que foi dito sobre essa relação entre os políticos russos, Putin e o governo de Trump e até mesmo os gerentes da campanha dele?
Yevgenia Albats —
Eu sou jornalista, não espalho fofoca. Até o momento, não há provas definitivas. Temos fragmentos de informações daqui, dali e de outras fontes. Parece claro para mim que, de alguma forma, a Rússia de Putin, o Estado russo – não o país, o Estado – se envolveu no processo democrático americano. Apenas como termo de comparação, a União Soviética tentou fazer isso em 1984, quando Reagan concorreu ao segundo mandato, e três bases do serviço de inteligência nos EUA conduziram uma campanha difamatória contra Reagan. Da mesma forma, podemos presumir, inferir, que os russos se envolveram na campanha com o objetivo de ajudar Donald Trump a se eleger. Putin está muito irritado com os EUA. Ele acha que o povo por si só é incapaz de se rebelar, é incapaz de protestar, é incapaz de reivindicar seu papel no governo, é incapaz de responsabilizar o governo. É por isso que ele não acredita que o povo da Ucrânia foi às ruas e se livrou daquele canalha sozinho. Ele acha que aquilo foi uma armação do Departamento de Estado dos Estados Unidos e que o povo ucraniano serviu apenas de fantoche. Esse é o efeito colateral da educação dele com agente da KGB e do trabalho que ele fazia na KGB. Ele não consegue entender que o povo é capaz de ter vontade própria. Por isso, Putin quis dar uma resposta e mostrar aos EUA que ele e suas instituições são capazes de interferir no processo democrático dos EUA. Tendo dito isso, quero ressaltar que ainda não temos provas definitivas.

Marcelo Lins — A Rússia e o Brasil têm laços econômicos. Nem tantos laços culturais, mas compartilhamos alguns valores comuns, digamos: países grandes, populações grandes, muitos recursos naturais. Como a Rússia vê hoje os Brics? Ela leva a sério esse grupo de países? Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul? Ou é algo que ainda está sendo construído?
Yevgenia Albats —
Pelo que sei, o governo russo leva os Brics a sério, porque se existe uma aliança na qual a Rússia sente que é uma parceira em pé de igualdade é nos Brics. Até três ou quatro anos atrás, quando aconteceu a crise financeira, nossos países iam muito bem. Infelizmente, eles despencaram depois da crise financeira. Acho que há muitas semelhanças e laços comuns entre a Rússia e o Brasil. Para começar, nós, russos, adoramos a literatura latino-americana. Eu cresci com Jorge Amado na minha mesa. Cortázar, Benedetti e outros grandes nomes.

Marcelo Lins — García Márquez.
Yevgenia Albats —
Llosa.

Marcelo Lins — Outros nomes da América Latina.
Yevgenia Albats —
Os grandes nomes da cultura latino-americana. Eles fizeram parte da minha formação, da formação da minha geração. E as gerações que vieram depois também os leem, porque foram traduzidos e são muito populares na Rússia. Acho que temos muitas coisas em comum.

Marcelo Lins — E também compartilhamos muitas coisas ruins. A corrupção…
Yevgenia Albats —
Sim, é claro.

Marcelo Lins — Outra coisa que compartilhamos: a opressão que as mulheres sofrem em nossos países. Qual é o papel da mulher na Rússia de hoje? E como é para elas realizar o que se espera das mulheres nos tempos atuais?
Yevgenia Albats —
Infelizmente, esses sujeitos da KGB estão sempre buscando uma “ideologia” nova. Como são pessoas medíocres, não conseguem achar nada que preste, por isso se contentaram com a ortodoxia russa, e a ortodoxia russa tem uma visão de mundo muitíssimo conservadora.

Marcelo Lins — A interpretação da religião e dos valores religiosos.
Yevgenia Albats —
Várias leis foram criadas contra as minorias sexuais. A Rússia é um país muito homofóbico, apesar de que, na minha redação, recebi um casal gay que foi obter as licenças de casamento na França. Eles saíram na capa da revista. Fomos a primeira revista a publicar uma capa com dois homens se beijando. Uma bela foto. Ao mesmo tempo, um dos meus melhores colunistas pediu demissão – ele é ortodoxo – precisamente porque, segundo me disse, não tolerava a política em relação aos gays que adotávamos na revista. Quanto à questão das mulheres, como em qualquer país totalitário, as mulheres são vistas pelos poderosos como uma ameaça, porque se há alguém capaz de mudar esse machismo, essa sociedade machista, são as mulheres. Eles são capazes de mostrar o lugar deles, pelo menos na cama.

Marcelo Lins — O que alimenta sua esperança de um futuro melhor para a Rússia? Existe alguma coisa que alimente essa esperança?
Yevgenia Albats —
Eu tenho 59 anos e continuo viva. Claro que sim. Sou muito otimista. Cobri a KGB a vida toda e sempre ouvi: “Como você ainda está viva?” E ainda estou. Tenho uma filha, tenho muitos amigos e acho que, assim como superamos o regime soviético, vamos superar o regime da KGB, e as pessoas boas sempre superarão as mais. Eu acredito nisso.

Marcelo Lins — Muito obrigado, Yevgenia, pela entrevista.
Yevgenia Albats —
Eu que agradeço.

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