Senso Incomum

Como usar a jurisdição constitucional na reforma trabalhista

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2 de novembro de 2017, 7h00

Spacca
O subtítulo desta coluna pode ser: Como salvar o Direito do Trabalho de seus predadores! Mais: A coluna é publicada no Dia de Finados… Ironicamente, esperamos que a reforma trabalhista não represente a morte do Direito do Trabalho… E nem da Justiça do Trabalho.

Sem trocadilho, ao trabalho, pois. Trabalho, que vem de tripalium, instrumento usado para tortura. No sentido original, os escravos e os pobres que não podiam pagar os impostos eram os que sofriam as torturas no tripalium. Assim, quem "trabalhava", naquele tempo, eram as pessoas destituídas de posses.

São tempos difíceis, tempos duros os que vivemos. Crise econômica, crise social. Crise política, crise jurídica. O Brasil e sua perene circunstância de modernidade tardia. Por aqui, institucionalizar a civilização é uma moeda de dois lados: a barbárie vem com ela também institucionalizada. Talvez esse não seja um traço exclusivo do Brasil, mas uma herança patrimonialista para alguns (Raymundo Faoro), escravocrata para outros (Jessé de Souza). De todo modo, é a partir desse manancial que se devem vislumbrar algumas possíveis causas e consequências da tão falada reforma trabalhista. Pretendo, nesta coluna, contribuir de alguma forma para clarear obscuros tempos legislativos. Por óbvio, e o óbvio precisa ser dito, não se trata de esgotar o tema. Pelo contrário, serão apontados apenas alguns aspectos envolvidos.

Sou crítico de workshops de enunciados jurídicos (aqui, aqui e aqui, dentre outros). A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) realizou a 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, em outubro de 2017. Não repetirei os argumentos já explicitados por mim noutras oportunidades nas perspectivas de estruturação e de institucionalização científica do Direito como um ramo autônomo de regulação da sociedade. Afinal, a Justiça do Trabalho vem servindo de bode expiatório, boi de piranha. É assim nas sociedades capitalistas periféricas em tempos de crise: o trabalho humano é tido como excessivamente regulado; já a riqueza espúria é tida como excessivamente tributada (cadê o imposto sobre grandes fortunas?; cadê a progressividade tributária? — isso está na Constituição!). Além disso, existem teses econômicas que, além de buscarem a escravização do Direito (ups, sem alusão àquela portaria suspensa pelo STF), dia a dia, atiram flechas contra a Justiça do Trabalho a cada momento. Aliás, seria interessante ver análises econômicas sobre o direito tributário dos ricos… Mas esse já é um assunto para outro momento.

Cabe a mim, então, nesse contexto, homenagear a Justiça do Trabalho e todos aqueles que nela atuam mediata ou imediatamente (e sou reincidente nisso; vejam aqui). A forma mais honesta e singela de fazê-lo é abordar o acerto de conteúdo de alguns enunciados formulados no âmbito da Anamatra naquela 2ª jornada, sem é claro desconsiderar minhas críticas aos workshops jurídicos. Vou ignorar o formato “enunciativo” e fazer de conta que foram discussões acerca do sentido de leis e sua applicatio (desnecessário repetir o que significa “applicatio” a esta altura do campeonato, depois de centenas de colunas). A lo largo, escolhi três enunciados cujo acerto jurídico deve ser enfatizado, porque tratam de interpretações adequadas à Constituição, isto é, respostas juridicamente corretas. Face ao seu caráter de ciência, o Direito deve ter parâmetros de aferição de validade e de eficácia, de modo que medidas legislativas, por si só, não correspondem a inquestionáveis crenças baseadas em uma fé cega. Neste ponto, é até mesmo cômico ler editoriais de grandes jornais favoráveis à reforma trabalhista, simplesmente “porque sim” (algo como a publicidade pós-moderna da cerveja Schin), imbuindo-se de uma superior autoridade intelectual para dizer o correto e o incorreto (interessante é a abordagem de Jorge Souto Maior, aqui).

Passemos, então, a cada um dos três temas que foram enunciados, dentre outros.

O primeiro deles é o Enunciado 100, que trata da inconstitucionalidade da imposição de pagamento dos honorários advocatícios e dos honorários periciais, mesmo quando a parte é beneficiária da assistência jurídica gratuita, com desconto dos créditos trabalhistas reconhecidos em juízo, ainda que em outro processo. Esse tema está para ser enfrentado pelo STF na ADI 5.766, ajuizada pela PGR. Todavia, para aflição daqueles que labutam em prol do acesso à Justiça do Trabalho, referida ADI está com a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que já adiantou praticamente seu voto, ao dizer (aqui) que há um excesso de proteção ao trabalhador no Brasil, onde se concentrariam 98% das reclamações trabalhistas do mundo (informação que obteve de entrevista de presidente de uma grande empresa, aqui), ao mesmo tempo em que disse que não se devem fazer análises a partir de escolhas ideológicas prévias.

Não cabe neste breve texto rebater as falas do ministro Barroso. Basta lembrar que somos uma das nações com maior número de acidentes de trabalho (aqui) e com uma mão de obra cujo custo não chega a 1/5 da mão de obra nos EUA (aqui). Desculpem-me, mas não sou relativista. Acredito em fatos. E esses são os fatos. Por isso é que, no aspecto quantitativo mundial, recomenda-se um pouco mais de parcimônia nas colocações, as estatísticas mentem… (sobre o assunto específico, recomendo o texto de Cássio Casagrande, aqui). Com estatísticas, posso provar que, se uma pessoa come um frango por dia, e outro nenhum, ambos comem meio frango por dia.

Por isso, na medida em que a Constituição estabelece um modelo de Estado Social (o Brasil é uma República que… basta ler o artigo 3º da CF). Todavia, é importante mencionar o papel institucional do ministro como membro do Supremo Tribunal Federal. Deixo claro, assim, que não é possível concordar com as críticas do ministro Roberto Barroso à Justiça do Trabalho.

Sigo. Já escrevi textos abordando a problemática da interpretação gramatical ou literal (aqui), a qual nem sempre é ultrapassada. Se uma resposta é constitucionalmente adequada e corresponde à literalidade do texto jurídico, trata-se de resposta correta e atual (metaforicamente, se fôssemos estilistas, diríamos que a resposta estaria na moda, não seria demodê). Por que digo isso? Porque, no caso do acesso à Justiça e da assistência jurídica gratuita, a lei da reforma trabalhista viola a — chamemos assim — literalidade, a letra da Constituição de 1988, ou seja, a assistência jurídica é “integral e gratuita” (artigo 5º, LXXIV)[1]. Se é integral, a assistência jurídica não pode ser solapada porque o trabalhador teve ganho naquela e/ou em outra reclamação trabalhista. Em suma, viola a letra da Constituição de 1988 consagrar uma assistência jurídica “parcial e gratuita”. Simples assim. Não é feio dizer aquilo que exatamente está no texto da CF.

Outro enunciado que merece atenção é aquele destinado à inconstitucionalidade da previsão de um microssistema autopoiético e hermético de regulação do dano extrapatrimonial na esfera jurídica trabalhista. Como bem assinalado no Enunciado 18 da 2ª jornada da Anamatra, a previsão é aberrantemente inconstitucional. Não há como uma lei infraconstitucional, ainda que harmônica aos interesses dos estamentos dominantes da sociedade brasileira, imunizar-se à aplicação da própria Constituição. Desse modo, cabe fazer uma declaração de inconstitucionalidade com redução de texto do artigo 223-A da CLT, com a redação da Lei 13.467/17, para excluir a expressão “apenas” (é uma das seis hipóteses de minha teoria da decisão). No mesmo sentido, é inconstitucional a tarifação indenizatória refletida no parágrafo 1º do artigo 223-G da CLT, bastando, para tanto, consultar a jurisprudência do STF (como no caso da Lei de Imprensa, RE 315.297, aqui — e, cabe indagar, alguém teria a desfaçatez de propor a extinção do STF ou a extinção do controle de constitucionalidade por contrariar uma tal lei? Cartas para a coluna).

Finalmente, cumpre desvelar a grande importância do que fizeram constar no Enunciado 2 da 2ª jornada da Anamatra. Ali se fala da interpretação da lei. Advirto, todavia, que o propalado pós-positivismo (ou qualquer tese não positivista legalista) não afasta a possibilidade de aplicação da letra da lei como uma resposta constitucionalmente adequada (ver aqui). Todavia, qualquer postura que ainda pretenda ultrapassar coisas como “juiz boca da lei” ou “literalidade da lei” também exige — e vou insistir nessas palavras “também exige” — responsabilidade política dos juízes para que, no exercício de seu mister institucional, apliquem o Direito com integridade e coerência (noções inauguradas por Ronald Dworkin e contempladas no CPC/2015 por minha sugestão no artigo 926, que, aliás, deveria ser incorporado pela Justiça do Trabalho).

O que isso implica? Simples. Isso implica a necessidade de que leis inconstitucionais assim sejam declaradas pelo Poder Judiciário, inclusive no âmbito trabalhista. Nisso está absolutamente correta a tese nº 2. Desse modo, é flagrantemente extemporâneo pretender invocar uma noção de intervenção mínima estatal a la Rerum Novarum da Igreja Católica de 1891 (aqui) para imunizar uma superlei de reforma trabalhista ou um supernegócio-jurídico de acordo coletivo de trabalho e de convenção coletiva de trabalho, numa neorepristinação do positivismo exegético (primevo-legalista).

O que quero dizer — na linha do que venho apregoando há décadas — é que, nesta quadra da história, incumbe aos juízes do Trabalho (e dos demais ramos do Direito, por óbvio) observar o Direito, seja aplicando a literalidade de uma lei constitucionalmente adequada, seja deixando de aplicar uma lei inconstitucional, seja interpretando uma lei conforme a Constituição (e, neste ponto, insisto na minha tese das seis hipóteses em que uma lei pode não ser aplicada, o que elaboro com mais vagar em Verdade e Consenso). Leio o Enunciado 2 da 2ª jornada da Anamatra à luz do corte epistemológico que propus acima, como uma ode à jurisdição constitucional e como uma interpretação que busca reforçar a autonomia do Direito, protegendo o Direito de seus predadores. Fica nítido o caráter predatório sofrido pelo Direito do Trabalho.

Acho que a Justiça do Trabalho está à prova. Tem de atravessar esse abismo. Mas deve fazê-lo utilizando a jurisdição constitucional de forma adequada. É possível, bem lendo a nossa Constituição, construir respostas adequadas à Constituição. Totalmente possível. É só saber procurar. O que não pode é fazer como o sujeito que perde seu relógio no meio da praça escura e se põe a procurá-lo debaixo do poste de luz… só porque na luz… é mais fácil.

Post scriptum: enfim, a reforma é um prato cheio para a jurisdição constitucional[2]. Por exemplo, a) a inconstitucionalidade na jornada 12×36; b) inconstitucionalidades na negociação coletiva, c) nas atividades insalubres; d) no trabalho da gestante; e) na dispensa coletiva; e) enfim, há muita inconstitucionalidade, interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung) e nulidade parcial sem redução sem texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung).


[1] Sei que o parágrafo segundo do artigo 98 do CPC não isenta o beneficiário das despesas processuais e dos honorários de sucumbência. Mas creio que se trata de uma medida inconstitucional que visa diminuir as demandas em desatenção ao texto constitucional. A assistência deve ser integral e gratuita, sendo que a integralidade deve abarcar os riscos processuais dentro de uma atuação de boa-fé.
[2] Por exemplo, num belo livro sobre a internacionalização da Constituição, Rafael F. Ferreira (Internacionalização da Constituição: Diálogo hermenêutico, perguntas adequadas e bloco de constitucionalidade, Editora Lumen Juris, 2016), livro que apresentei, aponta alguns caminhos, não positivistas, para a partir dos direitos humanos (e fundamentais) e, neles as convenções internacionais da OIT que o Brasil ratificou, exercer a jurisdição constitucional numa perspectiva hermenêutica de bloco de constitucionalidade.

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