Interesse Público

O interesse público ainda respira bem, mas necessita sempre de cuidados intensivos

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2 de novembro de 2017, 7h05

Spacca
Na última semana, a imprensa noticiou que dois ministros do Tribunal de Contas da União, acompanhados de suas respectivas mulheres, passaram um final de semana memorável em uma ilha paradisíaca, às custas do empresário Joesley Batista (o empresário, as empresas do grupo JBS e as atividades não necessariamente republicanas apontados pela operação "lava jato" dispensam maiores comentários).

Segundo a revista Veja, “em meados do ano passado, a Lava Jato já havia deflagrado três dezenas de operações. As empresas do grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, ainda não haviam caído na teia, mas já eram alvo de investigações que apuravam suspeitas de pagamento de propina para obter financiamentos no BNDES e na Caixa Econômica Federal. Na época, longe de Brasília, no píer de uma mansão em Mangaratiba, no Rio de Janeiro, uma pequena lancha aportou para apanhar um grupo que havia chegado para um fim de semana de lazer. Todos a bordo, a embarcação rumou mar adentro, até encontrar o iate Why Not. Para os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), era o começo de um animado dia de mordomias, com boa comida, champanhe e vinho da melhor qualidade, tudo diante de uma paisagem deslumbrante”[1]. Segundo a reportagem, um dos ministros negou que tenha beneficiado o Grupo J&F nos processos em trâmite no TCU, alegando que votou a favor do prosseguimento de investigações sobre as empresas do grupo. Ora, se não houve favorecimento, why not?

A situação narrada volta nossa atenção para a importância da prevenção dos conflitos de interesses. O interesse público é o coração do direito público, desfrutando de proteção diferenciada conferida pelo ordenamento jurídico. Como aduz Marçal Justen Filho, um interesse deixa de ser privado e se transmuta em público quando seu atendimento não puder ser objeto de transigência, pois as regras não podem ser as mesmas dos interesses individuais. Segundo o autor, “modernamente, o conceito de interesse público não se constrói a partir da impossibilidade técnica de os particulares satisfazerem determinados interesses individuais, mas pela afirmação da impossibilidade ética de deixar de atendê-los”[2].

As sutilezas jurídicas que envolvem a proteção do interesse público não comportam análise nesta coluna, razão pela qual remeto o leitor a estudos de autores que já trataram do tema com profundidade e propriedade[3]. Entretanto, algumas características gerais atuais do conceito de interesse público — ou da investigação em sua busca — podem ser colacionadas, sem pretensão de exaurimento: a) não existe realização válida do interesse público pela administração pública fora dos quadros da juridicidade (não há um interesse público por natureza que seja revelado ou aplicado em sentido contrário à lei ou face a condutas desconformes com a lei, como ressalta Paulo Otero); b) interesse público não se confunde com interesse do Estado, e este não detém exclusividade na realização do interesse público; c) a complexidade da sociedade e do ordenamento jurídico permitem identificar a existência de diversos interesses igualmente públicos; e d) interesse público e interesses privados não se encontram necessariamente em campos opostos, pois a defesa do direito ou do interesse juridicamente protegido do particular (se considero a categoria de interesses legítimos, por exemplo) é decorrência do interesse público.

Essas características conferem maior importância à regulação dos conflitos de interesses. De acordo com a Lei 12.813/13, conflito de interesses é a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública (artigo 3º, I). Na máxima popular, não se pode servir a dois senhores — no caso, a interesses antagônicos. Conflito de interesses não é sinônimo de corrupção, mas deve ser adequadamente regulado para evitar que se transforme em patologia corruptiva. O objetivo principal é evitar que interesses privados possam contaminar indevidamente processos decisórios públicos, comprometendo a integridade e impessoalidade que devem marcar o exercício de toda e qualquer função pública.

De acordo com a OCDE[4], o estabelecimento de uma política pública voltada à prevenção dos conflitos de interesses deve necessariamente abarcar: a) a identificação de riscos para a integridade de organizações públicas e agentes públicos; b) a proibição de formas específicas inaceitáveis de interesse privado; c) a conscientização das organizações e agentes públicos a respeito das circunstâncias em que podem surgir conflitos; d) garantias para que os procedimentos efetivos sejam implantados para a identificação, divulgação, gestão e promoção da resolução apropriada de situações de conflito de interesses. Ainda segundo a OCDE, atenção especial deve recair sobre formadores de políticas e titulares de cargos públicos que trabalham em funções estruturais do Estado e também sobre agentes responsáveis por decisões em áreas sensíveis na interface entre os setores público e privado. O objetivo principal é promover uma cultura de serviço público na qual conflitos de interesse sejam devidamente identificados e resolvidos ou gerenciados, de maneira apropriadamente transparente e atempada, sem inibir indevidamente a eficácia e eficiência das organizações públicas envolvidas.

A Lei Federal 12.813/13 regula as situações que configuram conflito de interesses envolvendo ocupantes de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo Federal, os requisitos e restrições a ocupantes de cargo ou emprego que tenham acesso a informações privilegiadas, os impedimentos posteriores ao exercício do cargo ou emprego e as competências para fiscalização, avaliação e prevenção de conflitos de interesse. A lei não se afasta das diretrizes gerais da OCDE ao identificar como conflito de interesse, por exemplo, “receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento” (artigo 5º, VI). A lei estabelece ainda um sistema interessante para a gestão dos conflitos, incluindo a identificação e avaliação das situações, além da possibilidade de orientação e esclarecimento de dúvidas e controvérsias interpretativas.

Em se tratando de conflito de interesses, como se percebe, a punição não é o elemento essencial. Punições já existem, em todas as esferas, para diversos atos identificados pelo ordenamento (sanções administrativas, disciplinares, crime, improbidade). O essencial é o estabelecimento de uma política preventiva transparente e eficaz para evitar a prática dos atos condenáveis por meio da correta identificação, gestão e, se for o caso, sanção.

Percebe-se que essa política possui não somente uma vertente normativa (composta de leis, como a Lei 12.813/13, códigos de ética e conduta), como outra institucional/organizacional (a colocar em relevo a importância de instituições permanentes, com autonomia, competência e poderes para fazer cumprir suas decisões). Ainda assim, de nada adiantará um marco normativo adequado, a ser aplicado por instituições igualmente adequadas, se não for discutida com seriedade a profissionalização da função pública. Nesse particular, a influência político-partidária no provimento de cargos estruturais do Estado, sobretudo por intermédio dos cargos em comissão, vai na contramão de qualquer tentativa de profissionalização.

Retomando o caso inicial, vale relembrar a importância do bom exemplo por parte dos líderes públicos, ocupantes dos escalões superiores do funcionalismo, para que qualquer política pública de integridade possa ter repercussão e efetividade. Ao mesmo tempo, a ausência de qualquer proveito ou benefício efetivo não invalida a importância do tema: o que se busca é evitar a promiscuidade entre interesses por parte daqueles que devem tutelar somente o interesse público, comprometendo a integridade e mesmo a confiabilidade das decisões públicas. Neste Dia de Finados, a despeito de alguns autores já terem reconhecido a morte do tradicional conceito de serviço público[5], convém reconhecer que o interesse público ainda respira bem, em que pese necessitar sempre de cuidados intensivos.


[1] http://veja.abril.com.br/politica/os-ministros-do-tcu-o-iate-e-a-mansao-de-joesley.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo, Malheiros, nº 26, 1999.
[3] Além da clássica obra do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, destaco os estudos singulares de Emerson Gabardo (GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade – o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009) e Daniel Hachem (HACHEM, Daniel. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte: Fórum, 2011).
[4] MANAGING CONFLICT OF INTEREST IN THE PUBLIC SERVICE, OECD Guidelines and Overview, 2003.
[5] ARIÑO ORTIZ, Gaspar. La regulación económica. Teoría y práctica de la regulación para la competencia. Buenos Aires: Ábaco, 1996.

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