Academia de Polícia

Concessão de medidas protetivas por delegado amplia direitos da mulher

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

1 de novembro de 2017, 18h03

Spacca
O Brasil padece de uma verdadeira epidemia de agressões contra a mulher, seja na seara de sua dignidade sexual, moral, física, psicológica ou patrimonial. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) surgiu para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como já anuncia seu artigo inicial. Essa ação afirmativa[1] decorre do compromisso assumido pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos[2] e do dever constitucional de o Estado assegurar “a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (artigo 226, caput e parágrafo 8º da CF).

Completados dez anos de sanção da Lei Maria da Penha, todavia, não se verificou uma efetiva proteção às mulheres vítimas da violência de gênero. Muito por conta da sistemática original da norma, que estabeleceu a exclusividade da concessão de medidas protetivas pelo magistrado, da seguinte forma: a vítima terá que esperar até 96 horas para contar com a deliberação judicial (artigos 12, III e 18, I); após o deferimento, o agressor ainda precisa ser intimado da decisão, o que pode demorar semanas ou meses, se tudo der certo e o suspeito não fugir.

Essa excessiva burocratização do procedimento foi notada pela sociedade. A CPMI da Violência Doméstica[3] revelou que a insuportável morosidade na proteção da vítima não é exceção, mas a regra. A depender da região, o prazo para a concessão judicial das medidas é de um a seis meses, “tempo absolutamente incompatível com a natureza mesma desse instrumento”, a impor “medidas cabíveis para a imediata reversão desse quadro”. Ou seja, a mulher que sofre violência doméstica não deixa a delegacia já protegida por uma medida protetiva, mas com uma folha de papel sem qualquer efetividade, uma mera promessa distante.

Esperar que essas medidas pudessem ter a eficácia pretendida pelo Poder Judiciário, diante dos regionalismos de dimensão territorial em nível continental e as peculiaridades de mais de 5.500 municípios de nosso país, denota o que Alexy denomina de visão ingênua e idealista[4].

Para quem está na ultrajante posição de vítima de violência doméstica, poucos dias, horas ou até minutos sem a proteção são uma eternidade, aumentando de modo insuportável essa odiosa vulnerabilidade. A prática tem evidenciado que o modelo que subtrai da ofendida o direito a ser protegida já na delegacia de polícia não tem sido capaz de contornar os efeitos deletérios do tempo, obrigando-a a aguardar longo lapso temporal sem a assistência devida, ignorando o próprio nome do instituto: medidas protetivas de urgência.

Buscando ampliar direitos da mulher e adequar a Lei Maria da Penha à realidade, surgiu o Projeto de Lei 07/16, que se encontra aprovado pelo Congresso Nacional, aguardando sanção do presidente da República.

Uma das importantes mudanças é o acréscimo do direito da mulher estampado no artigo 12-B. Permite que, verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, o delegado de polícia (preferencialmente da delegacia de proteção à mulher) aplique provisoriamente, até deliberação judicial, certas medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor. Fácil notar que se trata de um acréscimo, e não supressão de direitos.

Em primeiro lugar, sobre a conveniência de se outorgar poderes cautelares ao delegado de polícia, não se pode olvidar que age stricto sensu em nome do Estado[5], integra carreira jurídica[6] e profere decisões escoradas em análise técnico-jurídica[7]. Explica a doutrina:

É indispensável assegurar à autoridade policial que, constatada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, aplique provisoriamente, até deliberação judicial, algumas das medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor[8].

Salto aos olhos, nesse contexto, a figura do delegado de polícia como o primeiro garantidor dos direitos e interesses da mulher vítima de violência doméstica e familiar, afinal, esta autoridade está à disposição da sociedade vinte e quatro horas por dia, durante os sete dias da semana, tendo aptidão técnica e jurídica para analisar com imparcialidade a situação e adotar a medida mais adequada ao caso[9].

A alteração é perfeitamente constitucional. Não existe reserva de jurisdição para a decretação de medidas cautelares, ou seja, a Constituição não exigiu prévia decisão judicial para a adoção dessas providências. Isso significa que o legislador possui margem para outorgar a outras autoridades o poder de decisão. Não é inédita, portanto, a outorga legal de poder cautelar ao delegado de polícia. Muito pelo contrário, a lei atribuiu à autoridade policial a possibilidade de adotar manu propria uma série de medidas, tais como prisão em flagrante (artigo 304 do CPP), liberdade provisória com fiança (artigo 322 do CPP), apreensão de bens (artigo 6º, II do CPP), ação controlada no crime organizado (artigo 8º, parágrafo 1º da Lei 12.850/13), dentre outras.

Aliás, não são todas as medidas protetivas possíveis de serem decretadas pelo delegado. Apenas as de proibir o agressor de se aproximar da ofendida, de manter contato com ela ou de frequentar determinados lugares; encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa de proteção ou de atendimento; ou ainda determinar a recondução da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor. Não pode a autoridade policial decretar a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, o afastamento do agressor ou da ofendida do lar, a separação de corpos, a restituição de bens, a proibição temporária de celebração de contratos, a suspensão de procurações ou a prestação de caução provisória.

A inovação em nada afeta a capacidade postulatória da vítima. Mesmo que autoridade de polícia judiciária não vislumbre a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima, continua intocável a possibilidade de a ofendida requerer as medidas protetivas, pedido que deverá ser encaminhado normalmente pelo delegado ao juiz em 48 horas ou até mesmo apresentado diretamente ao Judiciário pela mulher.

Não há qualquer prejuízo ao controle judicial da providência ou à inafastabilidade da jurisdição. À semelhança do que ocorre com a prisão em flagrante decretada pelo delegado (artigos 306, parágrafo 2º e 310 do CPP), o juiz deverá ser comunicado da medida no prazo de 24 horas e poderá manter ou rever a medida aplicada, ouvido o Ministério Público no mesmo prazo.

De igual maneira, nenhuma afronta existe à atuação do Ministério Público, que será obrigatoriamente ouvido sobre a decretação das medidas protetivas, continuando inalteradas a legitimidade para requerimento de medidas protetivas e a atribuição de controle externo policial.

A mudança não acarretará necessariamente atraso nas investigações policiais, até porque nas hipóteses em que o agressor for conduzido à delegacia de polícia, já sairá de lá intimado, não sendo preciso qualquer diligência externa para efetivar a intimação. É dizer, mesmo considerando as dificuldades estruturais das polícias civis, a possibilidade de decretação de medidas protetivas pelo delegado de polícia já significa imediatamente um avanço, quando nada em significativo percentual de casos em que o suspeito comparece à unidade policial.

Ora, se a vítima pode sair da delegacia com a medida protetiva decretada pela autoridade policial, não faz o menor sentido, ferindo o princípio da eficiência, impor à ofendida uma via crucis para efetivar a proteção.

É importante lembrar que o princípio da proporcionalidade se manifesta não apenas pela proibição do excesso, mas também pela vedação da proteção insuficiente[10], e que a tutela de direitos fundamentais deve ser adequada, célere e efetiva[11]. O Brasil precisa adotar medidas para não voltar a ser advertido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão da “ineficácia judicial, a impunidade e a (…) falta de cumprimento do compromisso assumido pelo Brasil de reagir adequadamente ante a violência domestica”[12].

Obviamente a alteração legislativa não significará a panaceia para a questão da violência doméstica no Brasil, porquanto a efetividade de qualquer lei depende da concretização de políticas públicas. Todavia, essa constatação não tem o condão de fossilizar a legislação e servir de muro contra a evolução normativa. É preciso mitigar os obstáculos que a vítima ainda encontra para ser socorrida. Ampliar seu espectro protetivo traduz a melhor forma de respeitar a histórica luta das mulheres pela afirmação de seus direitos, batalha que não pode ser maculada por interesses corporativistas.


[1] ATHABAHIAN, Serge. Princípio da igualdade e ações afirmativas. São Paulo: RCS Editora, 2004, p. 18.
[2] Em especial a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (promulgada pelo Decreto 4.377/02) e a convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do Pará (promulgada pelo Decreto 1.973/96).
[3] Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getpdf.asp?t=130748&tp=1>. Acesso em: 14.jun.2016.
[4] BARBOSA, Ruchester Marreiros. "PLC 7 de 2016 efetiva direitos fundamentais na Lei Maria da Penha". Revista Consultor Jurídico, jun. 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-jun-21/plc-2016-efetiva-direitos-fundamentais-lei-maria-penha>. Acesso em: 21.jun.2016.
[5] STJ, RMS 43.172, rel. min. Ari Pargendler, DJe 22/11/2013.
[6] STF, Tribunal Pleno, ADI 3.441, rel. min. Carlos Britto, DJ 9/3/2007.
[7] STF, HC 115.015, rel. min. Teori Zavascki, DJ 27/8/2013; STJ, RHC 47.984, rel. min. Jorge Mussi, DJ 4/11/2014.
[8] DIAS, Maria Berenice. Medias protetivas mais protetoras. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br>. Acesso em: 19.jun.2016.
[9] SANNINI NETO, Francisco. Lei Maria da Penha e o delegado de polícia. Canal Ciências Criminais, jun. 2016. Disponível em: <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/lei-maria-da-penha-e-o-delegado-de-policia/>. Acesso em: 15.jun.2016.
[10] SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798, abr. 2002; SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o Direito Penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 47. mar.-abr. 2004.
[11] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 219.
[12] CIDH, Relatório 54/2001.

*Texto alterado às 18h19 do dia 4 de novembro de 2017 para correção.

Autores

  • é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers, do Supremo, da Escola da Magistratura do Paraná e de Mato Grosso, da Escola do Ministério Público do Paraná e da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná. Mestrando em Direito pela Uenp e autor de livros e palestrante. www.henriquehoffmann.com

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