Interesse Público

Súmula Vinculante 5 do Supremo deveria, no mínimo, ser revista

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30 de março de 2017, 8h05

Spacca
Nesta primeira quadra do século XXI, a característica mais marcante do Direito brasileiro é a afirmação da jurisprudência como fonte. Desde a Emenda Constitucional 03/93 (com o estabelecimento do efeito vinculante das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade), passando pelas leis 9.868/99 (ADI e ADC) e 9.882/99 (ADPF), pela Emenda Constitucional 45/04 (repercussão geral, súmulas vinculantes), pela disciplina dos recursos repetitivos (Lei 11.672/08), até o novo Código de Processo Civil, o que se percebe é a ampliação, pela via legislativa, do prestígio e da preponderância das decisões dos tribunais superiores (em especial do STF) sobre as demais fontes do Direito.

Recentemente, o STF teve a oportunidade de afirmar que o novo CPC inaugurou, entre nós, a filiação do Direito brasileiro ao sistema do common law e à técnica do stare decisis (RE 655.265, relator: ministro Luiz Fux; relator para acórdão: ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 13/4/2016, DJ de 5/8/2016). O vaticínio da filiação é exagerado, mas não se há negar a aproximação presente entre o tradicional sistema do rule of law (de origem romanista) e o sistema de precedentes judiciais no Brasil.

O exemplo mais genuíno do que aqui se expõe pode ser colhido na análise da disciplina das súmulas vinculantes do STF. Atualmente, as SV parecem ter alcançado força e coerção iguais ou superiores às dos próprios atos legislativos. Por vezes, leis presumidamente válidas deixam de ser aplicadas até que o STF sobre elas se pronuncie; noutros, são adotadas súmulas vinculantes que interpretam diretamente princípios constitucionais sem que haja a necessidade de mediação de atos legislativos propriamente ditos (por exemplo, SV 13 do STF).

A pergunta que subjaz é a seguinte: no possível confronto entre súmulas vinculantes e leis emanadas do parlamento (estas dotadas de legitimidade democrática), que tipo normativo haverá de prevalecer?

O questionamento nos auxilia no exame da SV 5 do STF — e na proposta para sua revisão que se apresenta ao final deste ensaio. Dispõe o verbete que: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

A decisão do STF de editar a SV em questão foi tomada no julgamento do RE 434.059, interposto pelo INSS e pela União contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que afirmava ser obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar[1]. Entendeu o STJ que o PAD estaria eivado de nulidade, porquanto ausente defesa técnica, revelando-se violação ao artigo 5º, LV e ao artigo 133 da Constituição[2].

Na ocasião, os ministros do STF consideraram que a presença do advogado no PAD seria, como regra, uma faculdade outorgada ao servidor (não uma obrigação), nos termos do artigo 156 da Lei 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais)[3]. Três seriam as exceções possíveis: a) se o servidor processado estivesse em lugar incerto e não sabido (caso em que caberia ao órgão público designar um procurador); b) se objeto processual fosse revestido de complexidade tal que fugisse à compreensão do processado (caso em que o órgão público disponibilizaria o advogado, se o servidor não dispusesse de recursos bastantes); c) se o servidor for revel, apresentando-se então a ele um defensor dativo[4].

Posteriormente, a jurisprudência da corte admitiu distinção no sentido de que a SV 5 não é aplicável em procedimentos administrativos para apuração de falta grave em estabelecimentos prisionais (ver, por todos, Rcl 9.340 AgR, relator ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgamento em 26/8/2014, DJe de 5/9/2014).

É possível questionar o mérito em si da decisão do STF, como fizeram os professores Marcelo Cattoni e Dierle Nunes, da UFMG, no texto denominado Súmula Vinculante 5 do Supremo Tribunal Federal é inconstitucional, publicado pels ConJur em 28 de maio de 2008. Segundo os autores, “quando a Constituição da República estabelece princípios processuais constitucionais, tem por objetivo garantir ao cidadão a possibilidade de atuar com competência na defesa de seus direitos. A ‘competência de atuação’ (handlungskompetenz) corporifica-se exatamente na capacidade da parte antecipar as estratégias da outra e de se posicionar diante das argumentações e decisões, o que obviamente se aplica em qualquer estrutura normativa legítima formadora de provimentos (processo), judicial e administrativo” (Wassermann, Rudolf. Der soziale Zivilprozeß: Zur Theorie und Praxis des Zivilprozesses im sozialen Rechsstaat. Neuwied, Darmstadt: Luchterhand, 1978, p. 140).

Continuam os autores, “a defesa técnica e a participação de um advogado não é uma necessidade corporativa de uma instituição como a Ordem dos Advogados, mas uma garantia de qualquer cidadão (servidor ou não) de poder atuar de modo competente e técnico na defesa de seus direitos […] o Supremo Tribunal Federal não pode interpretar os artigos 5º, inciso LV, e 133 da Constituição da República, que asseguram o direito a um defensor ou do direito a uma defesa técnica sob o argumento de pseudo-eficiência apresentado […] Não há garantia de 'acesso à justiça' sem advogado competente, e isso por uma questão de garantia do princípio da igualdade”.

Deveras, os processos administrativos disciplinares possuem nítida inspiração nos princípios e premissas típicas do Direito Penal. O denominado Direito Administrativo Sancionador — em particular na sua vertente disciplinar — tem raízes comuns com a disciplina do Direito Penal. No Direito hispânico, José Maria Quirós Lobo, Eduardo Garcia de Enterría e Tomaz Fernandes, Juan Carlos Cassagne, Hector Villegas, Passos de Freitas e Luciano Amaro fazem coro a essa aproximação, pugnando pela existência de uma matriz comum para o Direito sancionador (Penal e Administrativo), com destaque para antijuridicidade, tipicidade, imputabilidade, culpabilidade e punibilidade[5].

Logo, não é despiciendo sustentar que as garantias constitucionais implícitas, inerentes ao Estado Democrático de Direito (artigo 5º, parágrafo 2º, CF), conduzem à aplicação, o quanto possível, dos postulados penais às faltas administrativas, apontando no sentido da necessidade de cancelamento mesmo da SV 5 do STF (conforme autorizado pela Lei 11.417/06, artigo 3º)[6].

Todavia, o cerne deste ensaio reside em questionar a SV 5 do STF a partir do exame do conteúdo das próprias decisões que lhe deram ensejo. É que o debate em torno do acórdão originário da súmula circunscreveu-se à disciplina da Lei 8.112/90 (artigo 156), que é norma eminentemente federal, aplicável apenas aos servidores públicos da União. Já o texto sumular é mais abrangente, sugerindo transcendência automática aos âmbitos dos processos disciplinares estaduais e municipais, sem discernimento ao que disciplinam as legislações respectivas.

Com efeito, é possível que a legislação estadual ou municipal disponha (diferentemente da Lei 8.112/90) que a defesa técnica por procurador habilitado (advogado) é obrigatória nos processos administrativos disciplinares. E não haveria nenhuma impropriedade nisso, porquanto a competência legislativa quanto ao tema pertence a cada unidade federativa — a Constituição, em matéria de processo administrativo, “não fixa competência legislativa privativa da União, mas permite que cada ente crie seu regramento básico ou essencial, tendo em vista sua autonomia”[7].

Nesse sentido, por exemplo, a Constituição baiana estabelece genericamente que toda pessoa tem direito a advogado para defender-se em processo judicial ou administrativo, cabendo ao estado propiciar assistência gratuita aos necessitados, na forma da lei (artigo 4º, VIII); e o artigo 70, III da Lei 7.990/2001 do mesmo estado, ao dispor sobre o Estatuto dos Policias Militares, prescreve que a citação do acusado será feita pessoalmente ou por edital e deverá conter a obrigatoriedade do acusado fazer-se representar por advogado. Trata-se de legítimo exercício da competência legislativa estadual, ampliativa da garantia constitucional da ampla defesa, sem qualquer obstáculo na Constituição da República.

Assim sendo, nos casos em que o legislador regional ou local (e mesmo o federal se houver alteração legislativa ou norma específica com orientação diversa do artigo 156 da Lei 8.112/90) vier a fixar a obrigatoriedade da presença do advogado no processo administrativo disciplinar, a ausência, a despeito do conteúdo da SV 5 do STF, violará o princípio da ampla defesa e da legalidade, gerando, como consequência, a nulidade do processo disciplinar (PAD).

A proposta ideal seria o cancelamento da súmula (ver artigo 3º da Lei 11.417/06 que apresenta o rol dos legitimados). A proposta subsidiária — e que aqui se apresenta — é a de que, no mínimo, o texto da SV 5 do STF seja revisto, em ordem a contemplar a autonomia das entidades federativas para que a lei de cada esfera possa exigir defesa técnica como requisito de validade do processo disciplinar (PAD). Fica aqui a sugestão de texto: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição, salvo quando obrigatória sua participação, por força de lei”.


[1] A Súmula 343 do STJ prescreve: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases de processo administrativo disciplinar”.
[2] Outros três precedentes também serviram de base para a edição da Súmula Vinculante 5: Agravo Regimental no RE 244.277, Ellen Gracie; do AR em Agravo de Instrumento 207.197, Octávio Gallotti, e do Mandado de Segurança 24.961, Carlos Velloso.
[3] Artigo 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial.
[4] Na doutrina do Direito Administrativo brasileiro, a questão da defesa técnica não apresenta uniformidade. José dos Santos Carvalho Filho (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 913), Hely Lopes Meirelles (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 662) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 60) entendem, tal como o STF, ser facultativa a presença de advogado no processo administrativo disciplinar. Por outro lado, Diógenes Gasparini (GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 810), Odete Medauar (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais) e Sebastião José Lessa (LESSA, Sebastião José. Processo Administrativo Disciplinar: A Súmula nº 343 do STJ, DJ 21.09.07, Defesa técnica: Presença do advogado. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 8, n. 84, p. 8, fev. 2008) sustentam que a defesa técnica (por profissional habilitado) é da essência do princípio constitucional da ampla defesa. 
[5] NOBRE, Edilson Pereira. Sanções Administrativas e Sanções do Direito Penal, http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20091210115714.pdf. Acesso em 3/8/2014.
[6] NOBRE, Edilson Pereira. Sanções Administrativas e Sanções do Direito Penal, http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20091210115714.pdf. Acesso em 3/8/2014.
[7] NOHARA, Irene Patrícia. MARRARA, Thiago. Processo Administrativo – Lei 9.784/99 Comentada, São Paulo: Atlas, 2009. p. 28.

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