Opinião

É inconstitucional centralizar recursos da Uerj no Caixa Único do Tesouro fluminense

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27 de março de 2017, 15h53

Despontam nas páginas de jornais notícias sobre a paralisação das atividades da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a quinta maior do Brasil, que atende a mais de 43 mil alunos, sendo 28 mil na graduação presencial, 7 mil na graduação a distância, 4,5 mil no mestrado e no doutorado, 2,5 na pós-graduação lato sensu e 1,1 mil no ensino fundamental e médio no Colégio de Aplicação da Uerj (CAP-Uerj). Além disso, mantém o Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), especializado em cirurgias de alta complexidade, atendendo toda a comunidade fluminense. Nesse cenário, os gestores da universidade afirmam que o estado está repassando uma parcela ínfima, menos de 20%, dos recursos orçamentários necessários para a manutenção da entidade desde 2016, e que os salários dos servidores e as bolsas estudantis estão sofrendo um sistemático atraso. O governador Luiz Fernando Pezão reage ameaçando cortar 30% dos salários dos professores que não estão dando aulas. A Uerj responde que não está em greve e que a inexistência do repasse de recursos impede o seu funcionamento em condições mínimas de infraestrutura, higiene e segurança.

Na verdade, a crise financeira em que a Uerj está mergulhada apresenta-se umbilicalmente relacionada à implementação do Caixa Único do Tesouro, a partir do ano 2000, quando o estado do Rio de Janeiro passou a concentrar a gestão financeira dos recursos das entidades da administração direta e indireta, o que, ao longo do tempo, acabou por comprometer a autonomia universitária em seu viés financeiro, patrimonial e orçamentário.

Até 2000, o procedimento de execução dos gastos da Uerj era feito em conformidade com a Lei 4.320/64, que estabelece as normas gerais de Direito Financeiro no Brasil, fixando três fases na realização da despesa pública: empenho, liquidação e pagamento.

No novo contexto normativo do advindo da introdução do Caixa Único do Tesouro, a Uerj passou a realizar o empenho, a liquidação e, em vez de emitir a ordem de pagamento, expede a Programação de Desembolso (PD). Para o efetivo pagamento, o órgão central de gestão financeira do estado emite uma ordem bancária para a instituição financeira, que, de acordo com a disponibilidade de caixa, transfere os recursos para o credor.

Em agosto de 2014, foi publicado o Decreto 44.899/14, que modifica o Decreto 22.939/97 (de implantação do Siafem), estabelecendo que “os recursos financeiros de todas as fontes de receitas vinculadas aos órgãos do Poder Executivo e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Estadual”, impondo a transferência dos recursos depositados nas contas para a conta única do Tesouro.

Nesse novo cenário, introduzido a partir de 2014, os pagamentos aos credores com recursos centralizados no Caixa Único do Tesouro passam a ser irregulares, tornando-se calamitosa a situação no exercício de 2016, com o inadimplemento sistemático dos pagamentos previstos nas PDs da universidade, o que resultou na inexistência de pagamento a bolsistas, fornecedores, prestadores de serviços, levando ao colapso na Uerj. Para completar o quadro desolador, os seus recursos próprios, gerados pela própria universidade, hoje também movimentados pelo Tesouro central, vêm sendo objeto de arrestos judiciais em ações dirigidas contra o estado do Rio de Janeiro, agravando o quadro de absoluta carência de recursos que coloca em risco o funcionamento da instituição, bem como a segurança e higiene dos seus alunos e servidores.

No ano de 2017, até o presente momento, o estado do Rio de Janeiro não adimpliu qualquer pagamento relativo à Uerj, o que acarretou a paralisação dos serviços terceirizados, como limpeza, segurança e elevadores. Pelo mesmo motivo, o restaurante universitário não se encontra em funcionamento. Esse quadro, aliado ao sistemático atraso no pagamento de servidores e bolsistas, levou a reitoria e o Fórum de Diretores da Uerj a suspender indefinidamente o início do semestre letivo 2016.2, que estava previsto para fevereiro, o que já se traduzia em enorme atraso em virtude das dificuldades financeiras apresentadas desde o ano passado.

Não existe dúvida de que o quadro atual viola o princípio da continuidade das atividades administrativas com a paralisação das atividades acadêmicas por ausência do adimplemento das obrigações financeiras do estado para com a Uerj, gerando um cenário de inconstitucionalidade por omissão, a partir da não concessão dos recursos necessários para a concretização dos objetivos constitucionais das universidades públicas.

E, diante da dinâmica apresentada, não é difícil perceber que o quadro atual não é só causado pela crise financeira do estado do Rio de Janeiro. Afinal, o Direito Financeiro brasileiro possui mecanismos legítimos para enfrentar tais desafios, por meio do contingenciamento das despesas discricionárias. Porém, nenhuma crise justifica a absoluta negação de recursos a uma universidade pública, máxime em um cenário em que se sabe que outros órgãos da administração direita e indireta do estado estão em regular atividade, a partir do recebimento das receitas necessárias para o seu funcionamento mínimo.

E é neste ponto que reside o cerne da questão. Em um quadro de escassez de recursos estaduais, em virtude da queda da arrecadação tributária e financeira, a Uerj não tem recebido do governo do estado a prioridade que o constituinte federal e o constituinte e o legislador estaduais conferiram à sua nobre missão institucional. Ao contrário, diante da inexistência de qualquer repasse de recursos para a universidade, é forçoso reconhecer que o Poder Executivo não elegeu a universidade entre as suas prioridades, condenando-a ao desaparecimento.

São situações extremas como essa que revelam a importância da autonomia financeira que a Constituição Federal atribuiu às universidades públicas, cujo objetivo não só é preservar a sua autonomia didático-científica diante das pressões do mercado e do estado, como também, o que se revela mais decisivo em momentos de crise financeira, assegurar o exercício do direito fundamental à educação superior pública e gratuita. E, para tanto, a Constituição blindou, por meio de tal autonomia, as universidades e os seus objetivos institucionais em relação às decisões discricionárias dos órgãos fazendários do Poder Executivo que procurassem colocar outros interesses, desprovidos da mesma estatura constitucional, à frente das necessidades da educação superior, da pesquisa e da extensão.

Por essa razão, a centralização dos recursos orçamentários destinados à Uerj no Caixa Único do Tesouro estadual é medida que viola o artigo 207 da Constituição Federal e o artigo 309 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que consagram a sua autonomia financeira. Nesse sentido, os atos normativos estaduais centralizadores são inteiramente nulos.  

Em outro giro, cumpre reconhecer que o fiel cumprimento da autonomia financeira da Uerj passa, como decorrência inafastável dessa autonomia financeira, pelo pagamento dos duodécimos mensais de suas rubricas orçamentárias.  Essa conclusão é reforçada por três razões principais. 

A primeira delas reside na própria conformação constitucional dada aos dois institutos. Embora a autonomia financeira não se esgote na iniciativa de apresentação da própria proposta orçamentária e nos duodécimos mensais, sendo esses mecanismos de efetivação daquela, a Constituição os tem tratado quase como institutos idênticos.  Exemplo disso é que, embora a Constituição Federal só atribua expressamente autonomia financeira ao Poder Judiciário e às universidades públicas, tem se entendido, de forma incontroversa, que o Poder Legislativo, o Ministério Público e, mais recentemente, a partir da Emenda Constitucional 45/2004, a Defensoria Pública possuem a mesma autonomia financeira, em função dos dispositivos que asseguram iniciativa da sua proposta orçamentária. Em relação à Defensoria Pública, tal associação de ideias foi expressamente reconhecida pelo STF no julgamento da ADPF 307-MC-REF/DF.

Assim, sendo declarada que a presença constitucional de uma das suas manifestações envolve a configuração integral da própria autonomia financeira, é forçoso reconhecer que a universidade pública, a quem se atribuiu constitucionalmente a própria autonomia financeira em sua inteireza, e não apenas um dos seus elementos constitutivos, tem direito ao pagamento de duodécimos mensais, independentemente do artigo 168, CF, mero reflexo sistêmico daquela autonomia.

A segunda razão que explica por que o pagamento de duodécimos mensais decorre da autonomia financeira é a inexistência de qualquer outro mecanismo previsto pelo Direito Financeiro positivo em nosso país que ofereça solução diferente para a questão. É claro que o legislador estadual, no caso da Uerj, poderia, a partir do experimentalismo democrático, conceber outros mecanismos de efetivação da disciplina do artigo 207, CF. Mas, na ausência de outro mecanismo preconizado legislativamente, os duodécimos mensais são aplicáveis analogicamente às universidades públicas, ainda que não fossem, como vimos, uma decorrência natural da autonomia orçamentária, uma vez que a regra do artigo 207 é autoaplicável.

Em terceiro lugar, no caso específico da Uerj, convém lembrar que a solução dos duodécimos mensais para conferir autonomia financeira à universidade foi a adotada pelo legislador fluminense, embora o dispositivo legal tenha sido, por razões distintas às que aqui se discute, declarado inconstitucional pelo STF na ADI 4.102/RJ. É que a referida decisão, que se baseou no princípio da não afetação dos impostos (a norma impugnada afetava 6% da arrecadação tributária líquida para a Uerj) não se dirigiu aos duodécimos mensais, em comando que foi afastado tão-somente por arrastamento, por compor o mesmo dispositivo normativo impugnado. Assim, não há como desconsiderar a opção que o legislador local adotou em eleger o pagamento dos duodécimos mensais como mecanismo de execução da autonomia financeira da Uerj, em decisão que não pode ser negligenciada pelo aplicador, como hoje é feito pelo governo do estado.

Por todo o exposto, a Uerj tem o direito ao pagamento dos duodécimos mensais dos recursos a ela atribuídos pelo orçamento do estado, recebendo tais montantes em dinheiro, e sendo responsável por todas as fases de realização da despesa pública, incluindo o empenho, a liquidação e o efetivo pagamento.

Independentemente do direito da Uerj aos duodécimos mensais, vale destacar o fato de a entidade não estar recebendo suas dotações orçamentárias sem que ela mesma seja responsável pelo contingenciamento das suas rubricas, o que também constitui, por si só, violação da sua autonomia financeira e orçamentária. Como é sabido, o Direito Financeiro brasileiro prevê mecanismos adequados à situação de frustração da arrecadação, o que exige medidas de contingenciamento orçamentário. Porém, ainda em um cenário de crise, isso não deve ser feito a esmo. É necessário que as despesas constitucional e legalmente obrigatórias sejam preservadas, e que sejam adotados os parâmetros previstos na lei de diretrizes orçamentárias. E, no caso de entidade financeiramente autônoma, que o contingenciamento seja realizado por ato próprio, que possa, à luz das suas próprias prioridades, e não do órgão fazendário do Poder Executivo, atender ao imperativo de redução de despesas discricionárias.

No caso da educação pública superior, é de todos sabida a obrigatoriedade constitucional do oferecimento do ensino gratuito, que só pode ser mantido com a preservação das despesas correntes da universidade, sem prejuízo desta, prudentemente, promover o contingenciamento das despesas de capital, desde que discricionárias, atendendo ao anúncio dos limites quantitativos de contingenciamento fornecidos pelo estado.

Porém, na realidade, nada disso vem sendo cumprido no caso concreto, quando o contingenciamento é feito pelo próprio estado, ao final do ano, para ajustar artificialmente o que foi efetivamente pago com as respectivas dotações orçamentárias, sem qualquer cuidado com a preservação de despesas obrigatórias ou essenciais às obrigações constitucionais da universidade.

Em razão da ilegitimidade formal e material de todos os contingenciamentos que a Uerj vem sofrendo nos últimos anos, e que, violando a sua autonomia financeira, desaguaram no quadro atual de paralização de suas atividades por falta de recursos, é correto concluir que a instituição de ensino superior tem direito a receber do Estado os valores que foram irregularmente contingenciados nos últimos cinco anos, sem o que será inviável que possa pagar sua enorme dívida com os seus fornecedores que, por sua vez, demitiram centenas de trabalhadores sem a devida quitação de seus direitos trabalhistas.

Diante de todo o exposto, deve-se concluir que o governo estado do Rio de Janeiro é responsável pela descontinuidade do funcionamento da Uerj, por descumprir a obrigação do repasse dos duodécimos orçamentários da entidade, bem como por promover o contingenciamento unilateral e arbitrário de verbas constitucional e legalmente obrigatórias. É chegada a hora dos poderes competentes, em respeito à Constituição e à sociedade fluminense, salvarem a Uerj.

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